Templos que são fantasmas: bandeira, ouro e megahype

AutorRaúl Antelo
CargoRaúl Antelo, emérito ensaísta e estudioso da literatura, das artes e das humanidades, é professor titular aposentado do DLLV do CCE-UFSC e até recentemente membro do colegiado pleno do PPG em Literatura da UFSC. Este ensaio insere-se no projeto 'Caracterização do surrealismo' (FFI2016-75110-P).
Páginas10-24
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TEMPLOS QUE SÃO FANTASMAS
bandeira, ouro e megahype
Raúl Antelo
Gostaria de abordar a poética de Manuel Bandeira sob um prisma menos
corriqueiro. Sabemos que, na dialética material da modernidade, os fenôme-
nos residuais ou de decadência costumam ser precursores das grandes sínte-
ses por vir. Assim, um rápido exame da mercantilização do ofício de escritor,
circunscrito apenas ao ano 1928, a época de Macunaíma, ilumina-nos acerca
do movimento intrínseco da estética do poeta. Digamos, para ilustrar essa
ideia, que, em carta a Mário de Andrade, datada de 21 de junho desse ano,
Manuel Bandeira confessa ao amigo:
O Alvaro me convidou para colaborar nas revistas do Pimenta de Melo e eu atri-
buo esse gesto dele a umas conversas que tive aí com você. Tem pago pronto e
bem. Pela “Palinódia”, “Irene no céu” (saídos no nº de 9 de junho de Para Todos)
e o soneto “Ouro Preto” (a aparecer) deu centão. Outro centão por duas crônicas
bestinhas que entreguei anteontem. [...] A propósito dessas publicações se hou-
ver estranheza da gente antropófaga, você explique que eu só publiquei porque
me pagaram.1
Facilis descensus Averno. A primeira das “duas crônicas bestinhas” com-
prova a dúplice condição de vendedor e mercadoria coincidindo em uma única
pessoa: ela é “Greta Garbo, o rapazola que queria ser pintor e novos indícios
da existência de Deus”, publicada, com efeito, na Para todos, em 29 de setem-
bro de 1928. Forma e conteúdo confundem-se aí em uma mesma imagem-
-síntese. Transcrevo-a:
O rapaz nasceu no centro do cafange do fundo do rebolo, quer dizer, no mais re-
moto sertão do Nordeste. Desde menino gostava de pintar calungas. Desenhava
a carvão no muro dos quintais a curva do rio com a galhada da ingazeira caída no
remanso do poço. Reproduzia o traço dos parentes. Inventava cenas para histórias
da carochinha. Quando o sol desaparecia atrás da lomba do morro, sentia dentro
1 MORAES, Marcos Antonio de (Ed.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira.
São Paulo: Edusp, 2001, p. 393.
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de si uma vontade inexplicável de comunicar aos outros o que despertava em seu
íntimo a doçura das tintas, a melancolia da hora. Comoviam-no também os deta-
lhes da vida rude daquela gente da sua cidadezinha: o caçador à espreita, o vaquei-
ro aboiando o gado, a vendilheira velha cruzando os bilros à porta do mocambo,
a matuta sorrindo acanhada ao namorado. Queria pintar tudo isso! Nascer com
vocação de pintor em Pajeú das Flores deve ser um tormento tão duro quanto
viver desempregado em Niterói e apaixonar-se por Greta Garbo.
***
Um dia o rapazola resolveu conquistar Greta Garbo, isto é, vir estudar pintura no
Rio. Não tinha vintém. Saiu da cidadezinha natal a pé. Na primeira cidade a que
chegou pintou o salão do cinema. Foram os primeiros cobres que ganhou. Assim,
de cidade em cidade, alcançou o porto. Embarcou para o sul como praticante de
não sei quê a bordo. No Rio levou uma porção de tempo à procura de emprego.
Para isso frequentava o saguão da Câmara dos Deputados, onde de uma feita,
estando a escrever um bilhete que devia ser apresentado a certo deputado, arre-
batou-lhe o contínuo o papel quando ele só escrevera a inicial do seu nome de fa-
mília – Vieira. O bilhete dizia: “Doutor, peço-lhe um momento de atenção. Preciso
falar-lhe urgentemente. Carlos V.” O deputado pensou tratar-se de um doido com
mania de imperador e não atendeu. Amigos arranjaram-lhe dois empregos. Não
pôde ocupá-los porque lhe exigiram caderneta de reservista. Então sentou praça
como voluntário para obter o diabo da caderneta. Havia de possuir Greta Garbo!
No dia em que recebeu pela primeira vez o soldo entrou numa casa de loterias e
comprou um bilhete. Tirou a sorte grande.
