O STF e o Julgamento do Recurso Extraordinário 405.386: Um Olhar Dogmático, Zetético e Crítico

AutorEduardo Brugnolo Mazarotto
CargoMestrando em Direito (Uninter). Pós-Graduando em Direito Administrativo e Administração Pública (Unicuritiba)
Páginas31-38

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Excertos

"Quando princípios se encontrarem em rota de colisão, devem ser ponderados sob a égide de adequação, necessidade e proporcionalidade, a fim de que a situação concreta seja examinada de modo a não invalidar o princípio, mas sim fazer com que prepondere aquele que melhor se adapte ao case"

"É certo que, em um primeiro plano, uma lei que constitua um benefício individual pode realmente aparentar afronta à moralidade, impessoalidade e legalidade"

"O processo de análise zetética diverge do dogmático, uma vez que possui maior abertura temática, desde a recepção de outras disciplinas e matérias na análise do problema"

1. Introdução

O presente trabalho al-meja elaborar análise baseada na concepção dogmática, zetética e crítica quanto ao acórdão lavrado no julgamento do Recurso Extraordinário 405.386 (Rio de Janeiro), em que o Supremo Tribunal Federal reformou decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que havia decla-rado inconstitucional lei municipal que autorizava pagamento de pensão vitalícia à viúva de ex-prefeito municipal que faleceu no curso do mandato.

A decisão do STF, além de ter declarado inconstitucional tal lei municipal, determinou a devolução dos valores percebidos, responden-do solidariamente a beneficiária, o prefeito que sancionou a matéria e todos os vereadores que votaram de forma favorável pela aprovação da medida.

Em sede de análise pela suprema corte, a decisão restou reformada por maioria, sendo voto vencido da ministra relatora Ellen Gracie, sob o ensejo de que para um ato administrativo (ou legislativo) ser considerado "imoral", devem ser observadas questões de fato que embasaram a prática do ato e também deverá restar comprovado o elemento subjetivo da conduta a fim de atribuição de responsabilida-de civil aos agentes públicos.

Sob esta égide, o presente estudo objetiva analisar, bem como discutir a decisão, matéria e possíveis consequências para a ordem pública. Ademais, o artigo examina os argumentos dogmáticos e zetéti-co levantados e, ao final, aventa a possibilidades de solução tendo em vista aspectos políticos e sociais.

2. A situação-problema e seus entornos jurídicos

O caso tem como objeto o no Recurso Extraordinário 405.386/ RJ.

A origem da demanda judicial em análise se fundou na existência da lei ordinária 825/86 do Município de Porciúncula, Estado do Rio de Janeiro, que conferiu à viúva de ex-prefeito pensão vitalícia em valor correspondente a 30% da última remuneração do falecido.

O Ministério Público, na condição de custos legis, ajuizou ação civil pública almejando a declaração de inconstitucionalidade da referida legislação e condenação à devolução dos valores percebidos pela "ex-primeira dama" municipal, de forma solidária entre a própria, vereadores que aprovaram a matéria e o prefeito que sancionou a lei.

Foi o parquet vitorioso em 1º e 2º grau, e após interposição de recurso extraordinário pela parte ven-cida, chegou a matéria ao exame do Supremo Tribunal Federal.

Ao final, a suprema corte decidiu, por maioria, que não há empecilho constitucional à edição de leis sem caráter geral e abstrato, provi-

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das apenas de efeitos concretos e individualizados. Por conseguinte, entenderam que o tratamento privilegiado a certas pessoas somente poderia ser considerado ofensivo ao princípio da igualdade ou da moralidade quando não decorrer de uma causa razoavelmente justificada, ra-zão pela qual foi dado provimento ao recurso extraordinário em comento, afastando as condenações impostas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Desta forma, de acordo com o hard case apresentado, objetiva-se problematizar a formação de leis cujo caráter seja concreto e individualizado, bem como suas implicações perante a ordem pública, haja vista que se pode denotar que a legislação em discussão é contrária aos princípios normativos e não possui respaldo no interesse público.

