Limitação de Jornada do Trabalhador Doméstico: Análise Crítica à luz da Dignidade Hu-mana, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e das Novas Diretrizes da OIT

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas79-86

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“Somos o país do ‘elevador de serviço’ para pobres e pretos; do ‘sabe com quem está falando’; dos quartos de empregada sem ventilação, do tamanho de armários nos apartamentos da classe média, reprodução contemporânea do espírito da ‘casa grande e senzala’.” 1

1. Introdução

Eis que está aí, o trabalho doméstico, como um dos temas do momento.

Vem à tona com toda a força, em um turbilhão de críticas e reflexões instaladas pela Organização Internacional do Trabalho — OIT, que ousou hastear a bandeira da dignidade e firmar, não sem algum atraso, que, definitivamente, os trabalhadores domésticos precisam ser arrancados desse terrível espectro de categoria de dimensão inferior que muitos de nós, ainda que involuntariamente, insiste em cultivar e perpetrar.

Todavia, ousamos discordar da tese específica de que o trabalhador doméstico brasileiro não tem limite de jornada. Não que a atitude da OIT, nesse particular, seja equivocada. É deveras importante e elogiosa. Mas o que pretendemos expor, neste breve texto, é uma linha de raciocínio que, por mais incrível que pareça, deveria ser um tanto quanto óbvia: no Brasil, de lege lata, trabalhador doméstico tem, sim, limite de jornada. E, ao contrário do que pensam muitos, essa assertiva jurídica em nada atrita com a Carta Constitucional vigente.

Para demonstrar isso, nosso foco, como sempre, há de partir da Constituição Federal, em toda a densidade axiológica que lhe dá vida e significado, convictos que somos que ela, a Constituição Federal, há de ser, sempre, nosso locus hermenêutico por excelência. Vejamos, então.

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2. Compreendendo o caput do art 7º da Constituição da República: A cláusula de fomento a um contínuo avanço social e a figura geral do homem enquanto trabalhador

Prevê o caput do art. 7º da Constituição Federal o seguinte:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...).” (grifo nosso)

Longe de ser apenas uma indicação de possibilidade de ampliação de direitos, o trecho em destaque encerra verdadeiro mandamento de otimização, verdadeira cláusula de fomento a um contínuo avanço social. Trata-se da previsão constitucional de verdadeiro princípio da progressividade dos direitos sociais.

E não poderia ser diferente. O Estado Democrático e Social de Direito busca o constante avanço das relações sociais, com efetivo combate à qualquer tipo de discriminação não justificada e às desigualdades sociais.

O princípio da progressividade dos direitos sociais dá guarida, na seara laboral, à possibili-dade de normas infraconstitucionais garantirem direitos superiores aos previstos na Constituição Federal sem que venham a ofendê-la, inexistindo inconstitucionalidade ou não recepção por esse exato motivo, o que, no Direito do Trabalho, é conhecido como princípio da aplicação da norma mais benéfica.

Trata-se de verdadeira inversão da pirâmide imaginada por Hans Kelsen2. No que toca aos trabalhadores, ocupa o ápice da pirâmide a norma que garante melhores direitos sociais, ainda que de menor “status jurídico”. Assim é que, no Direito do Trabalho, ao contrário da maioria dos demais ramos do Direito, pode uma norma infraconstitucional, inclusive um acordo ou convenção coletiva, prevalecer sobre o quanto previsto na Constituição Federal, desde que mais benéfico aos trabalhadores, e tudo sem que haja qualquer tipo de afronta à Carta Magna.

Ao revés, busca o Estado Democrático e Social de Direito a constante melhoria dos direitos sociais, o seu constante avanço e, para isso, garante um mínimo de direitos sociais que deve ser continuamente majorado, seja por Emenda Constitucional, seja por Leis Ordinárias, seja por Tratados Internacionais. O que importa, no fundo, é a constante melhoria dos direitos sociais3.

