José Martí: sua visão de progresso e o materialismo histórico

AutorFabio Luis Barbosa dos Santos
CargoDoutorando em História Econômica pela FFLCH ? USP
Páginas9-18

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Introdução

Neste trabalho, procederemos a uma apreciação crítica da visão de progresso martiana do ponto de vista do materialismo histórico. Com esta finalidade, o texto realizará o seguinte movimento: depois da exposição das linhas mestras da visão de progresso segundo Martí, buscaremos investigar primeiramente o alcance e, a seguir, o limite crítico, da sua chave interpretativa para, em seguida, realizarmos algumas observações relacionando o seu pensamento aos dilemas históricos do continente.

1. Visão de progresso

A visão de progresso martiana cristaliza-se no ideário de Nuestra América como um projeto civilizatório próprio, alternativo à modernidade ocidental, produto da conjunção entre a sua visão de homem consubstanciada na noção do hombre natural, e a sua visão da história angulada em torno da noção do caráter como chave da interpretação de um povo. A noção do hombre natural tem como premissa uma dimensão transcendente da existência, que deve orientar a organização social em contraste com o materialismo típico das sociedades industriais. A partir deste ângulo, Martí questiona o parâmetro civilizatório ocidental e sugere formas alternativas de construção, organização e divulgação do conhecimento, que obedeçam a outra racionalidade inclusiva do sentimento, presidida por uma lógica aditiva e não demonstrativa e cujo sentido precípuo é dado pela realização do humano fundada no amor.

Martí identifica na característica específica da formação latino-americana a potenciali-dade de afirmação histórica do hombre natural como ideal civilizatório1, visão assentada na noção do caráter como expressão ética da característica histórica de um povo. Por isso, para Martí, a valorização do autóctono é ao mesmo tempo o método político da emancipação e a via espiritual da realização humana.

Assim, na chave martiana progresso, significa criar condições históricas para a afirmação do hombre natural, o que se traduz na promoção de uma noção alternativa de modernidade orientada por princípios éticos pautados pelo amor, passível de realização por meio do projeto de Nuestra América, que tem como pressuposto a afirmação da autoctonia a partir da esfera cultural, premissa para a emancipação política e econômica. Projetada no fluxo da história universal, a causa da independência das Antilhas adquire consequências civilizatórias decisivas, porque pode brecar o expansionismo estadunidense e favorecer o equilíbrio geopolítico do mundo, viabilizando o experimento da república moral como inovação humanística.

Em outras palavras, Martí propõe um particular (a autoctonia) como via de afirmação de um universal (o homem). Nesta visão, existem nexos tangíveis entre o processo político de independência cubana e a marcha civilizatória, bem como entre a emancipação da América Latina e a libertação do homem na sua integralidade. Em suma, em Martí, a afirmação da autoctonia é a realização do humano: patria es humanidad.

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Nesta perspectiva, o êxito da guerra nas Antilhas é duplamente estratégico: do ponto de vista da geopolítica global, é a possibilidade de minar o expansionismo estadunidense e facultar a unidade americana, ao mesmo tempo em que é a pedra fundamental de um projeto civilizatório alternativo. Ambos os vetores têm alcance mundial. Isto que significa que Martí concede papel protagonista ao continente do ponto de vista político, e estatura universal ao potencial cultural de Nuestra América, do ponto de vista humano.

Martí identifica, pois, o progresso da civilização com a afirmação do potencial histórico de Nuestra América. Esta visão está assentada na noção do caráter como chave para a interpretação histórica de um povo. Ao contrário do que a palavra indica, o caráter não está referido a uma suposta essência, mas sim a um processo de revelação ou não de potencialidades históricas. A decorrência implícita desta positivação da cultura latino-americana é um ceticismo em relação ao horizonte dos povos ocidentais. Embora a autoctonia seja a chave da afirmação histórica de povos de caráter distinto, como os Estados Unidos ou a Europa, ela não universaliza a possibilidade de realização do hombre natural: esta seria a especificidade da contribuição civilizatória americana.

Porque o outro lado da relação entre autoctonia e caráter é a compreensão que Martí tem do ódio de classes como característica dos povos ocidentais, que remete a um passado feudal. Ou seja: é uma especificidade europeia, que se reproduz nos Estados Unidos, país em que ocorre uma espécie de feudalização aguçada pela orientação materialista daquela sociedade. Nessas condições, bloqueia-se a possibilidade de realização do hombre natural, que é facultada a um povo que avance um projeto alternativo em condições de evitar os males associados à modernidade ocidental. Neste ponto, é possível explicitar o alcance e as limitações da chave interpretativa martiana.

2. Alcance

A sensível percepção de afinidades do ponto de vista cultural, remetidas a um passado identificado no colonialismo e que se atualizam na semelhança dos dilemas históricos presentes, permite a Martí visualizar a América Latina como uma totalidade.

Dito de outra maneira, a projeção de Nuestra América como desígnio civilizatório está enraizada, em primeira instância, em um conjunto de percepções referenciadas precisamente a uma racionalidade alternativa à ocidental: Nuestra América é antes uma intuição do que uma constatação “lo que es en mí vastísimo sentimiento continental” (MARTÍ, 2000, tomo II,
p. 11). Sua premissa é antes subjetiva do que objetiva: é o terreno fértil no qual se verificam as condições históricas e a possibilidade ética — ou seja, o caráter — propício para semear o hombre natural.

Podemos aventar a conjectura avessa: se o ângulo precípuo da abordagem martiana fosse econômico ou político, teria visualizado com semelhante intensidade a unidade latino--americana? Não sugerimos que a projeção de Nuestra América esteja desprovida de lastro objetivo, mas que a chave por meio da qual Martí identifica essa potencialidade é uma matriz cultural comum.

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Do ponto de vista histórico, este ideário está assentado em uma dupla percepção: de um lado, a possibilidade recente de afirmação da identidade americana, uma vez superadas as tendências centrífugas que dificultaram o processo de construção dos estados nacionais durante o século XIX. De outro, o expansionismo estadunidense confronta o continente com o imperativo da unificação que se apresenta como um dilema: ou uma proposta de...

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