Às Suas Ordens! (Ela, Eles e Eu)

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas23-67

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Consideramos que a falácia do argumento do requerente consiste na suposição de que a separação forçada das duas raças estampa na raça de cor uma etiqueta de inferioridade. Se isso ocorre, não é decorrência de nada que se encontre na Lei, mas somente porque a raça de cor escolhe dar essa interpretação ao diploma. (...)

O argumento também assume que o preconceito social pode ser superado pela legislação e que direitos iguais não podem ser assegurados ao negro se não por uma obrigatória mescla das duas raças. Nós não podemos aceitar essa proposta. Se as duas raças vão se acertar em termos de igualdade social, isso deve ser resultado de afinidades naturais, mútua apreciação dos méritos uns dos outros e concordância particular dos indivíduos. (...) A legislação não tem força para erradicar instintos raciais, ou abolir distinções baseadas em diferenças físicas, e a tentativa de fazê- -lo pode somente resultar em acentuar as dificuldades da situação presente. Se os direitos políticos e civis de ambas as raças são iguais, uma não pode ser inferior à outra civil ou politicamente. Se uma raça é inferior à outra socialmente, a Constituição dos Estados Unidos não pode colocá-las no mesmo nível.” Justice

Brown, manifestando-se pela maioria, em Plessy v. Ferguson (1896).

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“Eu sou da opinião que o Estado de Louisiana é inconsistente com a liberdade pessoal dos cidadãos, branco e preto, no Estado, e hostil ao espírito e letra da Constituição dos Estados Unidos. Se leis dessa espécie fossem publicadas nos vários Estados da União, o efeito seria altamente pernicioso. A escravidão, como instituição tolerada pela lei, teria, é verdade, desaparecido do nosso país, mas remanesceria um poder nos Estados, através de legislações sinistras, de interferir com o pleno gozo das bênçãos da liberdade, regulando direitos civis, comuns a todos os cidadãos, à base da raça, e colocando em uma condição de inferioridade jurídica uma grande massa de cidadãos norte-americanos, que agora fazem parte da comunidade política, chamada de “Povo dos Estados Unidos,” para quem, e por quem, através de representantes, o nosso governo é administrado. Tal sistema é incompatível com a garantia dada pela Constituição para cada Estado de uma forma republicana de governo, e pode ser deposto pelo Congresso, ou pelos tribunais no cumprimento do dever solene que estes têm de manter a lei suprema do país...” Justice Harlan, única divergência dentre os 9 juízes da Suprema Corte, em Plessy v.

Ferguson (1896).1

1. A vida como ela é (Introdução)

Ela pede licença. Entra na sala, meio sem jeito. Senta na cadeira que indico, em frente à escrivaninha. Noto que, apesar do inusitado da situação, ela está curiosa e, de certa forma, lisonjeada:

— Posso citar o nome de você?

— Claro, doutor, o senhor fique à vontade!

Não consigo evitar a comparação com o outro. Ele desconfiado, ela solícita. Ele fugindo de mim, me evitando nos corredores, desviando das perguntas, sempre dizendo que passaria mais tarde para a entrevista, enquanto ela vem ao meu encontro, sentindo- -se importante e querendo contar coisas que eu não pergunto, sem nem ter certeza da finalidade daquilo tudo.

— O senhor já usou a carteira?

É minha vez de ficar sem jeito. A carteira de trabalho dela está sobre a ponta da mesa que nos separa e ela olha para o documento como quem sabe que ele permaneceu naquele exato lugar, intocado, desde a chegada, naquele mesmo dia, pela manhã.

— Eu vi, sim. Então, aqui foi o seu primeiro emprego em São Paulo, certo?

Enquanto pergunto, fujo daqueles olhos pequenos e espertos, folheando a CTPS de capa vermelha e, depois, abrindo uma tela em branco, no computador que está ao meu lado. Ela não se aborrece e responde afirmativamente. Acresce que quando chegou de

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Pernambuco, em 1995, não era ascensorista, como hoje. Começou trabalhando no setor de limpeza:

— Naquele tempo, todos os oito elevadores tinham ascensoristas. Foi doutor Floriano que mudou isso, e só deixou dois com, um em cada torre.

— Quem era o presidente, quando você começou?

— Nossa...já foi tanta gente, né doutor? O senhor lembra?

Não tem como não lembrar, penso. 1995 foi o ano em que eu também comecei a trabalhar, como juiz, no TRT de São Paulo. A diferença é que comecei em abril, ligado diretamente ao tribunal e minha entrevistada em julho, como empregada da LSI, uma empresa terceirizada.

— Umm... doutora Pellegrina, doutor, será?

Mais uma vez a comparação entre ela e o outro me absorve. Tenho certeza que ele seria capaz de declinar todos os presidentes a quem tinha servido café, nos trinta anos de trabalho como garçon, por entre os muitos gabinetes do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Não só os nomes, mas os clubes para os quais cada um deles torcia. É assim, imagino, que se sobrevive tanto tempo, enquanto as terceirizadas passam.

— Você e ele sempre trabalharam para as mesmas terceirizadas?

