Sujeito de direito e forma-mercadoria: uma leitura critica do conceito de posicao original de John Rawls/Subject of law and the commodity form: a critical reading of the concept of the original position of John Rawls.

AutorBrocco, Pedro Dalla Bernardina

Introducao

A preocupacao de fundo deste trabalho e examinar e problematizar a antropologia filosofica do sujeito nas obras de John Rawls e nos autores pertencentes a tradicao marxista, isto e, verificar como e pensado o sujeito, como este aparece nas teorias, suas margens de atuacao, sua funcao, etc. Para tanto, e indispensavel lancar mao de uma analise sistematica, que perpassa o trabalho, do conceito de ideologia. As teorias aqui abordadas serao colocadas em perspectiva para, ao final, ser tracada uma conclusao critica a respeito da pedra angular da obra rawlsiana: o conceito de posicao original (e tambem, indiretamente, o de veu de ignorancia). De um lado, sera analisada a critica marxista do Direito no contexto liberal pos-Revolucao Francesa e, de outro, a concepcao de Rawls a respeito das escolhas politicas racionais dos individuos situados no que denomina de posicao original.

A hipotese e a de que a ideia de posicao original de Rawls nao e capaz de causar um questionamento mais profundo sobre conceitos importantes trabalhados por autores pertencentes a tradicao marxista, como os de valor, trabalho e forma-mercadoria. Os sujeitos afetados na e pela posicao original parecem deliberar sobre questoes que, embora importantes, nao sao determinantes para uma critica desses conceitos (1).

A nosso sentir, entre os principais motivos para a insuficiencia da ideia de posicao original esta a irrelevancia dada a teoria do valor-trabalho de Marx por parte de Rawls (por exemplo, em Rawls, 2012, p. 360). Isso significa que Rawls, em um desdobramento logico desta opcao metodologica, deixa escapar um aspecto da ideologia trabalhado por alguns autores contemporaneos: o de que a ideologia, antes de ser uma ocultacao-falseamento da realidade, apresenta-se como visao de mundo socialmente partilhada, o que implicaria, precisamente, as nocoes de valor, trabalho e mercadoria como nucleos privilegiados do laco social. Isso poderia ter influenciado Rawls a trabalhar de forma diferente alguns aspectos de sua teoria, quando por exemplo refere-se a inveja como desvantajosa e tendente a piorar a situacao de todos, motivo pelo qual supoe que na escolha dos principios da justica na posicao original os homens nao teriam inveja, pois teriam um "senso seguro de seu proprio valor" (Rawls, 2000, p. 155). De igual maneira, quando se refere ao respeito mutuo entre os homens dentro de uma concepcao de justica, diz que desse modo "eles asseguram um senso de seu proprio valor" (ibidem, p. 194). Ora, estamos de acordo com o fato de que uma concepcao de justica considerada justa deve buscar uma posicao de igualdade e participacao para todos; no entanto, e forcoso reconhecer que no mundo das mercadorias, conforme alerta Marx, "a medida do dispendio da de forca humana de trabalho por meio de sua duracao assume a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho" (Marx, 2013, p. 147). Assim, os criterios de valor dos homens sobre si proprios se inverte, a partir do fetichismo da mercadoria, quando os caracteres sociais do trabalho humano passam a ser refletidos como caracteres objetivos dos proprios produtos do trabalho. Este e o aspecto fundamental que escapa a teoria de Rawls.

O primeiro passo deste estudo sera um breve esboco do conceito de ideologia em Marx e Engels, deixando nesta introducao algumas observacoes relevantes para a leitura do restante do material: a ideologia ocupa, mesmo dentro da tradicao marxista, um lugar de disputas acerca de sua natureza e funcao. Poderiamos nos referir a ideologia do marxismo tradicional, como um falseamento da consciencia individual em um registro de luta de classes em que uma classe se beneficiaria com o papel desempenhado pela falsidade no modo de producao (hipotese endossada por Rawls--cf. Rawls, 2012, p. 390 (2)) ou a uma ideologia enformadora das categorias a partir das quais os sujeitos constroem suas experiencias de mundo, que afina-se ao conceito de visao social de mundo, ou Weltanschauung, trabalhada, por exemplo, na introducao do livro de Michael Lowy, As aventuras de Karl Marx contra o Barao de Munchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento (2007) (3). O problema da ideologia, desta forma, relaciona-se a um campo de estudos mais amplo, no que diz respeito a discussao sobre a justica, teoria do direito e filosofia politica, alem de uma consistente "critica de nos mesmos": o da sociologia do conhecimento, no sentido do estudo de um determinado conhecimento cientifico tomando como ponto de partida as relacoes sociais entre classes junto das problematicas em torno do valor e do trabalho. O objetivo sera o de produzir um estudo em consonancia com a concepcao de ideologia conectada ao sentido de visao social de mundo e a frase de Bourdieu (2001, p. 7) citada por Lowy, "as categorias de pensamento impensadas que delimitam o pensavel e predeterminam o pensamento".

