Superendividamento: O Mal da Pós-Modernidade

AutorRoberto Senise Lisboa - Rafael Percovich Cisneros
CargoLivre-docente em Direito Civil pela USP - Professor de Direito Civil das FMU
Páginas83-98

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Prolegômenos

O presente artigo não tem por finalidade ser um guia de procedimentos para evitar e/ou controlar o superendividamento (superendeudamento) no Brasil e no mundo. Nossa intenção é analisar desde a perspectiva prática e jurídica: como o Estado, mediante a elaboração de políticas públicas adequadas, o fortalecimento de instituições já existentes como o Ministério Público e os Procons, preocupadas e atuantes na defesa dos consumidores, pode chegar a uma minimização do problema do superendividamento no Brasil.

O conhecimento não é patrimônio de nenhum povo, é patrimônio da humanidade. Mas quem é o povo? Se este questionamento é feito desde o ponto de vista analítico, é de supor que todo mundo sabe quem é o povo; é um típico discurso de legitimação que tranquiliza em vez de criar transparência. Mas se este questionamento é feito de forma direta, inicia-se uma série de questionamentos paralelos: Quem é o povo? As pessoas que vivem de fato em um país? As pessoas que vivem legalmente no país? Os titulares dos direitos de nacionalidade? Os titulares de direitos civis? Os titulares dos direitos eleitorais ativos e passivos? Apenas os adultos? Apenas os membros de determinados grupos sociais étnicos, religiosos ou sociais? Complicou? Acreditamos que sim.

Para este estudo delimitaremos o conceito de povo aos consumidores, principalmente àqueles endividados. Assim, para efeitos do estudo do superendividamento temos que considerar o consumidor tanto na definição concreta como na abstrata, na medida em que a proteção deste abarca tanto o identificado como o identificável.

Nos países chamados desenvolvidos, discute-se há décadas o problema do superendividamento, que recebe, inclusive, tutela legislativa. Tratar sobre este tema na atualidade aparentemente não é novidade. Mesmo assim, é imprescindível o fortalecimento no estudo e na discussão do tema. Vários são os apelos da doutrina que apontam o surgimento e a consolidação do problema no mundo, a necessidade de estudo e da aplicação de políticas públicas para seu tratamento, mas aparentemente essas vozes, já não tão isoladas, ainda não encontram eco nos responsáveis pelas legislações, principalmente nos países chamados emergentes.

Para este estudo faz-se necessária uma inter-relação de conhecimentos de natureza sociológica, ética, psicológica, econômica e jurídica, bem como uma interpretação cultural e antropológica da região onde surge o problema do

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superendividamento. Isso nos leva a concluir que o velho adágio "cada caso é um caso" aplica-se com uma luva ao problema das dívidas dos consumidores para cada espaço sociopolítico e cultural.

O superendividamento é um problema - infelizmente - das sociedades do mundo contemporâneo. A globalização, as novas tecnologias, a facilidade na obtenção de crédito e o aumento desmedido do consumo contribuem inevitavelmente para sua generalização. O fenômeno do crescimento das dívidas não atinge unicamente aos consumidores, sejam estes identificados ou identificáveis; atinge as empresas e por via oblíqua as nações e suas economias. Para confirmar esta afirmação basta ler os jornais e constatar a crise econômica dos diversos países do velho ou novo mundo. Ninguém pode negar que o superendividamento é um problema social. O superendividamento não escolhe idade, cor ou classe social. Não é um fenômeno apenas jurídico, mas afeta aspectos sociais e psicológicos das pessoas. Como dito anteriormente, a maioria das economias do mundo tem como base a expansão do crédito, na procura de atingir não somente os setores mais abastados da sociedade, mas, também, aqueles denominados menos favorecidos e, consequentemente, com menor conhecimento do que é denominado consumo responsável.