Estou inclinado a acreditar que Deus existe.2
Sob o fetichismo dos objetos, o irresistível, mas não menos indecidível,
sex appeal de Garbo, ícone aliás compartilhado com Drummond, modula os
apelos da mercadoria, produzindo uma autêntica apoteose de empatia. Assim,
o menino em questão garatuja calungas, como Jorge de Lima; reproduz em
seus traços tanto a melancolia da hora, quanto a vida rude daquela gente,
tal como o próprio Bandeira; em suma, ele viu o mundo... e elecomeçava no
Recife, como o de Cícero Dias. O rapazola, como é fácil concluir, é um nor-
destino que, mesmo surpreendentemente, enfrenta uma contingência posi-
tiva, a própria identificação com a imagem. Já a segunda crônica refere-se à
demolição do engenho de Megahype, de grande repercussão na imprensa da
época, como atesta a notícia de O Jornal do Rio de Janeiro, então dirigido por
um patrimonialista como Rodrigo Mello Franco de Andrade, e logo reprodu-
zida, em A Província de Recife em 28 de setembro de 1928, junto com outras
2 BANDEIRA, Manuel. Greta Garbo, o rapazola que queria ser pintor e novos indícios da existên-
cia de Deus. Para todos, Rio de Janeiro, p. 17, 29 set. 1928, mais tarde em Crônicas inéditas I.
São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 315-316.
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matérias,3 despertando assim a consciência pela preservação do acervo his-
tórico, de tal sorte que essa trágica destruição deixaria contudo uma marca
positiva no processo de preservação material do Brasil. Com efeito, a criação
da Inspetoria de Monumentos gerou, paradoxalmente, a demolição da casa-
-grande do engenho Megahype, que era considerada um dos máximos expo-
entes da arquitetura rural do período colonial. Esse símbolo do passado açu-
careiro pernambucano foi mandado demolir pelo seu proprietário, João Lopes
de Siqueira Santos, assim que tomou conhecimento do interesse do governo
em preservar o edifício, com medo, obviamente, dos prejuízos decorrentes da
alienação. Muito antes, portanto, de Gilberto Freyre descrever o engenho em
Nordeste,4 ou das fotografias tiradas por seu irmão, Ulysses Freyre, ou das pin-
turas de Manoel Bandeira,5 feitas a partir das fotos de Ulysses, ou mesmo das
imagens de Mário Nunes e Fédora do Rego Monteiro, irmã do Vicente, a crô-
nica de Bandeira atesta o caráter de ruína do moderno. Com efeito, Bandeira
não desconhecia o Livro do Nordeste (1925), editado por Gilberto,6 para o
qual, aliás, colaborou, mas conste que, já no prefácio à primeira edição de
Casa grande e senzala (1933), o próprio Freyre refere-se à “estupidamente di-
namitada, a casa-grande de Megaípe”.7 Argumenta então que “a casa-grande
venceu no Brasil a Igreja”,8 o que em grande parte explica o atraso na imple-
mentação de Universidades, muitas delas fundadas pelos jesuítas, no resto da
América, e, no entanto, não deixa de apontar contudo a ironia de que
3 Ver também “Botaram abaixo a casa de Megahype”. A Província, Recife, 14 set. 1928, p. 3 e
“Devemos cuidar de Guararapes”. A Província, Recife, 7 nov. 1928. Ainda, BANDEIRA, Manuel.
Um purista do estilo colonial [sobre José Mariano]. A Província, Recife, 4 nov. 1928, 2ª seção,
p.1; Idem, Salvemos a Madre Deus. Ibidem, 1 dez 1928; ou Idem, Brasil, patrimônio desco-
nhecido”. Ibidem, 21 maio 1929; “Ouro Preto, monumento nacional” (O Estado de Minas, 20
jul.1933), esta última resgatada por Júlio Castañon Guimarães em Crônicas inéditas II. São
Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 58-60.
4 FREYRE, Gilberto. Nordeste. Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do nor-
deste do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.
5 O pintor Manoel Bandeira (1900-1964), colaborador do Livro do Nordeste (1925), foi descrito
por seu quase homônimo, o poeta, como “um grande artista pernambucano”. Em Crônicas da
Província do Brasil, confessa no texto com esse título que “há muita gente que toma como
meus os desenhos do meu xará. Quem me dera que fossem! Eu não hesitaria um minuto em
trocar por meia dúzia de desenhos do xará toda a versalhada sentimentalona que fiz, em
suma, porque não pude nunca fazer outra coisa”. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974. p. 454-455. Ver também, do próprio Bandeira, “Xará, o
batuta é você!”. A Província, Recife, 2 out. 1928 e “Minas Gerais no lápis de Manoel Bandeira”.
Ibidem, 26 jan. 1929.
6 FREYRE, Gilberto (Ed.). Livro do Nordeste. Recife: Arquivo Público Estadual, 1979. [Edição
Comemorativa do primeiro Centenário do Diário de Pernambuco].
7 Idem, Casa-grande e senzala. Ed. Guillermo Giucci, Enrique Rodriguez Larreta e Edson Nery da
Fonseca. Madri-São Paulo: ALLCA XX, 2002, p. 18-19.
8 Ibidem, p. 15.
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por falta de potencial humano, toda essa solidez arrogante de forma e de material
foi muitas vezes inútil: na terceira ou quarta geração, casas enormes edificadas
para atravessar séculos começaram a esfarelar-se de podres por abandono e falta
de conservação. Incapacidade de bisnetos ou mesmo netos para conservarem a
herança ancestral.9
E praticamente conclui o argumento do prefácio dizendo que,
Em Pernambuco e Alagoas, com o desenvolvimento das usinas de açúcar, o la-
tifúndio só tem feito progredir nos últimos anos [...] O escravo foi substituído
pelo pária de usina; a senzala pelo mocambo; o senhor de engenho pelo usineiro
ou pelo capitalista ausente. Muitas casas-grandes ficaram vazias, os capitalistas
latifundiários rodando de automóvel pelas cidades, morando em chalés suíços e
palacetes normandos, indo a Paris de vez em quando.10
Quand le bâtiment va, tout va. O raciocínio, além de um poema de Ascenso
Ferreira, “A casa-grande de Megahype”,11 estrutura a crônica de Bandeira, sua
estreia na Para todos, que é uma das “duas crônicas bestinhas”, útil, senão para
rodar de automóvel pela cidade, e muito menos para ir a Paris de quando em
vez, ao menos para pagar as contas e chegar de fato ao fim do mês. Prova-se
dessa forma, como previra Benjamin, que o dandismo é o último brilho de he-
roísmo na decadência.12 Transcrevo-a.
