O STF e o Dogma do Legislador Negativo

AutorRodrigo Brandão
CargoProfessor-adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ
Páginas189-220
O STF e o Dogma do
Legislador Negativo
Rodrigo Brandão*
1. Introdução
De longa data o STF considera que, ao exercer o controle de constitucio-
nalidade, deve atuar tão-somente como legislador negativo, nunca como
legislador positivo, sob pena de usurpar função típica do Parlamento. Em
decisão que, embora proferida antes da Constituição de 1988, consiste em
precedente bastante citado da tese do “legislador negativo”, salientou o
Ministro Moreira Alves que:
Ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o Tribunal – em
sua função de Corte Constitucional – atua como legislador negativo (...).
O mesmo ocorre quando Corte dessa natureza, aplicando a interpretação
conforme à Constituição, declara constitucional uma lei com a interpre-
tação que a compatibiliza com a Carta Magna, pois, nessa hipótese, há
uma modalidade de inconstitucionalidade parcial (...), o que implica dizer
que o Tribunal Constitucional elimina – e atua, portanto, como legislador
negativo – as interpretações por ela admitidas, mas inconciliáveis com a
* Professor-adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor
e Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador do Município do Rio de Janeiro. E-mail: rbrandao2@
globo.com.
1 Cite-se, por exemplo, a Representação n. 1451-7, STF, Pleno, Relator Ministro Moreira Alves, Julgamento
em 25.05.1988, DJ 24.06.1988.
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Assim, o controle de constitucionalidade teria uma função estritamente
supressiva, no sentido de competir ao Judiciário apenas retirar a ef‌icácia
jurídica de dispositivos, expressões ou mesmo de interpretações dos atos
normativos impugnados que sejam considerados inconstitucionais.2 Qual-
quer tentativa de adicionar novos conteúdos aos dispositivos em exame
(através da criação ou alteração das respectivas regras) esbarraria na invia-
bilidade de o Judiciário atuar como legislador positivo, suposto corolário
da separação dos poderes.
Antes de ref‌lexo do passado, tal ideia tem sido reproduzida reiterada-
mente em recentes julgados do Supremo Tribunal Federal. Cite-se, por
exemplo, decisão proferida em 27.11.2012 pela Primeira Turma do STF
no Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n.º 737185, relatada
pelo Ministro Dias Toffoli, em que se negou pedido de parcelamento tri-
butário diferenciado com base no entendimento de que “impossibilida-
de de o Poder Judiciário atuar como legislador positivo, resguardada a
sua atuação como legislador negativo nas hipóteses de declaração de in-
constitucionalidade.” No mesmo sentido, a af‌irmação do Ministro Ricar-
do Lewandowski, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 231924,
publicado em 21.06.2011, de que “jurisdizer não pode implicar legislar.
Jurisdizer é dizer o direito que se contém na lei ou na Constituição. Juris-
dizer não é juriscriar.”
Todavia, essa versão do conceito de legislador negativo constitui exemplo
singular de uso sincrético de teorias inconciliáveis, qual seja, a combinação
de um positivismo à la Escola da Exegese com o normativismo kelseniano3.
Para a primeira teoria, a aplicação judicial do direito consistiria em
atividade puramente cognitiva ou interpretativa, é dizer, despida de di-
mensão criativa, pois caberia ao intérprete apenas desvendar a vontade
pré-estabelecida pelo legislador contida na norma. Haveria, portanto, clara
distinção de natureza entre as funções legislativa (criativa) e judicial (inter-
2 Conf‌ira-se, a propósito, trecho do voto proferido pelo Min. Celso de Mello, na ADI 1063-8-DF: “A Ação
Direta de Inconstitucionalidade não pode ser usada com o objetivo de transformar o Supremo Tribunal
Federal, indevidamente, em legislador positivo, eis que o poder de inovar o sistema jurídico, em caráter
inaugural, constitui função típica da instituição parlamentar.”
3 Sobre as relações entre o positivismo e o normativismo no plano da hermenêutica constitucional, conferir
SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, especialmente as páginas 71 a 130.
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pretativa)4. No plano do controle de constitucionalidade, tal argumento se
reconduz à tradicional atuação do STF como “Guardião” da Constituição:
ao declarar leis inconstitucionais, o Supremo não atuaria como legislador
positivo, pois se limitaria a invalidar manifestações do legislador ordinário
que contrariassem a “vontade do constituinte” corporif‌icada nas normas
constitucionais. Tratar-se-ia, portanto, de mera aplicação da Constituição.
Por outro lado, não é raro se vincular à obra de Hans Kelsen a necessi-
dade de a Suprema Corte se portar como “legisladora negativa”, especial-
mente à sua emblemática defesa da criação de um Tribunal Constitucional
responsável pela f‌iscalização abstrata da constitucionalidade das leis e atos
normativos5.
A referência à Kelsen não é, em absoluto, despropositada. O conceito
de legislador negativo (der negative Gesetzgeber) foi, de fato, concebido pelo
jurista austríaco em seu célebre debate com Carl Schmitt sobre quem de-
veria ser o “Guardião da Constituição”. Ocorre que o emprego do conceito
de “legislador negativo” como negação da criatividade na interpretação ju-
dicial do direito apresenta sérios problemas conceituais.
Destaque-se, inicialmente, a incompatibilidade entre as respostas da-
das pelo positivismo clássico e pelo normativismo kelseniano sobre a natu-
reza da atividade judicial, muito embora elementos destas teorias jurídicas
sejam utilizados indistintamente para a fundamentação de tal conceito de
“legislador negativo”. Com efeito, enquanto o positivismo clássico preconi-
zava que a aplicação do direito pelo Judiciário se reduziria a uma atividade
executiva, o normativismo kelseniano expressamente reconhecia a sua di-
mensão criativa.
Com efeito, a partir da sua virada para a dinâmica jurídica, Kelsen
passa a analisar como o sistema jurídico produz as suas próprias normas,
tomando de empréstimo a concepção escalonada da ordem jurídica (Stu-
fenbaulehre) desenvolvida por Adolf Julius Merkl, segundo a qual normas
de escalão superior regeriam a produção e o conteúdo de normas infe-
riores. Desta forma, a validade de um decreto estaria submetida a sua
4 Ver BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições de Filosof‌ia do Direito. São Paulo: Ícone Editora,
1995, especialmente o capítulo VI “A função interpretativa da jurisprudência”, pp. 211 a 222.
5 Conferir “A garantia jurisdicional da Constituição”, trabalho exposto por Kelsen em outubro de 1928
no Instituto Internacional de Direito Público, e publicado em língua portuguesa no livro: KELSEN, Hans.
Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 119 a 210.
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