O Fenômeno do Superendividamento: Uma Resposta ao Desamparo na Sociedade Moderna

AutorAlexandre Chini - Diógenes Faria de Carvalho
CargoJuiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro - Mestre em Direito e doutorando em Psicologia
Páginas167-176

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1. Introdução

O endividamento de consumidores é, de fato, um dos temas mais instigantes e socialmente relevantes que dizem respeito à autoproteção dos consumidores. Endividamento é um fato inerente à vida social, comum na sociedade moderna, pois mesmo os consumidores que não se endividam ou pagam à vista têm à sua disposição infinitas possibilidades de contrair crédito e fazer empréstimos. Essa é a lógica que move o mundo capitalista no Ocidente. Assim, quase sempre, para ter acesso a bens e serviços, os consumidores se endividam constantemente.

O tema tem sua relevância tanto no aspecto social quanto do indivíduo e ainda em suas decorrências jurídicas. O aumento do consumo atrai as pessoas, que se veem atônitas diante de tanta oferta de crédito facilitado. Na sociedade moderna, o consumo passou a ter o papel de satisfazer as necessidades e realizar desejos para muito além das necessidades e desejos considerados básicos ou necessários para a sobrevivência.

Deste modo, os consumidores contemporâneos não buscam apenas o bem-estar material, mas também o bem-estar psíquico, que é promovido pela aquisição desenfreada dos mais variados itens de consumo, o que acaba por modificar o conceito de necessidade.

2. A concessão de crédito como estímulo para o endividamento

O endividamento e o consumo de produtos e serviços específicos estão relacionados à necessidade que temos de aprovação de outros. E o capital, então, determina a receptividade e adesão a um grupo social, até mesmo determinando as amizades.

Nota-se que a substituição do desejo de ser amado pelo desejo de aprovação, de se destacar, de ser melhor que outros, de impressionar e de ser importante agravou o problema do endividamento dos consumidores.

O problema do endividamento está associado não somente ao estilo de vida urbano, em que o acesso a diferentes tipos de bens e serviços é acompanhado de forte pressão social para adquiri-los, mas também à compulsão do homem moderno por aprovação.

Nos dias de hoje, diferentemente do que ocorria nas décadas passadas, a disseminação do crédito faz com que grande parte dos bens seja acessível a

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todas as camadas sociais, sendo a sua aquisição o fator que viabiliza inclusão ou pertença a essa sociedade de consumo. Como bem frisa Lipovetsky: "o consumo para si suplantou o consumo para o outro" (2010, p. 42). Todo mundo busca a aprovação e admiração nos olhos dos outros. E bem observa Bauman: "As bases para a autoestima fornecida pela aprovação e admiração de outro são notoriamente frágeis" (2009, p. 59).

Na sociedade contemporânea, há uma verdadeira mania pelas marcas, que trazem intrinsecamente a ideia de qualidade para si, surgindo uma compulsão pela aprovação, fazendo com que o indivíduo da sociedade moderna substitua valores morais pelo desejo de brilhar, de ser melhor que os outros, de impressionar ou de ser importante.

O esforço pela aprovação, para provar uma coisa ou para se sentir incluído torna-se uma luta constante e totalmente inútil. Nada que não seja autêntico pode trazer satisfação. Mesmo experimentando "vitórias temporárias" - admiração, aprovação, seja o que for -, a sensação final será de insatisfação e desamparo.

O processo de consumo traz questões acerca da subjetividade dos sujeitos, e nas concepções freudianas de sujeito e constituição, Freud (1895) desenvolveu um conceito fundamental para a análise da constituição do sujeito: o desamparo. Desta feita, para este autor, o desamparo é uma condição inerente ao ser humano, considerando-a como a dimensão a partir da qual se desenvolverá a vida psíquica do sujeito.

Nesse diapasão, verifica-se que na sociedade moderna os indivíduos são submetidos aos seus desejos e os fornecedores apresentam seus produtos com a promessa de gratificação total. E esse desejo, sensorial e ilusório, passa a ser realizável. Daí observa-se uma cultura em torno da imagem, da aparência, da boa forma, da juventude, que encontra suporte na demanda desse sujeito, e a subjetividade torna-se então uma peça fundamental para o sucesso desses fornecedores, pois o sujeito tem a sua demanda satisfeita, ilusoriamente, pelos produtos ofertados.

A partir dessa leitura do sujeito observado por Freud (1895), podemos pensar a cultura do consumo nessa sociedade moderna. Segundo o autor psicanalítico, o nascimento é a primeira experiência de ansiedade e desamparo pela qual passa o indivíduo, pois com o corte do cordão umbilical, dá-se início a um irreversível processo de adaptação e luta...

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