A Constituição e as suas normas programáticas

AutorAntonio D’Atena
CargoCatedrático de Direito Constitucional na Universidade de Roma, “Tor Vergata”
Páginas218-232

    Tradução Ana Carolina Marinho Marques

Palavras-Chave: Constituição; Normas Programáticas; Direito Constitucional.

Keywords: Constitution; Programmatic Regulations; Constitutional Law.

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1. Premissas

O “gênero literário” Constituição apresenta uma peculiar característica de estilo. Refere-se ao fato que, nos documentos constitucionais, ao lado das disposições “completas” (ou self-executing) – ou seja, das disposições imediatamentes capazes de produzir todos os efeitos em vista dos quais foram adotadas – figuram com notável frequência disposições não auto-suficientes. Essas últimas, para desdobrar todas as suas potencialidades, necessitam da intermediação do legislador. As normas executivas adotadas pelo legislador possuem, com efeito, a função de completar o conteúdo, face o alcance dos escopos por elas indicados.

Trata-se de uma característica que o constitucionalismo moderno apresenta desde a sua origem. Isto é confirmado através das primeiras constituições históricas: as constituições referentes às colônias norte-americanas anteriores à formação dos Estados Unidos. Aqui os exemplos desta técnica normativa são numerosos. Pode-se citar a recorrente enunciação do princípio da separação dos poderes,1 ou aquela do princípio da frequência das eleições2. Considera-se, ainda, as normas que obrigavam o Estado a construir escolas, a regular as sucessões de modo tal a evitar a “perpetuidade”3, a modificar a própria legislação penal para limitar a pena cruenta4,Page 219 a prever cauções e multas de importo não excessivo5, ou a adotar uma legislação destinada a promover a virtude e impedir o vício e a imoralidade6.

O significado histórico-político de semelhantes enunciações não foge à regra.

Essas pressupõem o modelo de sociedade que os pais da Constituição pretendem realizar, indicando os objetivos a serem alcançados pelo legislador.

Nas palavras de um grandíssimo jurista italiano, membro da assembléia constituinte (1946-1947) – Piero Calamendrei – poderia-se dizer que tais enunciações constituem um tipo de “revolução prometida”7.

Trata-se, ademais, de disposições, as quais se fundam, normalmente, em escolhas de valores dotadas de uma forte carga ideológica (ou axiológica).

2. A marca ideológica (axiológica) dos textos constitucionais contemporâneos e a específica qualidade da legalidade constitucional

Tal marca ideológica (ou axiológica) é particularmente pronunciada nos textos constitucionais do século XX, os quais acolhem no seu corpo, numerosos enunciados deste tipo.

Trata-se, inicialmente, das disposições programáticas em sentido estrito, mediante as quais pressupõem as linhas de desenvolvimento do ordenamento, através da fixação dos objetivos que o legislador é chamado a alcançar.

À categoria pertencem – por exemplo – com relação à Constituição italiana, as disposições que impõem ao Estado a promoção das autonomias locais (art. 5 Const.), a proteção da juventude, da maternidade e da infância (art. 31, inciso 2, Const.), a tutela do sistema de poupança popular (art. 47 Const.), o desenvolvimento do artesanato (art. 45, inciso 2), a tutela da paisagem e do patrimônio histórico e artístico da Nação (art. 9, inciso 2), o direito de defesa da classe desfavorecida (art. 24, inciso 3). E poderia-se continuar ...8

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Na mesma categoria podem ser, ainda, reconduzidas as disposições mediantes as quais o constitucionalismo liberal respondeu à crítica das chamadas liberdades “burguesas”, exercida pelo pensamento de inspiração marxista9. Refere-se às cláusulas de direitos sociais10, as quais aparecem, pela primeira vez, na Constituição mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar de 1919. Através dessas, se reconhecem direitos – como o direito à saúde (art. 32 Const.it.), à retribuição «suficiente» (art. 36 Const. it.), o direito à paridade no tratamento das mulheres trabalhadoras e dos menores (art. 37 Const. it.), à assistência social, na pluralidade de suas manifestações (art. 38 Const. it.), o direito ao trabalho (art. 4 Const. it.) – aos quais não se adapta a configuração eminentemente negativa das clássicas liberdades do século XIX, que integram o catálogo. Com efeito, tais direitos se apresentam como direitos à prestação, cujo proveito é subordinado a interventos positivos, na maioria confiados aos poderes públicos.11.

3. A questão da prescrição das disposições programáticas da Constituição

O problema preliminar colocado pelas técnicas constitucionais examinado atentamente no parágrafo precedente é um problema de eficácia12. De fato, questiona-se se as enunciações que utilizam referidas técnicas sejam exclusivamente dirigidas ao legislador, ou se seriam dotadas de uma imediata característica prescritiva.

