O tabagismo na perspectiva da responsabilidade civil

AutorAltair Guerra Da Costa
Páginas147-182

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Parte I - História e posicionamento do tema
1. Formulação do problema: o tabaco e o tabagismo, sua história e especiais perigos

O tabaco é produzido a partir de uma planta do gênero de solanáceas, cujas folhas, depois de preparadas, servem para fumar, mastigar ou cheirar3.

O tabagismo representa o consumo habitual de tabaco ou o seu consumo abusivo4.

Narra a história que em 1492 comandados de Cristóvão Colombo viram indígenas da américa do sul consumindo tabaco e, em 1530, essa planta foi trazida para Portugal, onde a família real passou a cultivá-la com finalidade ornamental e por, supostamente, possuir propriedades medicinais. em 1560, Jean nicot, embaixador francês em Portugal, informado de que a planta curava enxaquecas, levou-a para a França, onde a rainha Chaterina de Medicis, que padecia desse mal, adotou o seu uso, difundindo-se, a partir de então, o consumo do tabaco5. a organização Mundial de saúde (oMs) estima que o número de fumantes no mundo se aproxima de 1 bilhão de pessoas, o que representa cerca de 15% (quinze por cento) da população mundial6.

Não há consenso quanto à exata composição do tabaco, mas fala-se entre 4.500 e 7.000 substâncias tóxicas ou complexos químicos7.

Não obstante dotada de poder de criar a dependência e não isenta de riscos, a nicotina não é a principal causa das doenças relacionadas com o tabagismo. Por exemplo, o cancro de pulmão, doença cardiovascular e enfisema são causadas, sobretudo, pelos compostos tóxicos presentes nos produtos derivados do tabaco, porque “são principalmente as toxinas e as substâncias carcinogénicas presentes no fumo do tabaco – e não a nicotina – que causam doença e morte”8.

O tabagismo adquire especial relevo para o direito, nomeadamente sob a ótica da responsabilidade civil, a partir do momento em que, a cada ano, se atribui a morte de milhões de pessoas no mundo ao consumo do cigarro9. em Portugal, atribui-se ao tabaco a morte de 11.800 pessoas, das quais 845 “fumadores passivos”, somente no ano de 201010.

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Não obstante associado, em certa altura, a benefícios para a saúde do usuário – alívio de enxaquecas e estresse – e, ainda, como elemento de promoção social – elegância e status –, o certo é que a relação entre o tabaco e o consumidor não é muito amistosa; ao contrário, é uma relação de amor e ódio, marcada pela desconfiança, nomeadamente da parte do usuário quanto à boa-fé do produtor, circunstância que originou, em diversas partes do mundo, a propositura de ações de indenização contra os fabricantes por danos a eles imputados.

Nesse contexto, delimitado o tema e realçada a sua importância social, é pertinente investigar a responsabilidade das indústrias tabagistas na produção de dano tão expressivo, a elas imputado, analisando, por fim, se a resposta apresentada a esse problema ao longo do tempo pela jurisprudência ou mesmo pela doutrina de diversos países pode ser considerada satisfatória. as doutrinas dos sistemas que serão analisados propõem uma solução justa para essa questão (o expressivo dano)? encontraram essas doutrinas a melhor resposta? e os tribunais desses diversos países cumpriram a missão de decidir, de maneira justa, as lides envolvendo os danos advindos do consumo de produtos do tabaco ou mesmo de seus efeitos para os denominados “fumadores passivos”? as respostas a essas perguntas pressupõem uma minuciosa investigação de como os tribunais, mundo afora, lidaram com a questão dos danos à saúde atribuídos ao tabaco, como decidiram as demandas intentadas com o objetivo de alcançar uma reparação. reclamam, ainda, essas indagações uma incursão nas doutrinas de diversos sistemas jurídicos, com o propósito de apurar a pertinência e a suficiência das soluções propostas. Comecemos, então, por voltar a nossa atenção ao produto, mais precisamente sobre a sua licitude ou ilicitude.