A disponibilização de linhas de crédito especiais e diferenciadas, como elemento principal na aquisição de bens e serviços, une-se à necessidade - imposta pela maioria - de ser inserido na cultura do consumismo; encontra as duas faces do comércio: por um lado o comerciante, detentor do poder econômico e possuidor de recursos publicitários agressivos e formadores de opinião, e no anverso da moeda o consumidor, vulnerável, impulsionado pela falácia de que o consumo aumentará seu bem-estar e de sua família, sendo induzido a efetuar compras parceladas, precipitando-se na compra de bens e serviços desnecessários e geralmente incompatíveis com sua realidade econômica.

Neste ponto, quando estudamos a disposição humana para o consumo, devemos destacar que esta prática - do consumo - lhe é inerente, caracterizando-se pela procura de recursos materiais ou simbólicos que favoreçam a sua existência saudável e da sociedade como um todo. Assim, a necessidade de consumo, sendo natural, converte-se numa experiência quase incontrolável, impulsionada por desejos criados pelo próprio sistema social, pelo marketing e pelo consumismo estabelecido na sociedade, que precisa das inclinações consumistas desenfreadas dos indivíduos para poder se manter e prosperar economicamente.

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Bauman esclarece: "De maneira distinta do consumo, que é basicamente característica de uma ocupação de seres humanos como indivíduos, o consumismo é um atributo da sociedade". Assim sendo, o fenômeno do consumismo deve ser entendido como a atividade de se adquirir bens e serviços indiscriminadamente, sobre a influência de agentes externos que conduzem de forma compulsiva o direcionamento de consumo (desnecessário) dos indivíduos, padronizado de acordo com parâmetros sociais intrínsecos, em especial atendendo ao ataque agressivo da publicidade mediática e esnobe.

A mecânica consumista encontra-se associada ao processo econômico de contínua oferta. Para dizer o óbvio, a cultura de consumo é uma cultura capitalista, e são as sociedades capitalistas as que apresentam a maior quantidade de disposições consumistas entre seu povo. Não pretendemos criticar de maneira alguma as bases moralistas dos dispositivos alucinantes, embelezadores e alienantes do consumismo, operados de maneira magistral pela publicidade mediática; mais bem, apresentar como ocorre o incentivo artificial ao consumismo desenfreado por produtos e serviços, muitas vezes desnecessários, cuja consequência lógica é o superendividamento dos consumidores.

Uma parcela grande da sociedade questiona por que o superendividado merece uma proteção especial. Esta dúvida é aceitável vindo de uma pessoa leiga em direito e desconhecedora da história da formação dos tratados internacionais, principalmente aqueles que tratam sobre direitos humanos. Estes tratados norteiam e tutelam, principalmente, a garantia e preservação da dignidade do ser humano. Quando as pessoas são induzidas a adquirir bens e serviços além de suas possibilidades, ficam em situações econômicas muitas vezes difíceis, estando expostas a toda sorte de humilhações, discriminações e exclusões.

A proteção e tutela do superendividado é uma obrigação dos Estados - e isto porque todos têm o direito de resgatar sua capacidade econômica e ser reinseridos no mercado de consumo - bem como uma proteção da economia das nações. Sem consumo não há rotatividade de capital. O superendividamento excessivo pode levar a um desequilíbrio nas relações comerciais e provocar, como já provocou em alguns países europeus, crises mundiais de proporções inimagináveis numa economia de mercado onde não há mais fronteiras convencionais. A responsabilidade pelo fortalecimento da economia mundial não é unicamente dos Estados, é tarefa dos consumidores e principalmente dos fornecedores, para evitar que seus parceiros contratuais, geralmente hipossuficientes e vulneráveis, sejam maniatados pelas garras do superendividamento.

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Os países europeus que iniciaram uma resposta legislativa à problemática do superendividamento foram a Dinamarca em 1984 e a França em 1989. Este modelo vem se incrementando ano a ano, tanto na Comunidade Europeia como na América...

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