A ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada no âmbito das ações coletivas como instrumento de efetivação de direitos fundamentais

AutorJaqueline Mielke Silva
CargoDoutora e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Páginas196-211

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ISSN Eletrônico 2175-0491

A AMPLIAÇÃO DOS LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA NO ÂMBITO DAS AÇÕES COLETIVAS COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DE

DIREITOS FUNDAMENTAIS

THE EXTENSION OF THE SUBJECTIVE LIMITS OF RES JUDICATA IN THE CONTEXT OF CLASS ACTIONS AS A MEANS OF ENFORCING FUNDAMENTAL RIGHTS

LA AMPLIACIÓN DE LOS LÍMITES SUBJETIVOS DE LA COSA JUZGADA EN EL ÁMBITO DE LAS DEMANDAS COLECTIVAS COMO INSTRUMENTO PARA HACER EFECTIVOS LOS DERECHOS

FUNDAMENTALES

Jaqueline Mielke Silva1

RESUMO

A redação atual do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (LACP) restringe os limites subjetivos da coisa julgada à competência do magistrado que julga a demanda de natureza coletiva. A vinculação da coisa julgada à competência territorial do julgador reflete a inadequação da dogmática jurídica para resolver os problemas decorrentes da transmodernidade. A dogmática jurídica precisa ser redimensionada de forma que o processo possa ser um instrumento de transformação da realidade social, a fim de ser alcançada a tão almejada justiça. Neste contexto, inconstitucional se revela o artigo 16 da LACP. Primeiro, porque restringe a efetivação de direitos fundamentais. Segundo, em razão de reduzir abrangência do instituto da coisa julgada prevista no artigo 5.º, inciso XXXVI, da Constituição Federal. Terceiro, porque viola o princípio da isonomia. Quarto, porque a restrição territorial faz com que o número de demandas judiciais aumente, o que contraria o escopo do processo civil contemporâneo. Assim, os limites subjetivos da coisa julgada no âmbito coletivo devem ser (re) dimensionados de modo a assegurar de forma ampla a tutela de direitos fundamentais.

PALAVRAS-CHAVE: Coisa julgada. Limites subjetivos. Demanda coletiva. Direitos fundamentais. Transmodernidade.

ABSTRACT

The current wording of article 16 of the Public Civil Action Law (LACP) restricts the subjective limits of res judicata to the jurisdiction of the magistrate, who judges the action collectively. The link between res judicata and the territorial jurisdiction of the judge reflects the inadequacy of the legal dogma in resolving the recurrent problems of transmodernity. In this respect, article 16 of the LACP is shown to be unconstitutional. First, because it restricts the enforcement of fundamental rights. Second, because it reduces the scope of res judicata stipulated in article 5, paragraph 26, of the Federal Constitution. Third, because it violates the principal of equality. Fourth, because the territorial restriction increases the number of lawsuits, which contradicts the scope of contemporary civil procedure. Hence, the subjective limits of res judicata under the collective framework must be (re)shaped so as to ensure broader protection of fundamental rights.

1 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Especialista em Direito

Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), Professora de Direito Processual Civil na Faculdade Meridional (IMED), Faculdade INEDI, Escola Superior da Magistratura Federal (ESMAFE), Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS), Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS (FMP), Fundação Escola Superior da Magistratura do Trabalho (FEMARGS). Sócia de Mielke e Lucena Advogados.

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Disponível em: www.univali.br/periodicos

KEYWORDS: Res judicata. Subjective limits. Class actions. Fundamental rights. Transmodernity.

La redacción del actual artículo 16 de la Ley de la Acción Civil Pública –LACP- restringe los límites subjetivos de la cosa juzgada a la competencia del juez que examina la demanda de naturaleza colectiva. La vinculación de la cosa juzgada a la competencia territorial de aquel que juzga refleja la no adecuación de la dogmática jurídica para resolver los problemas derivados de la transmodernidad. La dogmática jurídica necesita ser redimensionada de manera que el proceso pueda ser un instrumento de transformación de la realidad social, a fin de que la tan deseada justicia pueda ser alcanzada. En tal contexto es inconstitucional el artículo 16 de la LACP. Primero, porque limita la efectividad de los derechos fundamentales. Segundo, porque reduce la amplitud del instituto de la cosa juzgada prevista en el artículo 5°, inciso XXXVI, de la Constitución Federal. Tercero, porque hiere el principio de la igualdad. Cuarto, porque la limitación territorial hace que la cantidad de demandas judiciales aumente, lo cual contradice el objeto del proceso civil contemporáneo. Así, los límites subjetivos de la cosa juzgada en el ámbito colectivo deben ser (re) dimensionados para garantizar ampliamente la tutela de los derechos fundamentales.

