A nacionalização “ex tempore” dos hidrocarbonetos bolivianos: o novo século reascendendo as esperanças de um povo

AutorCristine Koehler Zanella; Pâmela Marconatto Marques; Jânia Maria Lopes Saldanha
Páginas273-293

Cristine Koehler Zanella. Professora da Faculdade de Direito de Santa Maria – FADISMA. Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal de Santa Maria, acadêmica do curso de Ciências Econômicas e do Mestrado de Integração Latino-Americana pela mesma instituição. E-mail: criskz.sma@terra.com.br

Pâmela Marconatto Marques. Mestranda em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria. Bacharel em Direito e acadêmica do curso de Ciências Sociais pela mesma instituição. E-mail: pmarconatto@yahoo.com.br

Jânia Maria Lopes Saldanha. Coordenadora do Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. mestre em Integração Latino - Americana da Universidade Federal de Santa Maria e doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com período de estudos junto à Universidade de Toulouse-Fr. É, ainda, líder do grupo de pesquisa registrado no CNPQ intitulado Pluralismo, multiculturalismo, cidadania e processos de integração. E-mail: jania@smail.ufsm.br

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1 Introdução

Ao alvorecer do século XXI, a Bolívia que, até então, acompanhara o desenvolvimento de seus vizinhos à margem do progresso, renova as esperanças de ver suas riquezas produzindo qualidade de vida. Diante da elevação dos preços do petróleo em todo mundo – resultado do aumento da demanda provocado pelo ingresso da China na economia mundial e da estabilização da oferta em função do não descobrimento de novas jazidas – o gás natural encontrado em seu subsolo passa a ser o depositário de suas renovadas expectativas.

A década de 90 se revelaria, no entanto, palco da repetição dos erros que produziram os fracassos passados, adiando mais uma vez a emancipação boliviana1. Em toda a América Latina, este período será marcado pela substituição do antigo modelo de desenvolvimento centralizado no ente estatal por um novo, adequado às demandas do mundoPage 274 globalizado que exigiam a abertura dos mercados nacionais. À época, imaginava-se que neste novo modelo estariam as soluções para os problemas estruturais e de conjuntura de que padeciam o Estado.

Na Bolívia, este período se caracteriza por uma deterioração progressiva da qualidade de vida da população indígena, a qual representava, à época, mais de 85% do total populacional fixado em território boliviano. A necessidade que se vislumbrava de incrementar o investimento em políticas públicas que atendessem a estas demandas sociais adquiria, assim, também um status de urgência. No entanto, a premissa que parece ter movido os governos que se seguem era a de que o simples ingresso do país no mercado mundial teria como conseqüência direta a melhora na qualidade de vida da população.

Tem início, assim, uma fase marcada por uma nova postura do Estado, que intenta dar cabo às reformas supostamente necessárias à modernização do país através da substituição das leis que até então vinham regulamentando o setor econômico por novos marcos jurídicos que favorecessem o investimento externo no país. Eleito em 1993, Sanchez de Losada inaugura e se torna o principal expoente desta Era na Bolívia. A primeira seção deste trabalho será destinada à análise das principais medidas levadas a cabo por Losada, de modo que se possa estabelecer as conexões devidas entre seu governo e a ascensão de Evo Morales, culminando no Decreto Supremo que nacionaliza as reservas de hidrocarbonetos. Na seção seguinte deste estudo, constatada a legitimidade política e jurídica do ato de Morales, abordarse-á a coerência da postura adotada pelo Brasil, supostamente o principal afetado pela nacionalização boliviana, diante do fato.

2 De Losada a Morales: o Estado com feições indígenas reascende as esperanças do passado

O Presidente eleito em 1993, Sanchez de Losada, enfrentaria, em seu primeiro mandato, o desafio de aliar a modernização da economia boliviana – interessante à classe média que lhe apoiava e da qual emergira - à necessidade de investimentos sociais que fossem capazes de reverter o quadro calamitoso em que se encontravam as populações mais pobres.

As reformas que marcam seu primeiro mandato teriam início ainda em 1994, sendo a primeira delas a Lei de Capitalização. Sua promulgação visava à criação de mecanismos de transferência da gestão das empresas do Estado para o setor privado, de forma que o patrimônio estatal fosse valorizado pela gama de investimentos que se esperava fosse resultar de sua associação com corporações estrangeiras. Na prática, a principal estatal boliviana – Yacimentos Petrolíferos e Fiscales Bolivianos - foi entregue a capitais externosPage 275 em condições muito favoráveis aos mesmos, enfraquecendo, paralelamente, a capacidade de fiscalização do Estado2. Ao contrario do que se intentava – a captação de investimentos estrangeiros na Bolívia, os quais seriam destinados a programas para a diminuição dos alarmantes índices de pobreza no país - esta reforma viria a beneficiar, essencialmente, o setor empresarial boliviano, capaz de usufruir dos avanços alcançados no setor econômico e as empresas estrangeiras que, sem ter de fazer uso de uma larga monta de investimentos, tiveram lucros altíssimos assegurados pela Lei de Capitalização.