Era a mais linda casa de engenho de todo o Brasil. Tinha a incomparável nobreza
que os séculos ajuntam às obras de arte já de si belas. Sobre o frontal da porta de
entrada trazia impressa uma data – 1696. Porém era mais antiga. Aquelas vene-
ráveis paredes mestras vinham do começo do século. Já estavam de pé quando os
holandeses invadiram a praia do Pau Amarelo. Eram contemporâneas das lutas
que assinalaram as primeiras manifestações de uma consciência brasileira bem
definida. Quando os pernambucanos, comandados por Mathias de Albuquerque
não se puderam mais defender no Arraial do Bom Jesus e se retiraram com suas
famílias caminho de Alagoas, de certo que terão passado bem perto de Megahype.
Mais tarde pelas suas cercanias correram em guerrilhas de emboscada os insur-
9 Ibidem, p. 15.
10 Ibidem, p. 29.
11 FERREIRA, Ascenso. Canna caianna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1941, p. 23. O livro, com
ilustrações de Lula Cardoso Ayres e harmonizações musicais para cada poema de Souza Lima,
é dedicado a Manuel Bandeira e Mário de Andrade.
12 “Les tableaux entretiennent désormais avec le marché la double relation d´être des valeurs
marchands et quelque chose de radicalement autre, qui ne leur donne une nouvelle aura
qu´en faisaint miroiter la marchandise dans son apparence. Ainsi, seulement, transfigurée, la
beauté, comme promesse de bonheur, du non-encore advenu, vient à la rencontre de l´autre
flaneur moderne: le collectionneur d´oeuvres d´art”. ISHAGPOUR, Youssef. Aux origines de
l´art moderne. Paris: La Différence, 1989, p. 75.
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gentes da reconquista que impuseram a el-rei a vontade pernambucana de guar-
dar aquelas terras para o Brasil. Por ali se bateram em 1710 os bandos inimigos dos
senhores de engenho de Olinda e dos ricos mascates do Recife. Daquele recanto
do Cabo partiram os homens armados do Morgado Paes Barretto para atacar os
republicanos da Confederação do Equador...
Mais de três séculos de vida pernambucana. Três séculos de vida de engenho...
Não admira que a velha mansão acabasse envolvida numa atmosfera de assom-
bramento. Conta-se que a horas mortas havia entre aquelas paredes decrépitas
rangidos de seda, risos e reboliço de festa. Foi o que por tanta noite manteve à
distância os depredadores de ruínas.
João Lopes de Siqueira Santos, usineiro riquíssimo, atual senhor de Megahype,
acaba de mandar botar abaixo a mais linda das nossas relíquias rurais do século
XVII. Pensar-se que o Sr. Siqueira Santos pertence a uma velha linhagem de se-
nhores de engenho! Conheço patrícios que se tivessem fortuna teriam comprado
um município inteiro só para possuir aquelas paredes em ruína. O Sr. João Lopes de
Siqueira Santos não é sensível a estas coisas. Com todas as suas usinas ele é agora
o homem mais pobre de Pernambuco.13
Para o anarquista Auguste Blanqui, sintomaticamente, nada mais triste
que essa imensa agitação de pedras suscitada pela mão do despotismo, fora
da espontaneidade social, pois não há sintoma mais lúgubre de decadência.14
Ciente desse paradoxo, presente já em Baudelaire e em sua fortuna crítica,
Barbey d’Aurevilly, Pontmartin, Brunetière, Bourget, mas não menos nos “ran-
gidos de seda, risos e reboliço”, tão proustianos e, por isso mesmo, viscontia-
namente leopardescos; e além do mais lidando, portanto, com os dois extre-
mos do capitalismo, de um lado, a ascensão a qualquer custo, o deslocamento
e a alienação na imagem, bem como, de outro, a elegia lírica dos tempos pas-
sados, Bandeira fala dos outros para escamotear que ele mesmo é o rapazola
fascinado pela imagem que destruiria a própria herança para poder sobrevi-
ver. “L’entrepreneur est toujours suspendu entre le gain et la ruine.”15 Assim,
o soneto “Ouro Preto”, inspirado pela visita de 1928, que se integraria à Lira
dos cinquenta anos (1940), a poesia do mezzo del cammin do poeta, prefigura
também seu roteiro de Vila Rica, Guia de Ouro Preto (1938).
Ouro branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada
Ribeirão trepidante e de cada recosto
De montanha o metal rolou na cascalhada
Para o fausto d’El-Rei, para a glória do imposto.
13 BANDEIRA, Manuel. A casa de Megahype. Para todos, Rio de Janeiro, n. 513, p. 27, 13 out.
1928. Ver também, do mesmo autor, “A grande arquitetônica dos antigos mexicanos”. A
Província, Recife, 18 ago. 1929, p. 3-4.
