O Superendividamento do Consumidor Brasileiro: Aspectos Jurídicos e Sociais

AutorAgostinho Oli Koppe Pereira - Cleide Calgaro - Wiliam Nilton Varela
CargoDoutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Doutora em Ciências Sociais na Universidade de Vale do Rio dos Sinos - Bacharel em Direito na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e advogado
Páginas177-199

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1. Introdução

No presente trabalho objetiva-se explicar os principais motivos do superendividamento do consumidor, analisando aspectos teóricos e jurídicos sobre o tema.

Parte-se da análise da condição em que o consumidor se posiciona diante da sociedade moderna, que o influencia cada vez mais ao hiperconsumismo, através de publicidades disponibilizadas na internet, TV, rádio, panfletos etc. A sociedade moderna, hiperconsumista, foi gerada sobre o aspecto econômico, em que o cidadão passou a ser avaliado pelo que possui e não pelo que é.

Nessa seara, mesmo que o consumidor não tenha condições de obter determinado produto, ele é induzido a dispor de seus proventos, atuais e futuros - créditos - para conseguir determinado bem. O que se tem notado, nesse contexto, é um cidadão altamente influenciado ao consumo desenfreado, gerando, sobre ele, desde distúrbios moderados até verdadeira compulsão para as compras.

O consumidor superendividado não possui, na legislação brasileira, um conceito específico estabelecido pelo legislador. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor - Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990 -, ao estabelecer sobre a proteção do consumidor, dispõe alguns princípios que podem ser aplicados em benefício do consumidor superendividado, como o princípio da transparência, da boa-fé, da informação e clareza nos contratos. Nesse mesmo contexto, a Política Nacional de Relações de Consumo institui a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo.

Por outro lado, com o intuito de modificar o Código do Consumidor em busca de uma efetiva proteção ao consumidor superendividado, tramita no Legislativo brasileiro um projeto de lei que trata do assunto. O superendividamento possui, hoje, grande relevância social, pois se tem presenciado, a cada dia que passa, o aumento de cidadãos consumidores que não conseguem fazer frente aos compromissos assumidos através de créditos que superam as suas possibilidades de ganhos, ficando totalmente desamparados pelo Estado, uma vez que inexistem normas que tenham como objetivo o tratamento e a proteção do consumidor superendividado.

2. A sociedade moderna e o hiperconsumo

Dentro do contexto global da modernidade cabe se faz recordar que na pré-modernidade a sociedade era constituída de maneira simples,

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encontrando-se basicamente um estabelecimento de cada mister. Exemplo disto é que havia um sapateiro, um ferreiro, uma mercearia, um marceneiro e, nesses casos, os produtos eram produzidos a um consumidor específico. Explica-se melhor: na sociedade pré-moderna o sapato era produzido em unidade, conforme a quantidade de pedidos que havia na época. Assim, o consumidor "X" solicitava um sapato e eram tiradas as medidas do pé deste consumidor para que fosse fabricado o sapato com suas medidas únicas.

Além de esse produto possuir as medidas únicas, o que mais influenciava os consumidores da época a consumir era a durabilidade do produto: que aquele determinado sapato duraria por muitos anos, sem se preocupar em ter que comprar outro modelo. A compra do mesmo produto era cogitada somente se o primeiro sapato obtivesse uma avaria depois de muito tempo de uso, como gastar a sola, rasgar o couro por algum tipo de eventualidade. Desta forma se conseguia a fidelidade do cliente pela durabilidade do produto e, posteriormente, a fidelidade da família deste consumidor.

Já na sociedade moderna, todo o tipo de produto em que se pode pensar é criado e confeccionado em grandes fábricas, que possuem capacidade de produção extraordinária e em série, sem a preocupação individual. Após, esses produtos são colocados em lojas e, portanto, à disposição do consumidor, ao alcance de sua mão, ou como na sociedade cyber moderna em que vive "tudo ao alcance de um clique" na comodidade e segurança dos lares.

Antes da revolução industrial, em regra geral, a sociedade consumia somente o necessário. Nessa época comprava-se o mínimo possível, com o intuito de que durasse por "uma vida inteira". Volta-se ao exemplo do sapato: hoje em dia um sapato entra e sai tão rápido de moda que mal se pode usá-lo por algumas vezes; se fosse antes desta sociedade de consumo que se tem hoje, o sapato seria apenas mais uma indumentária do vestuário, confeccionado para durar tanto quanto fosse possível. Hoje um sapato dura em torno de três a seis meses por dois simples motivos: o primeiro deles é por ficar fora de "moda", algo obsoleto, para muitos é motivo de vergonha aparecer em público com tal objeto antes tão desejado; o segundo, por serem fabricados milhares de exemplares por hora, sendo na grande maioria dos casos somente bonitos, mas não produzidos com o intuito de ser um sapato durável para o consumidor, e sim mais um produto descartável.