O conteúdo jurídico do princípio da progressividade dos direitos sociais estabelece em síntese que, nessa temática, não possuem validade as leis (em sentido amplo) editadas em prejuízo do atual arcabouço de direitos sociais sem uma devida compensação4. Não se pode piorar, em termos legais, as condições sociais das pessoas, notadamente dos trabalhadores.

Assim é que não se admite Emenda Constitucional visando à majoração da jornada de trabalho, o que equivaleria a regredir na temática de direitos sociais, situação vedada também pelo art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal5.

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Aliás, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a alteração da licença gestante, prevista no art. 7º, XVIII, da Constituição Federal, com o escopo de limitar o teto de pagamento do benefício pelo INSS, não pode ser realizada, pois a garantia está protegida pelo disposto no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Ainda que não haja pronunciamento expresso acerca de todo o Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) da Constituição Federal constituir-se núcleo imutável — cláusulas pétreas — parece ser esse o caminho que o STF seguirá. Vejamos a ementa do citado acórdão:

“EMENTA: — DIREITO CONSTITUCIONAL, PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. LICENÇA-GESTANTE. SALÁRIO. LIMITAÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 14 DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 20, DE 15.12.1998. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO DISPOSTO NOS ARTS. 3º, IV, 5º, I, 7º, XVIII, E 60, § 4º, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O legislador brasileiro, a partir de 1932 e mais claramente desde 1974, vem tratando o problema da proteção à gestante, cada vez menos como um encargo trabalhista (do empregador) e cada vez mais como de natureza previdenciária. Essa orientação foi mantida mesmo após a Constituição de 5.10.1988, cujo art. 6º determina: a proteção à maternidade deve ser realizada “na forma desta Constituição”, ou seja, nos termos previstos em seu art. 7º, XVIII: “licença à gestante, sem prejuízo do empregado e do salário, com a duração de cento e vinte dias”.
2. Diante desse quadro histórico, não é de se presumir que o legislador constituinte derivado, na Emenda n. 20/98, mais precisamente em seu art. 14, haja pretendido a revogação, ainda que implícita, do art. 7º, XVIII, da Constituição Federal originária. Se esse tivesse sido o objetivo da norma constitucional derivada, por certo a EC n. 20/98 conteria referência expressa a respeito. E, à falta de norma constitucional derivada, revogadora do art. 7º, XVIII, a pura e simples aplicação do art. 14 da EC n. 20/98, de modo a torná-la insubsistente, implicará um retrocesso histórico, em matéria social--previdenciária, que não se pode presumir desejado. 3. Na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá apenas por R$ 1.200,00 (hum mil e duzentos reais) por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira, facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. Estará, então, propiciada a discriminação que a Constituição buscou combater, quando proibiu diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (art. 7º, inc. XXX, da CF/88), proibição, que, em substância, é um desdobramento do princípio da igualdade de direitos, entre homens e mulheres, previsto no inciso I do art. 5º da Constituição Federal. Estará, ainda, conclamado o empregador a oferecer à mulher trabalhadora, quaisquer que sejam suas aptidões, salário nunca superior a R$ 1.200,00, para não ter de responder pela diferença. Não é crível que o constituinte derivado, de 1998, tenha chegado a esse ponto, na chamada Reforma da Previdência Social, desatento a tais consequências. Ao menos não é de se presumir que o tenha feito, sem o dizer expressamente, assumindo a grave responsabilidade. 4. A convicção firmada, por ocasião do deferimento da Medida Cautelar, com adesão de todos os demais Ministros, ficou agora, ao ensejo deste julgamento de mérito, reforçada substancialmente no parecer da Procuradoria Geral da República. 5. Reiteradas as considerações feitas nos votos, então proferidos, e nessa manifestação do Ministério Público federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade é julgada procedente, em parte, para se dar, ao art. 14 da Emenda Constitucional n. 20, de
15.12.1998, interpretação conforme à Constituição, excluindo-se sua...

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