14 “Il n’est pas de symptôme plus lugubre de la décadence”. BLANQUI, Auguste. Critique Sociale,
v. I: Capital et Travail, Paris, Alcan, p. 111, 1885.
15 Ibidem, p. 30.
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Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:
Pedras… templos que são fantasmas ao sol-posto.
Esta agência postal era a Casa de Entrada…
Este escombro foi um solar… Cinza e desgosto!
O bandeirante decaiu – é funcionário.
Último sabedor da crônica estupenda,
Chico Diogo escarnece o último visionário.
E avulta apenas, quando a noite de mansinho
Vem, na pedra-sabão lavrada como renda,
– Sombra descomunal, a mão do Aleijadinho!16
O metal rolou, mas que resta do esplendor de outrora? Um artista-fun-
cionário. Como Benjamin já apontara, a superação dos conceitos de progresso
e de decadência são apenas dois lados da mesma medalha. E essa medalha
se chama cansaço, tédio do capitalismo,17 por isso, em certa ocasião, a 29
de setembro daquele mesmo ano 1928, Bandeira admite também a Mário de
Andrade:
Meu estribilho é um pouquinho diferente do de Macunaíma: – Ai que fadiga! Com
essa coisa de escrever um artigo por semana para a Província e uma coisa ou outra
para Ilustração e Para Todos fico pregado. Só faço isso porque pagam bem e eu
vivia apertadíssimo com o quinhentão do montepio. (O Álvaro me paga 50 por
poema ou croniquinha. O Gilberto 300 por quatro artigos mensais). Escrevo o
diabo do artigo e num instante a outra semana chega! Agora o Rodrigo, que me
quer muito bem, me chamou pra fazer com ele o número de Minas de O Jornal,
ocasião de ganhar uns cobres bons. Não posso recusar.18
O ouro branco é preto e podre.
Uma geração depois, em 1957, num debate sobre o concretismo, Joaquim
Cardoso nos propõe ler todo texto à maneira de uma imagem, aliás num pro-
cedimento comum aos estudiosos do patrimônio e que não raro troca a hori-
zontalidade da leitura poética pela verticalidade da leitura iconográfica. Nesse
sentido, a leitura de arquivo seria, como a do Lance de dados, uma leitura do
peut-être e, mais ainda, o texto, bem como a cena, o povo que ela retrata,
seria sempre “por-vir”, o que não significa algo futuristicamente, fascistamen-
16 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Poesias reunidas. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1970, p. 155.
17 LESMES, David. Aburrimiento y capitalismo. En la escena revolucionaria: París, 1830-1848.
Valencia: Pre-textos, 2018.
18 MORAES, Marcos Antonio de (Ed.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira,
op. cit., p. 407.
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te vindouro, mas algo que não cessa de chegar, pois está sempre chegando.
Portanto sempre atrasado, diferido. Há, em suma, uma inequívoca afinidade
entre a obra de arte e o povo que ainda não existe, já que a função da obra
seria contribuir não já para representar o existente, mas para inventar o ine-
xistente, criar um valor, um povo que falta em seu lugar, povo esse tomado em
seu devir transformador, não raro, bastardo ou inferior, dominado, mas sem-
pre em devir, e por definição inacabado, sem-caráter. Eis a posição de Joaquim
Cardoso:
A experiência que, no momento presente, estão realizando alguns jovens poetas
paulistas com o fim precípuo de uma poesia visual, me fez deter a atenção sobre
os meios dessa possibilidade. A primeira manifestação desse sentimento de lite-
ratura visual aqui no Brasil, creio eu, foi a de Manuel Bandeira quando, há cerca
de quinze anos pediu a Juanita Blank que desenhasse em cartão, com letras bo-
nitas, para ser emoldurado, o famoso poema de Mallarmé: Un coup de dés jamais
n’abolira le hasard. Tive a oportunidade de ver esse desenho nas mãos do grande
poeta pernambucano, por ocasião de uma das suas frequentes visitas ao Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico, onde prestei serviços há algum tempo. Posto
que ao poema de Mallarmé não se possa ainda chamar de visual, era sem dúvida
uma tentativa original no poeta francês, bem compreendida pelo brasileiro.
Pode-se, na realidade, dar ao poema uma forma da mesma natureza da do quadro
ou desenho? Para isso, evidentemente, é preciso utilizar certos valores literários
que correspondam mais ou menos aos valores pictóricos.