— Sempre. Quer dizer, ele já tá aqui desde sei lá quando, né doutor? Mas desde que eu comecei, nós sempre trabalhamos para as mesmas empresas e todo o resto do pessoal também. Limpeza, ascensorista, jardineiro, garçon, cozinha... só o pessoal da segurança que é outra empresa...

— A segurança também sempre foi terceirizada?

— Foi. Não. Quer dizer.. tem o pessoal da terceirizada e tem os concursados, que são os agentes...

— Qual a diferença?

— Num sei doutor. Tudo é segurança, né? Mas uns tem concurso...

Na CTPS dela, constam sete empresas terceirizadas que figuram como empregadores: LSI
(17.7.1995 a 7.2.2002); Orbral (1º.2.2002 a 8.11.2005); Essencial (1º.11.2005 a 30.10.2007); Patrimonial (1º.11.2008 a 6.5.2008); Exulta (2.5.2008 a 30.6.2011); Núcleo (4.7.2011 a
6.4.2012) e Atival (2.4.2012 até os dias atuais). Como cada presidente do tribunal tem mandato de 2 anos, a média é de quase uma terceirizada por presidente, durante os dezessete anos de trabalho dela.

— Quem foi o melhor presidente, nesse tempo todo?

Essa pergunta, na verdade, eu queria ter feito para ele, embora ele já tivesse antecipado a resposta, numa das nossas conversas, quando ele vinha servir café no gabinete:

— Na minha profissão doutor, a gente vê muita coisa. Mas faz parte dela saber ser discreto. É muito tempo!

Tempo demais, com a água sempre no pescoço. Não é mesmo para qualquer um. Como era o mundo de trinta anos atrás? Ela vai contando uma história longa e eu digito 1981 no Google, fingindo estar atento. Entre as várias opções que aparecem, surge uma linha do tempo. Em janeiro de 1981, Ronald Reagan tornou-se presidente, substituindo

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Jimmy Carter. Os dias que se seguiram foram turbulentos. O chefe da administração americana, pouco tempo depois da posse, em março, levou um tiro na saída de um hotel, em Washington. Em 13 de maio foi a vez do papa João Paulo II tornar-se alvo de um atentado. Dessa vez são três os tiros, mas a vítima, a exemplo da anterior, conseguiu sobreviver. No Brasil as coisas também não iam muito bem. O presidente ainda era um general (Figueiredo)2 e em 25 de fevereiro daquele ano a Justiça Militar condenava Lula e mais 10 sindicalistas do ABC, com base na Lei de Segurança Nacional, pela greve deflagrada no ano anterior (as penas mais tarde seriam revogadas). Logo depois, em abril, acontecia o que ficou conhecido como atentado do Riocentro. Daqueles dias tumultuados até os dias de hoje, os olhos dele testemunharam muitas mudanças, por trás da fumaça que sobe das pequenas xícaras do café servido às autoridades. Reagans e Buschs, Gorbachevs, Bóris Yeltsins e Putins, muros de Berlim, sonhos de diretas já, seguidos de pesadelos de hospitais de base e Tancredos percorreram a linha do tempo que desfila na minha pequena tela. Olho para ela que se diverte contando alguma coisa sobre o filho pequenino e o marido que não gosta de ir passear no shopping:

— Tô falando muito alto doutor?

Foram caraspintadas, Collors, FHCs e Lulas (agora presidente e não réu) e vieram Dilmas e Obamas. O Brasil perdeu seis copas do mundo e ganhou outras duas. A URSS desmoronou e a inflação brasileira domesticou-se com o plano Real (1994), após derrotar os planos Cruzado (1986), Bresser (1987) e Collor (1990).

Outra história, outra tela. Agora da Justiça do Trabalho brasileira. E aqui também o tempo cobrou seu preço. A Segunda Região, por exemplo, que até julho de 1981 — quando foi criada, pela Lei n. 6.927/81 (de 8.7.1981), a 10ª Região — abarcava Mato Grosso e, até 1986, Campinas, bem como o interior do Estado de São Paulo, hoje está restrita praticamente à Capital e ao litoral do Estado. Embora o território tenha diminuído consideravelmente, o serviço dele, nesses anos todos, aumentou muito. O cafezinho, em 1981, era servido para 27 juízes, entre classistas e togados e agora, em 2012 — embora não mais existam os classistas — são mais de 90 desembargadores. O presidente do TRT/SP era o (depois) ministro Antônio Lamarca, enquanto as máquinas de escrever (mecânicas, não elétricas) confeccionavam quase artesanalmente as atas de audiência, com cópias em papel carbono, para partes e advogados3. Foram mais de quinze presidentes servidos pelas mãos dele, dentre eles o juiz Nicolau dos Santos Neto (1990/1992), que daria nome ao prédio da Justiça do Trabalho da Barra Funda — projetado e construído para acabar com o martírio de partes e advogados, divididos, até então, entre vários pequenos e precários prédios do centro de São Paulo —, não fosse o fato deste ter perdido a honraria (e até o nome de batismo) ao ganhar as manchetes dos jornais com a alcunha de Lalau, sempre ladeada de cifras milionárias.

Mas essas tantas mudanças nunca alteraram o hábito do brasileiro de tomar café, nem a necessidade de as autoridades...

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