A Teoria da Ação à Luz da Experiência Esquizo: um estudo de epistemologia insana

AutorGabriel Peters
CargoProfessor de Sociologia na Universidade Federal da Bahia
Páginas160-195
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15n34p160
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A Teoria da Ação à Luz da
Experiência Esquizofrênica: um
estudo de epistemologia insana
Gabriel Peters1
Resumo
As noções de “epistemologia insana” e“heurística da insanidade” nomeiam um artifício metodo-
lógico que se provou frutífero em uma variedade de domínios de pesquisa, qual seja, o mergulho
no âmbito do “patológico” com vistas à iluminação de modalidades “normais” de ação e expe-
riência. Lançando mão deste estratagema no plano das caracterizações sociológicas da conduta
humana, o artigo mobiliza descrições fenomenológicas e existenciais de vivências esquizoides e
esquizofrênicas, não apenas para compreendê-las à luz da teoria praxiológica da ação, mas tam-
bém para aprofundar a teoria praxiológica da ação à luz do que aquelas descrições nos ensinam
sobre a multiplicidade de modos de “ser-no-mundo” exibida pelo anthropos. O estudo defende
que as transformações vivenciadas em processos esquizoides ou esquizofrênicos, a despeito de
seus custos psíquicos, não devem ser concebidas como meros déf‌icits funcionais, mas como
atitudes existenciais complexas que “desaf‌iam”, em ato, certos postulados da teoria da ação em
sua versão praxiológica: o ancoramento em crenças tácitas é substituído por uma compulsão
hiper-ref‌lexiva, a relação pragmática com objetos materiais dá lugar a uma perplexidade quase-
-f‌ilosóf‌ica em face de sua mera realidade, os acordos intersubjetivos que oferecem familiaridade e
ordem à realidade social em dada cultura são percebidos na sua arbitrariedade ontológica radical
e o estranhamento quanto ao próprio corpo deixa de ser um lúdico ceticismo cartesiano para
tornar-se uma vivência existencial profunda.
Palavras-chave: Teoria da ação. Praxiologia. Esquizofrenia. Fenomenologia. Psicopatologia.
Introdução
De modo admitidamente provocativo, a noção de “epistemologia insa-
na” refere-se a um procedimento analítico que rendeu frutos cognitivos nos
1 Professor de Sociologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Agradeço ao Professor Carlos Eduardo Sell
pelo convite a participar do presente dossiê. Uma versão anterior desse trabalho foi apresentada no Grupo de
Trabalho em Teoria Sociológica do XVII Congresso Brasileiro de Sociologia em julho de 2015, onde se benef‌i-
ciou dos comentários de diversos participantes, aos quais também agradeço aqui.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Nº 34 - Set./Dez. de 2016
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mais variados setores de pesquisa, desde a psicanálise de Freud até os estudos
neurocientícos contemporâneos. Tal procedimento, que também poderia ser
alcunhado de “heurística da insanidade”, toma o exame de formas “anômalas
ou “patológicas” de comportamento e experiência humana como caminho
heurístico privilegiado para a compreensão de suas formas comparativamente
“comunse “normais”. Assim, por exemplo, o insight de que sintomas psico-
patológicos poderiam ser decodicados como expressões de conitos incons-
cientes entre diferentes instâncias psíquicas forneceu a Freud (1976) um modelo
geral da psique humana como uma entidade atravessada por relações mais ou
menos agonísticas entre as esferas do id (“isso”), ego (“eu”) e “superego” (“supe-
reu”). De modo análogo, o progresso no entendimento dos processos neuroló-
gicos que subjazem à operação “normal” das faculdades subjetivas deve muito
à pesquisa das diculdades enfrentadas por indivíduos tragicamente vitimados
por lesões cerebrais, como um homem que se tornou incapaz de formar memó-
rias novas após ter boa parte de seus lobos temporais mediais consumidos por
um vírus (FOER, 2011, p. 77-80) ou outro que, após passar por uma separação
cirúrgica dos hemisférios de seu cérebro, desenvolveu a chamada “síndrome da
mão alienígena”, em que uma de suas mãos ganha autonomia quanto à sua von-
tade consciente (por exemplo, desabotoando um botão que a outra mão havia
acabado de abotoar [LICKERMAN, 2012, p. 184]).