Li em Franz Roh, mas suponho que isto já esteja implícito nas ideias de Wölflin,
que a pintura é uma arte visual de apreensão instantânea ou simultânea, e a li-
teratura, a música são artes temporais, que se apreendem de maneira sucessiva;
em suma estavam ali aplicadas às artes as duas noções fundamentais em que se
baseiam a multiplicação e a soma lógicas: simultaneidade e sucessão. Mas essa
simultaneidade de visão aplicada à pintura é, a meu ver, inexata: ninguém nunca
será capaz de ver um quadro num só lance de vista, ou de vê-lo em todos os por-
menores olhando-o ligeira e instantaneamente; em geral se percorre com os olhos
mais ou menos demoradamente as diferentes partes do seu conjunto: há, portan-
to, uma sucessão no espaço e no tempo; agora, o que caracteriza essa sucessão é
a sua arbitrariedade porque o quadro pode ser percorrido em qualquer direção; já
para a leitura requisito se faz de uma direção fixa, podendo-se entretanto ainda
acompanhar com os olhos o texto escrito em tempo variável: devagar como o
menino que começa a aprender a ler, ou tão depressa como se exprime um locutor
de rádio especializado em turfe. Para a música a condição de variação no tempo
é mais restrita.19
A cópia do Lance de dados, feita pela companheira de Bandeira, Juanita
Blank, diga-se de passagem, retroage a 1942, época da conferência do poeta,
na Academia Brasileira de Letras, pelo centenário de Mallarmé, onde Bandeira
19 CARDOSO, Joaquim. O poema visual ou de livre leitura. Para todos, Rio de Janeiro-São Paulo,
v. 1, n. 21-22, p. 4, mar-abr. 1957.
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contesta a noção de poesia pura, com o argumento da inexistência de autono-
mia poética com relação às outras artes, porque, como ele mesmo diz, a sua
poesia está referta de elementos plásticos, no que é ainda bem parnasiana,
e elementos musicais, no que consuma, com o seu caráter espiritual, o sim-
bolismo.20 Entre-lugar de Mallarmé, portanto, desconstruindo periodizações,
aquilo mesmo que Derrida apontaria em seu famoso verbete no Tableau de la
littérature française.
A dupla com Di
Mas é de outros tableaux que gostaria de falar. Já que ninguém é capaz
de ver uma imagem num lance só, já que sempre a lemos sempre numa su-
cessão de espaço e tempo, pautada pela mais contingente arbitrariedade,
digamos que Bandeira aparece nas páginas de Para todos em parcerias com
Di Cavalcanti, eloquentemente retratado por ele, respondendo displicente-
mente a um inquérito de Baptista Jr. que, sem dúvida, aborrece-o.21 É de Di
Cavalcanti, também, a ilustração para o poema “Evocação Recifense” (dedica-
do sintomaticamente a Manuel Bandeira22 e Willy Lewin), de Carlos J. Duarte,
20 “Manuel Bandeira talvez seja o dono da dicção mais sutil da poesia moderna brasileira. É um
poeta que, dentro de uma aparente simplicidade, joga com uma requintada e sofisticada su-
tileza. Bandeira tem um poema lindo, ‘Preparação para a Morte’, que eu analisei exatamente
usando a entropia, o problema da entropia, da morte térmica. ‘A vida é um milagre/ Cada
flor com sua forma/ Sua cor/ Seu aroma/ Cada flor é um milagre/ Cada pássaro com sua plu-
magem/ seu vôo/ seu canto/ cada pássaro é um milagre./ O espaço infinito/ o espaço é um
milagre./ O tempo infinito/ O tempo é um milagre/ A memória é um milagre/ A consciência
é um milagre/ Tudo é milagre/ Tudo, menos a morte/ Bendita a morte que é o fim de todos
os milagres.’ A morte térmica, esse processo fatal da entropia que sempre cresce... parece-me
que ele fez realmente a transposição analógica desse problema para a poesia. A vida está na
fronteira do caos, num certo sentido. Ela, a vida, seria, se nós fôssemos formulá-la de acordo
com aquele poema do Manuel Bandeira, um enclave de ordem que sustenta, por um deter-
minado momento, essa morte térmica. Há uma dialética entre o acaso e ordem. Quer dizer, o
poema é a constelação, a constelação é resgatada do acaso”. CAMPOS, Haroldo de. A vida é
fronteira do caos; o poema é constelação resgatada do acaso. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9
jul. 1995.
21 BAPTISTA Jr. Uma enquête literária. A resposta do sr. Manuel Bandeira. Para todos, Rio de
Janeiro, p. 21, 6 out.1928.
22 Como conta o próprio Gilberto, “Evocação do Recife” tinha sido publicado no Livro do Nor-
deste: “o poema em certo sentido mais brasileiro de Manuel Bandeira – ‘Evocação do Recife’
– ele o escreveu porque eu pedi que ele escrevesse. O poeta estranhou a princípio o pedido
do provinciano. Estranhou que alguém lhe encomendasse um poema para edição especial
de jornal como quem encomenda um pudim ou uma sobremesa para uma festa de bodas de
ouro. Não estava acostumado – me escreveu de Santa Teresa – a encomendas dessas. Parece
que teve vontade de não escrever poema nenhum para tal edição – que se tornou depois o
Livro do Nordeste, organizado em 1925 para comemorar o primeiro centenário do Diário
de Pernambuco. Mas um belo dia recebi ‘Evocação do Recife’” (FREYRE, Gilberto. Manuel
Bandeira, recifense. In: Perfil de Euclydes e outros perfis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p.
173-181), poema que, no ano seguinte, sairia também numa edição de A Província (30 nov.
1926).
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poeta que integrara, com Jorge de Lima, Diegues Júnior, Aurélio Buarque e
Valdemar Cavalcanti, entre outros, o grêmio literário Guimarães Passos, nas
Alagoas. Mas é em “Samba” (1924), óleo de Di Cavalcanti, em que gostaria
de me deter. Nesses exemplos todos trata-se de uma mesma cena primordial,
capta-se um povo ainda inexistente, o que mostra aliás, muito sutilmente, um
poema como “Anti-antropofagia”:
Quando o barco, levado pelo vento,
aportou em Palmeira dos Indios,
nas costas das Alagôas,
nascia o sol de uma sexta-feira linda.
