A Sucessão dos Conviventes à Luz do Artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro de 2002

AutorTarlei Lemos Pereira
Páginas191-324
“Para o jurista, estudar as sucessões é estudar
um meio de garantir que a família continue viva,
apesar da morte do autor da herança.”
(Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka)
C A P Í T U L O VI
A SUCESSÃO DOS CONVIVENTES À LUZ
Sumário: 6.1 O texto do artigo 1.790 do atual Código Civil Brasileiro; 6.1.1 O caput
do artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro. Bens adquiridos onerosamente na vigência
da união estável. Distinção entre herança e meação; 6.1.2 Inciso I (a concorrência com
lhos comuns). Filhos ou descendentes? Concorrência com netos comuns. A inade-
quação terminológica; 6.1.3 Inciso II (a concorrência com descendentes só do autor da
herança); 6.1.4 Inciso III (a concorrência com ascendentes ou colaterais); 6.1.5 Inciso
IV (a inexistência de parentes sucessíveis). A concorrência do convivente supérstite
com o Poder Público; 6.2 Conviventes: herdeiros necessários ou facultativos?; 6.3 A
hipótese de concorrência simultânea do cônjuge e do convivente supérstites; 6.4 O va-
zio legislativo relativo à liação híbrida. Possíveis soluções; 6.4.1 Aplicação do inciso I
do artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro; 6.4.2 Aplicação do inciso II do artigo 1.790
do Código Civil Brasileiro; 6.4.3 Criação da sub-herança (solução apresentada pela pro-
fessora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka); 6.4.4 Fórmula matemática criada
por Gabriele Tusa e Fernando Curi Peres; 6.4.5 Fórmula matemática criada por Flávio
Augusto Monteiro de Barros; 6.4.6 Fórmula matemática criada por Gustavo Miranda
Schlosser e Wesley Schneider Collyer; 6.5 O direito real de habitação do convivente
supérstite; 6.5.1 O usufruto legal sucessório; 6.6 Anal, o artigo 1.790 do Código Civil
Brasileiro é constitucional ou inconstitucional? O princípio da isonomia aplicado ao
direito das sucessões; 6.7 O direito sucessório nas uniões homoafetivas: o(a) parceiro(a)
sobrevivente herda? 6.8 De lege ferenda: os Projetos de Lei nº 276/2007 e 508/2007;
6.8.1 A supressão do artigo 1.790, seguida da alteração do artigo 1.829, ambos do
Código Civil Brasileiro (solução apresentada pela professora Giselda Maria Fernandes
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Novaes Hironaka); 6.9 União estável putativa: haveria direito sucessório?; 6.10 Convi-
vente e sucessão testamentária; 6.11 O dever de colação e os sonegados; 6.12 Holding
familiar: como proteger o convivente supérstite alheio aos negócios da família? 6.13
União estável e usucapião: o convivente supérstite pode usucapir? 6.14 Sucessão dos
conviventes: aspectos processuais; 6.14.1 A desconsideração inversa da pessoa jurídica;
6.14.2 A ação declaratória de reconhecimento da união estável post mortem; 6.14.3
O papel do Ministério Público nas ações declaratórias de reconhecimento de união
estável; 6.15 União estável, sucessão e direito intertemporal; 6.16 Quadro sinótico das
nossas posições acerca do artigo 1.790 do Código Civil
6.1 O TEXTO DO ARTIGO 1.790 DO ATUAL CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO
O direito das sucessões ou hereditário é, na clássica denição de Clóvis Bevi-
láqua1, “o complexo dos princípios, segundo os quais se realiza a transmissão do patrimônio de
alguém, que deixa de existir. Essa transmissão consiste na sucessão. O patrimônio transmitido
é a herança; quem a recebe é herdeiro ou legatário”.
A denominação direito das sucessões é a que se usa comumente nos países de
língua latina. Nos direitos germânicos a denominação usual é Erbrecht que, literal-
mente, é direito de herança. Teixeira de Freitas usou o nome direito de herança. Limongi
França alinha estes nomes: direito de herança, direito hereditário, direito das sucessões,
direito das sucessões causa mortis. Registra que a locução mais difundida é direito das
sucessões, mas critica-a por equívoca já que a sucessão pode não ser hereditária.
Prefere, enm, a denominação direito das heranças.2
As condições exigidas para a sucessão legítima ou ab intestato são três: ser vivo,
ser capaz e ser digno. A reunião destas três condições forma a base essencial e
imprescindível para a pessoa poder suceder.3
Suceder tem o signicado de acontecer posteriormente; vir em seguida; tomar
o lugar; ser substituto; substituir; ter a posse do que pertencia ao seu antecessor;
ser sucessor; assumir direitos do auctor successionis4. No entanto, do ponto de vista
estritamente técnico, seria mais correto falar, não em falecido e herdeiro, mas em
sucedido (pois pode ser que ainda não tenha ocorrido o fato da morte) e sucessor (pois
1 Aut. cit. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. vol. VI. 4ª edição. Rio de Janeiro: Fran-
cisco Alves, 1939. p. 7.
2 Cf. MORAES, Walter. Programa de direito das sucessões: teoria geral e sucessão legítima. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 19.
3 OLIVEIRA, Arthur Vasco Itabaiana de. Tratado de direito das sucessões. vol. 1. São Paulo:
Max Limonad, 1952. p. 127.
4 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. vol. 4. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 449.
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A sucessão dos conviventes à luz do Artigo 1.790 do código civil BrAsileiro...
pode se referir à gura do herdeiro, do legatário e até mesmo do Estado, na ausência
de herdeiros), embora o uso tenha consagrado a expressão falecido-herdeiro.5
No presente item, trataremos do artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro, dis-
positivo legal que levou Sílvio de Salvo Venosa6 a armar que “este artigo é, jun-
tamente com o art. 1.829, I, um dos piormente redigidos neste Código”, conseguindo “ser
perfeitamente inadequado ao tratar do direito sucessório dos companheiros”, com o que, aliás,
estamos plenamente de acordo. É que algumas vezes, na criação e edição das leis
não há preocupação por parte dos legisladores com um critério cientíco de busca
de uma verdade envolvida com a realidade social7.
Contudo, bem ou mal redigido, fato é que o artigo 1.790 do Código Civil de
2002 está em pleno vigor, o que impõe aos operadores do Direito a árdua tarefa de
interpretá-lo, dando-lhe a mais adequada aplicação. Não é por outro motivo que
entendemos que, a despeito de ter sido redigido de maneira confusa, lacunosa (rec-
tius: vazia) e até injusta, deverão os julgadores, se necessário, valer-se do disposto
no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil8, sempre tendo em mente que
o sistema jurídico pós Constituição de 1988 é aberto e móvel.
Posto isso, o artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro9, na sua integralidade,
tem a seguinte redação:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas
condições seguintes:
I – se concorrer com lhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que
por lei for atribuída ao lho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a me-
tade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3 (um ter-
ço) da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Direito anterior: sem correspondência no Código Civil de 191610.
Remissão legislativa: artigo 2º, caput, da Lei nº 8.971, de 29.12.1994
5 Cf. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder... p. 216.
6 Aut. cit. Código Civil Interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. pp. 1.620 e 1.621.
7 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Manual de losoa do Direito. 3ª edição. São Paulo: Saraiva,
2010. p. 202.
8 LICC, artigo 4º – “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais de direito.”
10 “A matéria disciplinada por esse dispositivo legal não encontra guarida em nenhum artigo do Código de Beviláqua,
pelo simples motivo do ordenamento jurídico daquela época não aceitar uma relação entre um homem e uma mulher,

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