O presente ensaio, rebento de um trabalho mais amplo (PETERS, no
prelo), pretende aplicar o estratagema metodológico da “epistemologia in-
sana” ou “heurística da insanidade” às visões sociológicas da ação humana,
em particular às perspectivas “praxiológicas” (RECKWITZ, 2002) que se
tornaram sobremaneira inuentes na teoria social contemporânea. A hipó-
tese central é a de que “praxiologiae “esquizofrenia” são verso e reverso, por
assim dizer, de uma mesma moeda analítica. Assim, o trabalho mobiliza re-
latos fenomenológico-existenciais de vivências esquizoides e esquizofrênicas
não apenas para entendê-las à luz da teoria praxiológica da ação, mas também
para aprofundar a teoria praxiológica da ação à luz de tais relatos, isto é, do
que eles nos ensinam sobre a multiplicidade de modos de “ser-no-mundo”
(Heidegger) exibida pelo anthropos. O senso da autoevidência da realidade
inscrito na “atitude natural”, a orientação fundamentalmente pragmática em
relação ao ambiente objetal e intersubjetivo, o caráter corporalmente enga-
jado da ação cotidiana, o apoio prático em crenças e habilidades tácitas (não
A Teoria da Ação à Luz da Experiência Esquizofrênica: um estudo de epistemologia insana | Gabriel Peters
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apenas no cumprimento de tarefas rotineiras, mas também como o pano de
fundo indispensável de deliberações reexivas) – estes e outros traços de nosso
ser-no-mundo, hegemonicamente incluídos em retratos da agência huma-
na na teoria social contemporânea graças às perspectivas praxiológicas, es-
tão precisamente entre as disposições subjetivas radicalmente transformadas
em diversos processos esquizoides ou esquizofrênicos. Calcado nos trabalhos
de psiquiatras fenomenologicamente informados como Louis Sass e omas
Fuchs, este artigo parte da hipótese de que tais transformações, a despeito de
seus custos psíquicos e sociais, não devem ser concebidas como meros dé-
cits agenciais e experienciais, mas como atitudes existenciais complexas que
requerem uma descrição tão minuciosa quanto possível – atitudes nas quais,
por exemplo, o ancoramento em crenças tácitas é substituído por uma com-
pulsão hiper-reexiva, a relação pragmática com objetos materiais dá lugar a
uma perplexidade quase-losóca em face de sua mera realidade, os acordos
intersubjetivos que oferecem familiaridade e ordem à realidade social em dada
cultura são percebidos na sua arbitrariedade ontológica radical e o estranha-
mento quanto ao próprio corpo deixa de ser um lúdico ceticismo cartesiano
para tornar-se uma vivência existencial profunda.
Para uma heurística da insanidade: teoria social e
“sensibilidade psicopatológica”
A relação de fertilização recíproca entre reexão teórica e pesquisa em-
pírica que é comumente apregoada em diversas paragens sociológicas (por
exemplo, BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 162) pode ser lida, inte-
ralia, como uma tentativa de explorar a tensão dialética entre generalidade e
particularidade no discurso sociológico. Por um lado, a explicação de fenô-
menos empíricos em contextos sócio-históricos particulares não pode escapar
ao recurso (explícito ou implícito) a certos conceitos e proposições gerais, nos
quais estão imiscuídos inevitáveis pressupostos teóricos acerca da condição
humana em sociedade. Ao mesmo tempo, qualquer discurso sobre o animal
social humano que almeje a responsáveis pretensões de universalidade é obri-
gado a temperar tais pretensões pelo recurso a uma sensibilidade atenta à par-
ticularidade, isto é, à multiplicidade de formas de ação e experiência exibidas
por esse notável bípede implume. Como acontece em tantos outros domínios
da ciência social, o caminho heuristicamente mais profícuo para lidar com a

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