2. O tabaco: produto lícito ou ilícito?

O resultado das investigações levadas a cabo revela que tanto nos países que adotam o common law quanto nos que se guiam pelo sistema jurídico romano-germânico, o cigarro – ou tabaco – é um produto lícito, em que pese as diversas restrições experimentadas ao longo dos anos quanto ao seu uso, comercialização e publicidade.

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Em Portugal, a exemplo do que ocorreu na absoluta maioria dos países, surgiram várias restrições legais ao longo do tempo quanto à comercialização (Decreto-lei 76/2005, de 4 de fevereiro, que proíbe a venda de tabaco para menores de 16 anos de idade), ao seu uso (Decreto-lei 42.661, de 20 de novembro de 1959, que proíbe fumar em recintos fechados nos quais se realizem espetáculos e outros atos normativos do gênero, nomeadamente a proibição de fumar em veículos de transportes públicos) e à sua publicidade (Decreto-lei 421/80, de 30 de setembro 1979, que proíbe qualquer tipo de publicidade do tabaco na televisão e rádio), além de outras leis, como o Decreto-lei 253/90, de 4 de agosto, que altera o Decreto-lei 393/88, de 8 de novembro, relativo à publicidade negativa e a teores de tabaco, que passa a ser impressa ou aposta de forma clara nas embalagens.

Esse movimento restritivo ao tabaco, em Portugal, teve como seu último capítulo a lei 109/2015, de 26 de agosto, que atualiza algumas disposições da lei 37/2007 e promove a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos estados-membros da ue no que respeita ao fabrico, apresentação e venda de produtos do tabaco e produtos afins. não há como deixar de realçar que em Portugal, como de resto em todos os estados-membros da união europeia, a disciplina em torno do tabaco e seus produtos sofreu grande influência das políticas antitabágicas europeias, regulamentadas por diretivas, resoluções ou recomendações do Parlamento europeu ou do Conselho, como detalhado de maneira sistemática por Mário Frota11.

Merece menção a medida adotada pelo uruguai, determinando que a advertência sobre os malefícios do cigarro à saúde humana deve ocupar 80% da embalagem do produto (Decreto 287/2009, de 15 de junho), sendo essa medida impugnada por uma indústria tabagista na reclamação perante o Centro internacional para arbitragem de Disputas sobre investimentos – CiaDi (caso arB/10/7, envolvendo a Philip Morris vs. uruguay), julgada improcedente, atribuindo os árbitros o direito de o estado adotar políticas públicas para proteger

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o direito à saúde pública, ainda que aparentemente prejudiciais aos produtores, com grande impacto mundial.

Não obstante a existência de controvérsia acerca de ser o cigarro um produto defeituoso ou de periculosidade inerente, como será objeto de análise logo adiante, reina um consenso de tratar-se de produto lícito, na medida em que não há proibição legal de consumo e em que recebe disciplina específica nos ordenamentos jurídicos quanto ao modo do uso, notadamente em relação à restrição ao local para o consumo, comercialização e a sua publicidade [essa, a publicidade, tratada até no plano constitucional, como ocorre no Brasil (§ 4º do art. 220)] de modo que não há lugar para, de maneira plausível, colocar em causa a licitude dos produtos do tabaco.

3. Da imputação de danos às tabaqueiras: a história do tabaco perante os tribunais

Nesta altura, é relevante percorrer a história do tabaco, ou melhor, das demandas intentadas em razão de danos à saúde humana atribuídos ao consumo de produtos do tabaco.

O professor doutor Dário Moura Vicente, catedrático da Faculdade de Direito da universidade de lisboa, elaborou exaustivo estudo do direito comparado sobre a tratativa da responsabilidade imputada às tabaqueiras nos países que adotam o common law e os do sistema romano-germânico, intitulado de “entre autonomia e responsabilidade: da imputação de danos às tabaqueiras no direito comparado”12. esse estudo, o mais abrangente e completo sobre o tabagismo até então produzido, nomeadamente no aspecto da resposta dos tribunais de inúmeras nações às demandas intentadas nos últimos 50 anos, serviu como um farol, um guia para elaboração deste trabalho, não obstante a agregação de outros elementos conducentes à obtenção de uma...

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