Em contrapartida, medidas importantes também foram tomadas com o intuito de dar voz e institucionalizar a participação das classes populares no governo. Entre elas, figura a Lei de Participação Popular e de Descentralização Administrativa, a qual buscava introduzir um esquema descentralizado tanto na estrutura administrativa do Estado como na prestação de serviços sociais, outorgando um papel essencial aos municípios, os quais deveriam servir como articuladores entre o governo central e as necessidades locais. Neste sentido se deram, ainda, reformas nas áreas de educação e saúde, através da universalização do acesso a serviços básicos. Na área da educação se planejou um sistema educativo nacional, universal, participativo e obrigatório em nível primário e na saúde, um novo modelo sanitário que obedeceria a uma ótica de serviços descentralizados e focado, prioritariamente, nos níveis básicos de atendimento3.

A implementação destas reformas dependia, no entanto, da canalização dos investimentos externos para o setor, o que se tencionava obter com a lei de Capitalização. Fracassada esta tentativa, fadadas ao fracasso estariam também aquelas que de seus recursos dependiam para serem viabilizadas.

Mesmo vendo-se pressionado por movimentos populares provenientes principalmente da cidade de El Alto e por expoentes da classe média de Santa Cruz, o governo Sanchez de Losada estreitou ainda mais nos dois últimos anos de seu primeiro mandato as relações com o capital estrangeiro, especialmente o norte americano.

Condizente com a postura recomendada por este último, Losada virá a propor a erradicação das plantações de coca nos altiplanos bolivianos, as quais, além de serem as responsáveis pelo sustento de centenas de famílias desalbergadas pelo Estado, constituíam-sePage 276 em símbolos de uma cultura indígena milenar4. Este ato terá repercussão fortíssima nas regiões cocaleiras, das quais se destacava a de Chepare. É neste momento que a figura de Evo Morales entra em cena, destacando-se como o líder das manifestações de repúdio à proposta de Losada.

Ainda sobre as reformas promovidas em seu governo, sob o pretexto de incentivar o ingresso de empresas transnacionais, é elaborado e aprovado um marco jurídico orientado à privatização da indústria petroleira, nesta época a maior fonte de divisas do país.

Em 30 de Abril de 1996, é promulgada a Ley de Hidrocarburos n.º 1689, a qual traz drásticas mudanças com relação à propriedade dos hidrocarbonetos. Dispondo, inicialmente, que o Estado é proprietário das reservas de petróleo e gás natural enquanto estas se encontrarem em seu subsolo, institui os “contratos de risco5”, viabilizando a transferência desta propriedade às empresas transnacionais assim que estas descobrissem uma nova reserva e passassem a explorá-la, declarando-as campos comerciais.

Esta disposição seria apresentada à população boliviana da seguinte forma: as transnacionais dispostas em investir na exploração dos hidrocarbonetos bolivianos estariam comprometidas com o Estado no sentido de que, caso não fosse encontrada reserva de petróleo ou gás natural no campo explorado, deveriam assumir integralmente o prejuízo. Não obstante, uma vez encontrada a jazida, ela poderia ser explorada por estas empresas mediante o pagamento de impostos ao Estado.

Na realidade, o novo marco jurídico adotado pelo governo Losada facultava, além disso, às empresas “sócias” o direito de construir e operar dutos para o escoamento de sua própria produção e da de terceiros, numa manobra que retirava do Estado a possibilidade de fiscalizar a exploração de suas reservas nativas e delas se beneficiar de maneira razoável.

Este decreto exaltaria ainda mais os ânimos do povo boliviano, já que as principais jazidas encontravam-se na cidade de Santa Cruz, onde centenariamente se havia fixado o pequeno contingente branco e médio-classista da Bolívia. A maioria indígena, constituinte de uma densa nuvem de pobreza e insatisfação, estava situada no altiplano e nos vales bolivianos. Uma vez que o capital a ser recolhido pelo país através de impostos seriaPage 277 investido em políticas de combate à pobreza e redistribuição de renda nestas áreas, a população indígena sentiu-se a principal prejudicada e, em uma tomada de consciência ímpar na história boliviana, compreendeu-se como principal vítima dos fracassos políticos de seu país.

Enquanto o faturamento das empresas estrangeiras aumentava...

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