Os indios despertaram.
Os indios, como nós católicos italo-brasileiros,
não comem carne na sexta-feira, mesmo não sendo santa.
Se não fosse isso,
eles teriam comido logo o comandante do barco,
que era um sujeito gordo e bonitão.
Se preparavam para a pescaria,
quando um tripulante se dirigindo a um frade,
que passeava na praia, numa vênia, disse:
— “Dom Sardinha, já está na hora da missa...”
Foi a conta.
— Quem mandou ele ter nome de peixe?!...23
O poema em questão é uma evidente reescritura do “Erro de português”
(1925) de Oswald de Andrade: “Quando o português chegou / Debaixo de
uma bruta chuva / Vestiu o índio / Que pena!/ Fosse uma manhã de sol / O
índio tinha despido / O português”,24 Ambos poemas descansam numa prova
contra-factual: se os colonizadores não tivessem chegado numa sexta-feira,
os índios teriam logo comido o comandante do barco e, além do mais, se fos-
se uma manhã de sol, teriam despido o português e outra seria a história.
Cabe registrar que o poema anti-antropofágico é da autoria de Lúcio Latino,25
também autor de “A vingança da porta”, uma sátira ao poema de Alberto de
23 LATINO, Lúcio. Anti-antropofagia. Para todos, Rio de Janeiro, a. 10, n. 516, p. 17, 3 nov. 1928.
24 ANDRADE, Oswald de. O santeiro do mangue e outros poemas. São Paulo: Globo / Secretaria
de Estado da Cultura, 1991, p. 95.
25 Na Para todos, Lucio Latino publicou também “A descoberta do Brasil”: “Por acaso Pedr´Alva-
res Cabral / descobriu o Brasil./ Porém, si Pedr´Alvares Cabral tivesse adivinhado / que pra
lá da Bahia / existiam Sergipe, Alagoas, Parahyba / Piaui, Amazonas,Maranhão / Rio Grande
do Norte e Ceará; / e pra cá Minas Gerais e Goyaz / nem mesmo por acaso / Pedr´Alvares
Cabral teria descoberto / os Estados Unidos do Brasil”. Ele foi estampado na Para todos de
25 maio 1929, p. 42. Na mesma revista lemos ainda “Meu coração” (28 jul. 1928, p. 52) e “O
meu único desejo” (6 out. 1928, p. 54).
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Oliveira. Em 29 de setembro de 1928, a Revista da Cidade (Rio de Janeiro, nº
123) reproduziu esse poema paródico junto com uma famosa peça de Clã do
Jaboti, homônima, aliás, da tela de Di Cavalcanti, “Sambinha”, a mesma que
ilustra a “Anti-antropofagia”. Todos lembram decerto daquela cena em que
“Vêm duas costureirinhas pela rua das Palmeiras./ Afobadas braços dados de-
pressinha/ Bonitas, Senhor! que até dão vontade pros homens da rua”. As tais
costureirinhas vão explorando os perigos da cidade modernizada, até o poe-
ta extasiar-se diante delas. “Tão bonitas, tão modernas, tão brasileiras!/Isto
é.../ Uma era ítalo-brasileira./ Outra era áfrico-brasileira./ Uma era branca./
Outra era preta”. Ou seja, a festiva mescla racial da tela de Di Cavalcanti é a
mesma mescla de credos (“nós católicos italo-brasileiros”) da anti-antropofa-
gia de Lúcio Latino. Lemos essa mescla assintética, de impossível fusão, tanto
no horizontal quanto na vertical. Perduram horizontalmente relações de ser-
vidão, muito embora já se possam superpor, verticalmente, o tempo sucessivo
do trabalho e o tempo cíclico da festa. Constata-se, assim, o indisfarçável di-
vórcio latino-americano entre Populus e plebs, Povo e povo, bios e zoé: de um
lado, com P maiúsculo, o sujeito político da soberania, branco, o que dá forma
à cena (descreve-a, pinta-a) e de outro, com p minúsculo, a multiplicidade
preta de corpos sofrentes aí retratados:
Parafraseando o postulado freudiano sobre a relação entre Es e Ich, se poderia dizer
que a biopolítica moderna é regida pelo princípio segundo o qual “onde existe vida
nua, um Povo deverá existir”; sob condição, porém, de acrescentar imediatamente
que este principio vale também na formulação inversa, que reza “onde existe um
Povo, lá existirá vida nua”. A fratura que se acreditava ter preenchido eliminando
o povo [...] se reproduz assim novamente, transformando o inteiro povo [...] em
vida sacra votada à morte e em corpo biológico que deve ser infinitamente purifi-
cado [...]. E de modo diverso, mas análogo, o projeto democrático-capitalista de
eliminar as classes pobres, hoje em dia, através do desenvolvimento, não somente
reproduz em seu próprio interior o povo dos excluídos, mas transforma em vida
nua todas as populações do Terceiro Mundo.26
Mas quem é este Lúcio Latino, de sensibilidade educada nessa falta de
alternativas diante da qual só resta tocar um tango argentino, como no
“Pneumotorax” de Bandeira? Não é outro que Humberto de Campos (1886-
1934), cuja dicção, mimetizada à dos modernistas, passa a sofrer o impacto
dessa linguagem arruinada, ambiciosa mas fragmentada, do povo incluído em
sua própria exclusão. A opção, certamente, provocaria a “estranheza da gente
26 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 186.