PALABRAS CLAVE: Cosa juzgada. Límites subjetivos. Demanda colectiva. Derechos fundamentales. Transmodernidad.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DOS

INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS

INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS: UMA DECORRêNCIA DO ESTADO SOCIAL E

DEMOCRáTICO DE DIREITO

Os interesses transindividuais são fruto das modificações ocorridas no modelo liberal/ individualista de Estado2. Ou seja: com a superação desse modelo – por meio do Estado Social e Democrático de Direito3– houve uma verdadeira revolução em termos de categorias, direitos e de meios de proteção aos mesmos4.

Tais direitos5, além de evidentemente escaparem à tradição liberal/individualista, colocam-se como indispensáveis à sobrevivência contemporânea6. Trata-se de direitos que atingem toda a

2 No seu nascedouro, o Estado de Direito emerge aliado ao conteúdo do próprio liberalismo. Assim, os liames jurídicos do Estado têm relação direta com a concreção do ideário liberal no que diz respeito ao princípio da legalidade (submissão do poder estatal à lei, divisão de poderes e garantia de direitos individuais).

3 Segundo Manuel García Pelayo, “en términos generales, el Estado social significa históricamente el intento de adaptación del Estado tradicional (por el que entendemos en este caso el Estado Liberal burgués) a las condiciones sociales de la civilización industrial y posindustrial con sus nuevos y complejos problemas, pero también con sus grandes posibilidades técnicas, económicas y organizativas para enfrentarlos”. Las transformaciones del Estado contemporaneo, p. 14 e 15”.

4 A consagração dos direitos sociais não é uma descoberta do século XX, na exata medida em que as Declarações de Direitos da Revolução Francesa já estabeleciam obrigações positivas do Estado nos domínios do ensino e da assistência social, o que viria a ser aprofundado nas constituições do século XIX.

5 Cf. Mauro Cappelletti, refere, ao tratar do assunto, “que no campo jurídico o Estado Social incorporou novos direitos das mais variadas ordens, “direitos sociais dos pobres, os direitos sociais dos trabalhadores, os direitos sociais das crianças e dos velhos, das mulheres, dos consumidores, do meio ambiente, etc”. Acesso à Justiça, In: Revista do Ministério Público, n. 18, p. 9.

6 François Ost cita algumas características que afastam para sempre a projeção contraditória entre direito subjetivo e interesse: “A) O interesse, estando na base dos principais conceitos jurídicos, mesmo na de direito subjetivo, tem assim, um caráter onipresente, aparecendo, desta forma, para além das pretensões asseguradas pela ordem jurídica; B) Paralelamente a esta onipresença e, talvez em conseqüência mesmo desta presença constante, a

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RESUMEN

Revista NEJ - Eletrônica, Vol. 18 - n. 2 - p. 196-211 / mai-ago 2013

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coletividade; referem-se a categorias inteiras de indivíduos e exigem uma intervenção ativa, não somente uma negação, um impedimento de violação – exigem uma atividade. Contrariamente a um direito excludente, negativo e repressivo, com feição liberal, tem-se um direito comunitário, positivo, promocional, de cunho transformador7.

O ponto central da questão deixa de ser o individual, passando a ser predo minantemente o coletivo (ĺato sensú). A socialização e a comunitarização dos interesses têm papel fundamental8.

Assim, observa-se que os interesses transindividuais (coletivos, em sentido estrito + difusos) escapam da dimensão privada do modelo jurídico liberal e se caracterizam por uma amplitude não apenas jurídica, em sentido estrito, mas também socioeconômica, tendo em vista que importam muitas vezes no desapego, afastamento e/ou negação dos postulados liberais tradicionalmente aceitos como meios de sanabilidade das contro vérsias. Portanto a variabilidade e a complexidade dessas questões coletivas fazem com que caminhos distintos para sua resolução devam ser adotados. A resolução dos conflitos coletivos reclama a negação dos postulados do modelo liberal/ individualista.

A TUTELA jURISDICIONAL DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS NO DIREITO

BRASILEIRO POR MEIO DA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA

A ação civil pública disciplina a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico e qualquer outro interesse difuso ou coletivo.9

Sofreu profundas alterações com a edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), por meio do disposto no artigo 117, que lhe acrescentou o artigo 21, que dispõe aplicar-se “... à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os Dispositivos do Título III da Lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.”

noção de interesse se caracteriza por uma imprecisão no seu significado, o que implica uma recorrente confusão e, mesmo, identificação entre interesse e direito; C) De outro lado, o interesse adquire, como noção funcional ou operatória, uma leveza (souplesse) que contrasta com a rigidez própria do direito subjetivo. Assim é que, à titularidade exclusivista do direito subjetivo se contrapõe a...

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