Em certos casos, o direito positivo se encarrega do problema. Analisemos – por exemplo – o art. 53, inciso 3, da Constituição espanhola vigente, o qual expressamente subordina a aplicação jurisdicional das disposições contidas no capítulo terceiro do título segundo da Constituição (referidos «principios rectores de la politica social y economica») ao “desarrollo”, por parte do legislador, das disposições nela contidas13. Levando-se em consideração, ainda, o art. 1, inciso 3, da Lei Fundamental Alemã, o qual – adotando a solução oposta – estabelece que os direitos fundamentais contemplados na Constituição (alguns dos quais apresentamPage 221 natureza de direitos sociais14) vinculem, «como direito imediatamente eficaz», os três poderes do Estado15.

Contudo, em geral, os textos constitucionais não oferecem indicações muito claras. Em tais casos, a alternativa enunciada no início do parágrafo apresenta uma enorme relevância.

Se se adota a primiera corrente, às disposições programáticas se reconhece a natureza de prescrições com eficácia diferida, as quais, inicialmente podem produzir efeitos juridicamente apreciáveis, no momento de sua aplicação pelo legislador, adotando as necessárias normas de atuação16. Sob esse aspecto, elas seriam, pois, em última análise, entendidas como meras recomendações dirigidas ao Parlamento, como ambiciosas declarações de boas intenções. Se, por outro lado, se adere à segunda corrente, podem surgir três consequências.

Considera-se, particularmente:

  1. que elas estabeleçam um vínculo jurídico (e não meramente político) a cargo do legislador;

  2. que provoquem a ilegitimidade constitucional das normas hierarquicamente subordinadas com as mesmas incompatíveis;

  3. que concorram com as determinações dos princípios gerais do ordenamento, utilizáveis tanto para o suprimento das lacunas quanto em sede de interpretação sistemática.

Esta última representa a leitura afirmada na Itália para as disposições programáticas da Constituição, depois de um vigoroso debate, que viu o seu maior protagonista em um dos mais significativos constitucionalistas italianos do século XX: Vezio Crisafulli17. A Corte constitucional, com efeito, desde a sua primiera decisão, (sent. n. 1/1956), considerou a possibilidade de anular leis contrastantes com normas programáticas da Constituição.

Para avaliar o real alcance de tais soluções pode ser útil um exemplo contido no art.37 da Const. italiana. Referida disposição prevê que as condições de trabalho daPage 222 mulher trabalhadora devem “consentir o cumprimento da sua essencial função familiar e assegurar à mãe e à criança uma especial e adequada proteção”.

Portanto, é evidente que, para realizar por inteiro o escopo indicado pela norma, a intervenção do legislador seja indispensável. Com efeito, somente o legislador, pode prever a licença remunerada para a maternidade18, benefícios previdenciais para as mães trabalhadoras19 ou a obrigatória criação dos berçários nos lugares de trabalho. Isto não significa, entretanto, que, na espera de leis atuantes, a norma constitucional seja condenada à uma total ineficácia. Ela, na verdade, é idônea a tornar constitucionalmente ilegítimas eventuais normas legislativas que tivessem previsto a rescisão do contrato de trabalho por motivo de maternidade. E justifica, então, o anulamento de tais normas por parte da Corte constitucional20.

Mas, não é suficiente.

Pela presença na Constituição de normas programáticas de eficácia diferida, a jurisprudência pode até deduzir consequências mais intensas.

Um exemplo particularmente significativo a respeito na Itália, encontra-se no art. 36 inciso 1, o qual dispõe que aos trabalhadores seja determinada uma retribuição «suficiente» e proporcional à qualidade e quantidade do trabalho prestado.

Que se trata de uma disposição programática, é de plena evidência.

Essa, realmente, indica o caráter geral que a retribuição deve apresentar, mas não quantifica a própria retribuição. Não menciona – por exemplo – qual retribuição seja proporcional à qualidade do trabalho de um tipógrafo e qual à qualidade do trabalho de um enfermeiro ou de um anestesista…

Para que esta norma se torne operante, o art. 39 da Constituição prevê uma especial fonte do direito: o contrato coletivo de direito público, o qual deve ser estipulado pelas delegações compostas por todos os sindicatos “registrados” da categoria a qual o contrato se refere (trata-se dos chamados contratos coletivos erga omnes). A tal fonte de direito foi confiado, categoria por categoria, a fixação da relação entre qualidade do trabalho e medida da retribuição.

Mas, devido à oposição de muitos sindicatos, o art. 39, sessenta anos após a entrada em vigor da Constituição, não recebeu atuação. O legislador, na verdade...

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