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antropófaga”, como dizia o autor de Libertinagem a seu confidente Mário de
Andrade, e talvez em um grau muito maior do que a escrita de Bandeira para
grandes públicos de massa. Como ele,
Humberto de Campos enfrenta os bárbaros modernistas tentando ser um ante-
passado sereno em meio à balbúrdia dos moços, cultuando a arte do bem escrever
e louvando religiosamente o estilo, espécie de último dos helenos. Seu pensamen-
to social e político parece afinar com suas premissas estéticas. Sua simpatia pelas
camadas mais humildes é meramente sentimental, desprovida de colaboração
mais penetrante e efetiva. Partidário de um tirano “filántropo, instruído, inteli-
gente e liberal”, reedição de um despotismo esclarecido um tanto ou quanto tem-
porão, o autor de O arco de Esopo nutre pelos segmentos socialmente minoritários
um paternalismo bem conhecido — o mesmo encontrável num largo grupo de
intelectuais que está atado ideologicamente à ordem senhorial decadente, que
vislumbrou, com a convulsão republicana e em nome da modernização do país,
uma oportunidade de reassumir posições de destaque e mando, no aconchego
do poder. Este projeto foi abortado na medida em que instaurou-se um modelo
capitalista, que prescindiu da chefia de uma elite pensante. A pena, ao invés de
desenhar a auréola da glória, torna-se meio de sobrevivência. A literatura deixa de
ser puro sacerdócio para passar a ser um produto a mais, numa sociedade compe-
titiva e de mercado.27
Bandeira lucra com a desgraça: vende ruínas, no que prepara a estética
contemporânea do arquivo.28 A ideia nos permite, portanto, situar Bandeira
entre Oswald de Andrade e Humberto de Campos, entre o artista que ganha
a loteria e o senhor de engenho que, mesmo tudo perdendo, ensaia alianças.
Sabemos aliás que o poeta moderno elabora a relação traumática entre a cons-
telação e o abismo, que pode se manifestar na contingência entre um lance
de dados e a leveza de uma pluma ou a fatal atração do vórtice, distribuindo,
no próprio espaço, massas ou informações, ora verticais, ora horizontais. E sa-
bemos também que Benjamin foi pioneiro em perceber de que modo esse re-
batimento de eixos era indicativo do fim da literatura de intenção referencial.
Nosso tempo, assim como está em contrapposto com o Renascimento pura e sim-
plesmente, está particularmente em oposição à situação em que foi inventada a
arte da imprensa. Com efeito, quer seja um acaso ou não, seu aparecimento na
Alemanha cai no tempo em que o livro, no sentido eminente da palavra, o Livro
dos Livros, tornou-se, através da tradução da Bíblia por Lutero, um bem popular.
Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, vai ao encontro de seu
fim. Mallarmé, como viu em meio à cristalina construção de sua escritura, certa-
mente tradicionalista, a imagem verdadeira do que vinha, empregou pela primeira
27 REIS, Roberto. Por uma arqueologia do modernismo. Letras, Curitiba, n. 37, p. 109-110, 1988.
28 JOUANNAIS, Jean-Yves. El uso de las ruínas. Trad. J. Ramón Monreal. Barcelona: Acantilado,
2016.
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vez no coup de dés as tensões gráficas do reclame na configuração da escrita. O
que depois disso foi empreendido por dadaístas em termos de experimentos de
escrita não provinha do plano construtivo, mas dos nervos dos literatos reagin-
do com exatidão e por isso era muito menos consistente que o experimento de
Mallarmé, que crescia do interior de seu estilo. Mas justamente através disso é
possível reconhecer a atualidade daquilo que, monadicamente, em seu gabinete
mais recluso, Mallarmé descobriu, em harmonia preestabelecida com todo o acon-
tecer decisivo desses dias, na economia, na técnica, na vida pública. A escrita, que
no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma,
é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais
heteronomias do caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma. Se
há séculos ela havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tor-
nou-se manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acamar-se
na impressão, ela começa agora, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente
do chão. Já o jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filme e reclames forçam
a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. E, antes que um contem-
porâneo chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de
letras cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua penetração na ar-
caica quietude do livro se tornaram mínimas. Nuvens de gafanhotos de escritura,
que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito para os habitantes das grandes
cidades, se tornarão mais densas a cada ano seguinte. Outras exigências da vida
dos negócios levam mais além. A cartoteca traz consigo a conquista da escrita
tridimensional, portanto um surpreendente contraponto à tridimensionalidade da
escrita em suas origens como runa ou escritura de nós. (E hoje já é o livro, como
ensina o atual modo de produção científico, uma antiquada mediação entre dois
diferentes sistemas de cartoteca. Pois todo o essencial encontra-se na caixa de
fichas do pesquisador que o escreveu e o cientista que nele estuda assimila-o à sua
própria cartoteca.) Mas está inteiramente fora de dúvida que o desenvolvimento
da escrita não permanece atado, a perder de vista, aos decretos de um caótico la-
bor em ciência e economia, antes está chegando o momento em que quantidade
vira em qualidade e escritura, que avança sempre mais profundamente dentro do
domínio gráfico de sua nova, excêntrica figuralidade, tomará posse, de uma só
vez, de seu teor adequado. Nessa escrita-imagem os poetas, que então, como nos
tempos primitivos, serão primeiramente e antes de tudo calígrafos, só poderão
colaborar se explorarem os domínios nos quais (sem fazer muito alarde de si) sua
construção se efetua: os do diagrama estatístico e técnico. Com a fundação de
uma escrita conversível internacional eles renovarão sua autoridade na vida dos
povos e encontrarão um papel em comparação ao qual todas as aspirações de
renovação da retórica se demonstrarão como devaneios góticos.29
Benjamin propõe-nos, em suma, uma legibilidade das imagens que se en-
contra no diagrama pluridimensional, como previra, aliás, Warburg, e que nos
permite resgatar, oscilando de horizontal para vertical, a pervivência póstuma
do inexistente. Constata-se, assim, que não há história da literatura sem his-
29 BENJAMIN, Walter.Rua de mão única. 5. ed. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos
Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 27-29.