  1. Ideologia e Direito: entre Marx, Miaille e Pachukanis

    Marx e Engels, n'A Ideologia alema (Marx e Engels, 2011), afirmam que as ideias dominantes nada mais sao do que a expressao ideal das relacoes materiais dominantes, sao relacoes materiais dominantes apreendidas como ideias; sao a expressao das relacoes que fazem de uma classe a classe dominante. Pois a classe que e forca material dominante e tambem, ao mesmo tempo, a forca espiritual dominante.

    Ja esta dada, desde o inicio, uma conexao materialista dos homens entre si, dependente das necessidades e do modo de producao, conexao que traz consigo uma historia e que prescinde de justificativas politicas ou religiosas para manter os homens unidos.

    Este homem historico possui, tambem, "consciencia", que para Marx e Engels e algo como o "espirito" exteriorizado. Esta "consciencia", todavia, nao e pura: "o 'espirito' sofre, desde o inicio, a maldicao de estar 'contaminado' pela materia, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem" (ibidem, p. 47). A linguagem nasce, assim, junto com a consciencia, da necessidade de intercambio com outros homens. Dessa forma, a consciencia e, desde o inicio, um produto social e continuara sendo enquanto existirem sujeitos.

    O desenvolvimento da divisao do trabalho, que antes era a mera divisao do trabalho no ato sexual, se dara em consequencia de disposicoes naturais (forca fisica, necessidades, etc.). Assim, a divisao do trabalho so se torna realmente divisao a partir do momento em que surge a divisao do trabalho material e espiritual. Nesse momento, a consciencia podera realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciencia da praxis, a representar algo --a partir desse momento, para Marx e Engels, a consciencia estara em condicoes de emancipar-se do mundo e dedicar-se a construcao da teoria, da teologia, da filosofia, da moral. Com a divisao do trabalho, pois, esta dada a possibilidade de que as atividades espirituais e materiais, de fruicao e trabalho, producao e consumo, aparecam para individuos diferentes.

    A metodologia de Marx e Engels aqui e nao explicar a praxis a partir da ideia, mas explicar as formacoes de ideias a partir da praxis material:

    "(...) e chegar, com isso, ao resultado de que todas as formas e [todos os] produtos da consciencia nao podem ser dissolvidos por obra da critica espiritual, por sua dissolucao na "autoconsciencia" ou sua transformacao em "fantasma", "espectro", "visoes", etc., mas apenas pela demolicao pratica das relacoes sociais reais de onde provem essas enganacoes idealistas." A divisao do trabalho ira subsumir os individuos, que em relacao a ela nada poderao fazer; terao que explicar sua existencia por sua posicao ocupada na divisao do trabalho. Os individuos isolados posicionam-se uns contra os outros, como inimigos na concorrencia, por nao possuirem controle sobre as relacoes sociais de producao grafadas em suas mentes. Para Marx e Engels, este isolamento so pode ser vencido apos longas lutas: os meios necessarios para vencer estas relacoes que produzem e reproduzem o isolamento, leia-se, grandes cidades industriais e comunicacoes acessiveis e rapidas, primeiro precisam ser produzidos pela grande industria--aqui aparece a incidencia do conceito hegeliano de Aufhebung, isto e, superacao, em um movimento dialetico, porem conservando algo do estado anteriormente superado ou, em outros termos, uma superacao que so se da pelos paradoxos e aporias do devir historico.

    Partamos, agora, de duas maneiras distintas e quica complementares de trabalhar a ideologia no direito: tomemos o exemplo do "embate" teorico entre Pachukanis e Stuchka nos anos 1920-1930: ambos identificam o direito em um sentido mais amplo, seguindo Marx, vendo no fenomeno juridico relacoes sociais; todavia, Stuchka define o direito nao como uma relacao social especifica, mas como "um conjunto de relacoes". Para Stuchka, o direito "ja nao figura como relacao social especifica, mas como o conjunto das relacoes em geral, como um sistema de relacoes que corresponde aos interesses das classes dominantes e salvaguarda estes interesses atraves da violencia organizada" (Pachukanis, 1988, p. 46). Assim, para Pachukanis, Stuchka, ao relacionar o direito a todo o conjunto de relacoes sociais, nao estaria habilitado a responder como e que as relacoes sociais se transformam em instituicoes e como e que o direito se tornou aquilo que e.

    Pachukanis interessa-se mais pela forma que reveste e e revestida pelo conteudo: Stuchka, em sua definicao, revela o conteudo de classe das formas juridicas, mas "nao nos explica a razao por que este conteudo reveste semelhante forma" (ibidem). A forma do direito, portanto, e nao as artimanhas do fenomeno juridico com vistas a dominacao classista, e o que interessa a Pachukanis. Para ele, a filosofia burguesa, que considera a relacao juridica como uma forma natural e eterna a qualquer relacao humana, jamais chegaria a se colocar tal questao; mas a teoria marxista, voltada para a apreensao das formas sociais e para a reconducao de "todas as...

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