Classificação teleológico-normativa dos animais

AutorMarcos Augusto Lopes de Castro
CargoMédico Veterinário formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Páginas201-230

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1. Introdução

Trata-se de uma classificação de Animais, de caráter antropocêntrico, segundo suas finalidades. Desde já esclarecemos que ela tem um viés retrospectivo, quando utiliza termos empíricos e diplomas legais já existentes. Estes diplomas estão direcionados às finalidades determinadas pelo ser humano e refletem a qualidade do tratamento a que são submetidos. E um viés prospectivo ao demonstrar quais serão os objetivos das normas que deverão ser produzidas em busca da melhoria na qualidade de vida desses animais.

Cada cultura em cada momento poderá dar um tratamento diferente para cada um desses grupos de Animais, o que torna aberta a classificação das normas a estes inerente. Bem como pode haver Animais que não se enquadrem entre estas classificações por sua relação peculiar com o ser humano, para a qual não foi produzido ainda um tratamento normativo específico.

Neste trabalho partiremos dos seguintes conceitos:

Animais Sencientes: Animais não-humanos capazes de sofrer de uma forma detectável, no mínimo, vertebrados.

Animais Silvestres ou antropo-independentes: Animais nãohumanos que sobrevivem independente do ser humano.

Animais Domesticados ou antropo-dependentes extrínsecos: Animais silvestres que passam a depender diretamente do ser humano para sobreviver.

Animais Domésticos ou antropo-dependentes intrínsecos: Animais nãohumanos cuja dependência direta do ser humano para sobreviver seja, ou se crê, intrínseca, portanto incapazes de sobreviver independente do Homem.

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2. Classificação

Com base nas considerações acima, podemos afirmar que o ordenamento brasileiro trata, hoje em dia, das seguintes categorias:

2.1. Animais de produção

Deste grupo fazem parte todos os Animais destinados a produzir algo para os seres humanos; seja seu corpo todo ou partes dele, conhecimento científico, entretenimento, ou trabalho a partir de uma capacidade sua igual, ou maior, que a do ser humano. Neste caso podemos separar este grupo maior, Animais de Produção, em grupos mais específicos, a saber:

2.1.1. Animais de abate

São animais criados para o abate. Podem ser Animais antropodependentes intrínsecos como o gado bovino, suíno, caprino, ovino, bubalino, o frango de corte, peixes, chinchilas, coelhos, patos, etc. e Animais antropo-dependentes extrínsecos destinados ao abate como a Ema, a Avestruz, o Javali, entre outros. Animais antropo-independentes como a ostra, o mexilhão e demais moluscos e crustáceos, uma vez sendo criados e não pescados ou apanhados são também destinados ao abate, e as normas que os tutelam dizem respeito somente à aqüicultura, uma vez que, salvo melhor juízo, não são dotados de senciência. Os vertebrados aquáticos são seres sencientes e, não obstante também serem tutelados por estas normas, merecem também a tutela das leis que proíbem os maus tratos, mormente quando processados1antes de abatidos. O mesmo vale para os moluscos superiores, pois há dúvidas quanto a sua senciência (Paixão, 2007).

No caso dos animais antropo-dependentes o seu período de vida é pré-determinado. Cada etapa da vida destes Animais, desde a procriação e o desenvolvimento, até seu abate e a manufatura das partes de seu corpo, destina-se a geração de lucros diretos ou indiretos (p.e. deixar de comprar carne ao ter um suíno em seu quintal). São máquinas

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Animais, pois possuem apenas valor econômico. Não há entre estes Animais e seus donos laços afetivos suficientes que importem em cuidados que custem mais que seu peso morto. Tanto que as normas que os protegem hoje devem ter os escopos principais de garantir, entre outros, condições adequadas de alojamento e proteção contra o seu uso abusivo em busca dos ganhos econômicos. Por sua natureza são presumivelmente excluídos do rol de animais com direito a vida, com amparo na necessidade humana de obter alimento, não obstante a opinião de muitos defensores dos direitos dos animais que entendem não haver tal necessidade.

No âmbito internacional tivemos como marco ocidental contemporâneo capaz de ser o estopim do que hoje é o movimento em prol dos Animais foi o British Cruelty to Animal Act de 1822. Também chamada de Martin´s Act, este documento legislativo foi defendido pelo advogado-chefe da Inglaterra Richard Martin frente ao parlamento inglês em duas oportunidades, em 1800 e 1822 quando então foi aprovado. Tal diploma objetivava justamente proteger de tratamentos cruéis e impróprios ao gado bovino. Deixava assim fora desta proteção Animais de companhia, selvagens entre outros. Com o passar do tempo Acts posteriores foram sendo aprovados (1835, 1849 e 1854) estendendo a proteção para outros mamíferos domésticos e alguns mamíferos selvagens em cativeiro (Bekoff, 1998). Segundo Rodrigues (2006) após a Inglaterra, Alemanha e Itália aderiram ao amparo estatal dos Animais em 1838 e 1848 respectivamente.