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tória das imagens e esta mesma não existe sem uma filosofia do tempo, sem
uma arqueologia da cultura e, em última análise, sem filosofia política, sem um
pensamento acerca do contemporâneo.30 Ora, no Livro do Nordeste, Gilberto
Freyre dizia que a casa de Megahype dava à paisagem uma como nota feudal,
mais até, falava de verticalidade feudal a desafiar a horizontalidade burguesa.
Por outro lado, saudando a emergência de Ascenso Ferreira, observa Bandeira
que o poeta é grande em quatro dimensões:
Natural de Palmares, onde viveu até os 26 anos.
— De quê que você vivia?
— De política...
Mas é mentira. Viveu de pastoris, de maracatus, de boi-bumbás, de emboladas,
de reisados. A substância e os ritmos dessas formas populares dão um cunho per-
sonalíssimo aos seus poemas. Foi o primeiro de nós a se servir em poesia culta do
ritmo do “martelo”:
— “Lá vem Pé-de-Vento!”
— “Lá vem Tira-Teima!”
— “Lá vem Fura-Mundo!”
— “Lá vem Sarará!”
E é admirável como de medida tão fortemente ritmada ele sabe passar sem tran-
sição aos ritmos mais dissolutos do verso livre:
— “Danou-se! vai tirar a argolinha!”
O poema “Cavalhada”, a que pertencem estes fragmentos, é formidável como “rit-
mo” e delicioso como evocação do tradicional festejo popular.
Ascenso Ferreira veio pessoalmente ao Rio trazer o seu livro Catimbó. O livro em
si já é belo: primoroso trabalho gráfico de José Maria de Albuquerque e Mello, com
alguns desenhos de outro artista e poeta pernambucano, Joaquim Cardozo.
Na cavalhada da poesia de inspiração popular brasileira a gente sente que Ascenso
vai tirar a argolinha...
— “Tirou!!!”
— “Música, seu mestre!”
— “Palmas, negrada!”31
30 DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon
Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002; Idem, Connaissance par kaleidoscope. Morale du joujou et
dialectique de l’image selon Walter Benjamin. Revue Études photographiques, Paris, n. 7, maio
2004; Idem, Ante el tiempo. Historia del arte y anacronismo de las imágenes. Buenos Aires:
Adriana Hidalgo 2008; Idem, Remontage du temps subi. L’œil de l’histoire, 2. Paris: Minuit,
2010; Idem, L’ivresse des formes et l’illumination profane. In: CARERI, Giovanni; Didi-Huber-
man, Georges. L’histoire de l’art depuis Walter Benjamin. Paris: Mimésis, 2015.
31 BANDEIRA, Manuel. Ascenso Ferreira. Para Todos, São Paulo, p. 28, 17 dez. 1927.
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A partir, portanto, das observações de Joaquim Cardoso e da própria ava-
liação do poeta de Cana caiana, cujo ritmo foi captado pelo debussyano Sousa
Lima,32 caberia talvez pensar que se Bandeira foi pioneiro na captação verti-
cal do poema, tentou, dessa maneira, materializar um ritmo dissoluto, a sus-
pensão vibratória entre a leitura sucessiva (horizontal), imposta pelo senso
comum, e a leitura evocativa e anamnésica (vertical), ancestral e rapsódica,
que precisamente desafia todo consenso. Não espanta, portanto, que o gesto
do poeta seja, ao mesmo tempo, “iniciático e epilogante”, embora sempre de
autêntica liturgia ateológica.33 Afinal, uma ruína, o engenho de Megahype,
levara-o a acreditar que Deus existe, ainda que na forma de uma dispersão
agônica captável apenas no peut-être.
32 Souza Lima morou em Paris de 1919 a 1930, estudando a obra de Debussy e Ravel. Ao retor-
nar, participou do Clube de Artistas Modernos de Flávio de Carvalho. Cf. LIMA, João de Souza.
Moto perpetuo, a visão poética da vida através da música: autobiografia do maestro Souza
Lima. São Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1982.
33 AGAMBEN, Giorgio. II Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell’economia e del
governo. Torino: Bollati Boringhieri, 2009, p. 261-262. [Homo sacer, II, 2].
Recebido em 18 de dezembro de 2018
Aceito em 12 de fevereiro de 2019

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