3. Princípios constitucionais aplicáveis ao hard case e aspectos relacionados à colisão de princípios

Antes do enfrentamento do aspecto formal e material da insurgida lei municipal cuja constitucionalidade fora apurada pela suprema corte, impende traçar esboço teórico acerca dos princípios da moralidade e isonomia, além dos fatores decorrentes da colisão destes, os quais constituíram pilares principiológicos à sustentação do acórdão.

Conforme é argumentado por Dworkin e Alexy, quando diversos princípios colidem, há de prevale-cer um deles. Existem situações em que, sopesando questões de fato e de direito, um princípio autorizaria (talvez até mesmo determinaria) a tomada de determinada conduta. De outro norte, algum outro princípio proibiria a prática desta mesma conduta.

Neste caso, estaríamos diante de uma colisão de princípios. Alexy

(2011, p. 93-94), trabalha as ques-tões atinentes à colisão de princí-pios de forma bastante didática:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resol-vida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Confli-tos entre regras ocorrem nas dimensões da validade, enquanto as colisões entre princípios - visto que só princípios válidos podem colidir - ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso.

Sobre o mesmo tema, Dworkin (2002, p. 43) diz que:

Se duas regras entram em confli-to, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, de ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras que dão precedência à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra sustentada pelo princípio mais importante.

Certo é que a ponderação entre dois princípios não resultará na invalidação do outro, mas que far--se-á a verificação da situação con-creta frente a qual princípio seria mais importante prevalecer ante as circunstâncias fáticas e concretas do caso em questão.

As condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem precedência (Alexy, 2011, p. 96).

Quando princípios se encontrarem em rota de colisão, devem ser ponderados sob a égide de adequação, necessidade e proporcionali-dade, a fim de que a situação con-creta seja examinada de modo a não invalidar o princípio, mas sim fazer com que prepondere aquele que melhor se adapte ao case.

Desta forma, à colisão aplica-se técnica hermenêutica a fim de que afaste a invalidação da disposição normativamente inferior por meio de uma interpretação harmonizadora, de modo que ao invés de prestigiar o sentido das palavras, consagrase a interpretação compatível com o sistema jurídico (Justen Filho, 2014, p. 167).

Superada a breve discussão acerca da colisão de princípios e suas medidas de dimensão do peso e prevalência, passamos a descrever os elementares princípios objetos da sustentação do indigitado acórdão.

No que se refere ao princípio da moralidade, é notório seu entabulamento no artigo 37 da carta da República, sendo este tido como um dos princípios basilares da administração pública e cuja im-portância em nosso ordenamento jurídico se mostra vital. Meirelles (2012, p. 90) destaca que:

"O agente administrativo, como ser humano dotado de capacidade de atu-ar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o Honesto do Desonesto. E ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético da sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo do injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também en-tre o honesto e o desonesto."

Nesta mesma esteira, olhando o princípio da moralidade em relação aos jurisdicionados, a mora-

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lidade administrativa, dentro dos seus contornos, é princípio constitucional fundamental, tanto que a própria Constituição assegura o direito do cidadão de ajuizar ação popular (art. 5º, LXXII, da CF) para a impugnação de conduta, omissiva ou comissiva, que seja lesiva à moralidade administrativa (Almeida, 2008, p. 562).

Deste modo, é o princípio da moralidade aquele que norteia o agente quanto à ideia do que seria correto para a administração. Claro que é um termo polissêmico, de forma que poderia existir uma cer-ta dificuldade na distinção do que seria certo, ético ou prudente para determinado indivíduo e que poderia ser entendido de forma diversa para outrem.

O referido problema é observado no próprio acórdão do Recurso Extraordinário 405.386/RJ, eis que até decisão de 2º grau foi a matéria interpretada como ofensiva à moralidade administrativa e em sede de nossa corte constitucional...

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