As espécies animais destinadas ao abate quando vertebradas estão tuteladas de forma direta pela CRFB/88 em virtude do seu artigo 225 inciso VII e do artigo 32 da lei 9.605/98 que impede os maus tratos contra os Animais. O Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA), decreto 30.691, de 29 de março de 1952, tem como escopo principal a melhoria na qualidade e sanidade no processo industrial de produção de carne. No entanto ele também trouxe um viés inovador de tratamento humanitário para o abate, ao proibir este sem prévia insensibilização do Animal. Assim dispunha o art 135 (antes da alteração pelo Decreto 2.244 de 1997):

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"Art.135. Só é permitido o sacrifício de bovídeos por insensibilização (processo da marreta), seguida de imediata sangria".

Hoje o artigo em epígrafe encontra-se com uma redação mais preocupada ainda com a minimização do sofrimento dos Animais durante o processo de abate:

"Art. 135. Só é permitido o sacrifício de Animais de açougue por métodos humanitários, utilizando-se de prévia insensibilização baseada em princípios científicos, seguida de imediata sangria".

A chamada insensibilização é o método capaz de retirar a consciência do Animal sem, no entanto, matá-lo. São três os métodos mais comuns de insensibilização; por concussão cerebral, elétrica ou por inalação de atmosfera modificada com alta concentração dióxido de carbono. O método da concussão cerebral é a compressão das meninges e alteração da pressão intracraniana sem laceração da massa craniana (contusão cerebral) que é obtida por meio de golpe de marreta, dardo cativo ou pistola pneumática. Sendo esta a mais recomendada, por causar menor possibilidade de sofrimento (Prata e Fukuda, 2001).

Outra demonstração da preocupação legislativa com os Animais encontra-se também na chamada matança de emergência. Ela está prevista no artigo 130 e seu parágrafo único do decreto 30.691/52 que têm a seguinte redação:

"Art. 130. Matança de emergência é o sacrifício imediato de Animais apresentando condições que indiquem essa providência".

"Parágrafo único - Devem ser abatidos de emergência Animais doentes, agonizantes, com fraturas, contusão generalizada, hemorragia, hipo ou hipertemia, decúbito forçado, sintomas nervosos e outros estados, a juízo da Inspeção Federal".

Não obstante esses avanços, o §2° do artigo 135 traz um "terrível sistema de abate"(Levai, 2004) ritual (desde sua redação original, ratificada pelo Decreto 2.244 de 1997). Assim expõem a norma em apreço:

"§ 2º É facultado o sacrifício de bovinos de acordo com preceitos religiosos (jugulação cruenta), desde que sejam destinados ao consumo por comunidade religiosa que os requeira ou ao comércio internacional com países que façam essa exigência".

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Prata e Fukuda (2001) afirmam que apesar do corte rápido das artérias carótidas fazer cair bruscamente a pressão induzindo inconsciência, há ainda suprimento de sangue, pelas artérias vertebrais, para o sistema nervoso central que, associado à presença de reflexos oculares e freqüentes convulsões, denota consciência e portanto sofrimento durante o processo. Neste método não há sequer o bloqueio do contato visual entre os Animais vivos e os que estão sendo abatidos, como é determinado no abate comum. Levai (2004) vai mais adiante e citando Roberto de Oliveira Roça destaca em sua obra que "nos momentos após a degola e suspensão, os Animais abatidos pelo ‘ritual Kosher’2apresentaram flexão dos membros anteriores e contração dos músculos da face, sinais evidentes de dor".

Esta é uma contradição clássica entre os direitos constitucionais. Chocam-se aqui a liberdade de culto ou religião consagrada no art. 5°, VIII da CRFB/88 somado aos princípios gerais de direito econômico art. 170 e a vedação de práticas de crueldade contra os Animais estampada no art. 225, VII da Magna Carta. Sobre o tema Levai (2004) assim aduz:

"Ainda que se possa dizer que a liberdade religiosa - com seus cultos e liturgias, suas cerimônias e manifestações, seus hábitos e tradições - precisa ser garantida, há limites morais para seu exercício, principalmente quando a Lei Maior de um país contempla uma norma protetora que se opõem á barbárie. Há que se respeitar às religiões e ao direito ao culto, sim, desde que tais práticas não impliquem em truculência. O conflito constitucional de normas no caso dos Animais submetidos ao abate, é apenas aparente, porque um dispositivo que veda a conduta mais gravosa que pode recair sobre um ser vivo - a dor decorrente da crueldade - jamais poderia ser superado por interesses mercantis ou se curvar a determinadas crenças religiosas. Não obstante a isso, a simples leitura do artigo...

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