Atualmente, nesta sociedade moderna consumista que se presencia, os objetos demonstram muito sobre a pessoa, como, por exemplo: o seu trabalho o seu conhecimento, o seu estilo de vida ou a sua ideologia. Nesse diapasão,

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um objeto de determinada marca pode dar poder, demonstrar o quanto ela é capaz e até mesmo induzir a que outras pessoas o admirem e respeitem por ser detentor de tal objeto, chegando ao ponto deste objeto impor uma identidade ao possuidor.

Essa sociedade moderna torna fácil a entrada na seara do mundo consumista, pois seu mote é criar o querer, o desejar ser consumidor. Isso é muito bem explicado por Zygmunt Bauman, que assim pondera sobre a cultura consumista na sociedade contemporânea:

"A cultura consumista é marcada por uma pressão constante para que sejamos alguém mais. Os mercados de consumo se concentram na desvalorização imediata de suas antigas ofertas, a fim de limpar a área da demanda pública para que novas ofertas a preencham. Engendram a insatisfação com a identidade adquirida e o conjunto de necessidades pelo qual se define essa identidade."1(grifo do autor)

Conforme exposto por Bauman, podese entender que a atual sociedade é baseada na cultura do consumismo, confirmando o exemplo antes exposto sobre o sapato e o modo de pensar perante algo novo e moderno. Isso é facilmente inserido no subconsciente do cidadão através das publicidades. No que se refere à publicidade - tendo em vista a manutenção do sistema -, verificase um direcionamento para a população mais jovem, que desde pequena é moldada com esse pensamento de ter de consumir sempre o que é novo, pois os adultos já foram e continuam sendo alvo da ilusão transmitida pela publicidade que vende o "prazer instantâneo", moldado nesta nova forma de viver, de ter, de comprar e do querer momentâneo.

Desse modo, através da promessa de felicidade instantânea, configurase a facilidade de persuasão do indivíduo. Nesse viés os consumidores são direcionados para que entrem em shoppings não porque necessitem de algum produto, mas apenas para verificar os produtos novos, que acabam de ser lançados.

Nessa sociedade capitalista moderna não se tem como escapar do ato de consumir, que é algo essencial para a sociedade econômica como um todo e, isto, a princípio, não traz problemas para o cidadão. Porém, o que se aborda no presente trabalho não é o ato de consumir por necessidade, mas sim o excesso do consumo, o consumo desregrado, o hiperconsumismo, que são

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causadores de patologias como a bulimia, a anorexia, a oneomania e tantas outras que atingem todas as classes sociais.

Esse hiperconsumo moderno foi e é, seguramente, projetado pela publicidade que está exposta em todo lugar pelos meios de comunicação, como rádio, TV, outdoors e revistas com os mais variados assuntos e imagens, enfatizando padrões de beleza inalcançáveis e destacando que toda a nova tecnologia se torna essencial e necessária.

Na realidade, as escolhas no mercado consumista, muitas vezes, são influenciadas por alguns modismos, por algumas "necessidades" que são apenas hábitos sociais. Essas "escolhas" são impostas ao indivíduo pela mídia no dia a dia sem que ele perceba.

Cria-se, através do marketing, um comprar compulsivo que destrói o livre-arbítrio. Na grande maioria dos casos essas compras são de produtos com valores que vão além das possibilidades financeiras do comprador. Essa compulsão de querer comprar engana o autocontrole e também a razão. Denomina-se esta compulsão por oneomania, que advém das palavras gregas onius, que é a venda, e mania que é insanidade. Esse é o termo técnico para a síndrome de comprar compulsivamente. Esta denominação foi dada por Kraepelin em 1915 e Bleuler em 1924. Apesar de este termo ter sido criado há mais de um século, somente em torno de quinze anos para cá esta doença voltou a ser estudada no âmbito científico, considerando-a desconhecida por todos da área psicomental2.

Nota-se um aumento considerável de pessoas com os distúrbios derivados da sociedade moderna hiperconsumista em que se vive. Antes da Revolução Industrial, quando não existia uma produção excedente, não se tinha motivos para incitar os consumidores às compras. Porém, com a produção em grande escala, tudo se torna diferente e para sustentar os lucros da produção incentivou-se a criação da sociedade de consumo e, indiscutivelmente, essa sociedade - que se funde e confunde com a capitalismo - se desenvolve sobre a necessidade constante do desejo: de comprar; de felicidade através da compra; da afirmação pessoal através dos bens.

Nesse contexto do capitalismo consumista - onde o homem é o lobo do homem - todos não podem ter tudo, pois nem todos têm a capacidade de sustentar o que gostariam de ser; assim, acaba surgindo o conflito entre o poder ter e o querer ter. A partir daí, o indivíduo/consumidor passa a superendividar-se para ter o que lhe possibilita aparentar ser, embora não seja. É, realmente, uma sociedade do...

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