State of exception, civil disobedience and des-institution: towards a radical-democratic reading of the constituent power/Estado de excecao, desobediencia civil e desinstituicao: por uma leitura democratico-radical do poder constituinte.

AutorMatos, Andityas Soares de Moura Costa

Introducao

Ha pelos menos duas vertentes tradicionais que tentam compreender a natureza da desobediencia civil: o liberalismo e o constitucionalismo. Nao obstante o fato de o constitucionalismo representar um inegavel avanco em relacao a leitura puramente liberal da desobediencia civil, minha hipotese de trabalho e que a compreensao da desobediencia civil precisa ser radicalizada, de modo a compreende-la nao enquanto expressao constitucional do poder constituido, mas antes como manifestacao permanente da relacao entre poder constituinte e poder desinstituinte (2). Sem esse salto teorico e pratico a desobediencia civil estara condenada a ser mais um dos mecanismos juridicos que, em sua ineficacia, nao sao hoje capazes de oferecer vias alternativas a situacao de excecao economica permanente em que vivemos. No entanto, antes de discutir tal tema, e necessario percorrer rapidamente os principais momentos da conceituacao da ideia de desobediencia civil, bem como suas diversas fundamentacoes teoricas produzidas nos marcos das duas tradicoes--liberal e constitucionalista--que a pensaram no ultimo seculo--objeto da secao 1 deste texto--, frisando desde ja que a divisao entre tais matrizes teoricas possui validade apenas didatica, eis que muitas vezes se confundem e complementam, tendo em vista o fato obvio de que o constitucionalismo nasce e se desenvolve a partir de uma visao liberal do direito e da politica.

Caso abandonemos a posicao ingenua segundo a qual ha uma essencia libertaria ou democratica nos atuais Estados de Direito que se encontra colonizada ou bloqueada pelas forcas neoliberais dos mercados e das financas globais, e entendermos que nos encontramos em um novo momento historico paradigmatico no qual tanto o projeto politico liberal quanto o projeto economico socialdemocrata falharam, abre-se possibilidade de pensar a desobediencia civil como uma das expressoes radicais do poder constituinte, apontando para uma critica e uma reacao geral ao sistema da excecao permanente. Para investigar tal hipotese, e preciso verificar a tese segundo a qual vivemos em um estado de excecao economico permanente--tema da secao 2--, bem como avaliar a dinamica existente entre poder constituido, constituinte e desinstituinte--materia da secao 3--, indicando as possibilidades de se conceber a desobediencia civil nesses tres campos. O texto termina na quarta secao, na qual apresento uma proposta para a fundamentacao da tese que me interessa defender, qual seja: em uma democracia radical--ou seja, nao representativa--a unica maneira de se compreender a desobediencia civil e como manifestacao do poder constituinte permanente da multidao, assumida como o verdadeiro sujeito do poder politico.

Todavia, antes de iniciar a discussao, entendo relevante trazer ja no inicio do debate a reflexao de Francisco Javier de Lucas Martin, para quem e preciso superar o discurso que entende ser perigosa e pejorativa toda critica coerente e radical ao sistema de poderes constituidos, como e o caso daquela que aqui pretendo construir. De fato, vendo na desobediencia civil uma critica antissistema, muitos pretendem desqualifica-la e mesmo criminaliza-la, eis que nao haveria lugar para esse tipo de manifestacao em uma democracia institucionalizada. Ao contrario, segundo Lucas Martin, a desobediencia civil e um dos instrumentos que torna possivel frear o processo de desconstitucionalizacao de varios direitos, em especial os sociais. So nao enxergam tal realidade aqueles que, imbuidos de um "fundamentalismo democratico", acabam identificando legalidade e legitimidade, entendendo que a Constituicao e um texto sagrado, interpretavel apenas por uma minoria seleta de especialistas e que, portanto, pressupoe uma cidadania que, chamada apenas a depositar seu voto periodicamente nas urnas, se conforma enquanto maioria silenciosa (LUCAS MARTIN, 2013:58-59). Ainda segundo o autor concepcoes assim

tornam-se presas desse "odio a democracia", que na realidade parte do medo ao povo, tal como ja estudado e denunciado por Jacques Ranciere e que, por simplificar, resume-se numa atitude de suspeita e temor cada vez que o povo, isto e, a cidadania, parece tomar voz para recuperar aquilo que democracia significa frente ao misto de aristocracia cultural e oligarquia economica [em que vivemos] (LUCAS MARTIN, 2013:59).

As recentes manifestacoes ao redor do globo--desde os movimentos da Primavera Arabe ate as lutas dos indignados espanhois e o Occupy Wall Street--demonstram a insatisfacao dos cidadaos com sistemas politicojuridicos comprometidos com o mercado e o capital, envelhecidos e incapazes de absorver demandas mais amplas de inclusao social, em especial aquelas que dizem respeito ao direito a cidade e a moradia digna; a limitacao do poder dos conglomerados economicos; a tutela de interesses de grupos socialmente oprimidos (mulheres, negros, homossexuais, precarizados, subempregados, populacao de rua etc.); a consideracao realista e resolutiva dos enormes problemas ambientais e climaticos que ameacam a continuidade da vida no planeta; e a efetivacao das garantias constitucionais relativas as liberdades civis constantemente limitadas por mecanismos de excecao.

No Brasil, algumas dessas pautas se traduziram nas manifestacoes de junho de 2013, que inicialmente se voltaram para o questionamento da estrutura dos transportes publicos nas grandes metropoles brasileiras. (3) Nada obstante, os temas que animaram esses movimentos rapidamente perderam a objetividade originaria, tendo sido, em larga medida, apropriados e falseados pela midia. Alem disso, algumas acoes passaram a se desenvolver em contextos nos quais nao estava ausente a violencia, patrocinada tanto por alguns grupos de manifestantes quanto por forcas policiais, fato que determinou a demonizacao dos movimentos pelas midias e seu progressivo esvaziamento. Nesse sentido, uma retomada da ideia de desobediencia civil cujo aspecto inegociavel e seu resoluto carater nao-violento--associada a um aprofundamento de seu escopo--traduzido agora na vertente do poder constituinte permanente--e nao apenas oportuna, mas urgente, dado que a principal funcao do pensamento politico-juridico democratico, em minha concepcao, e oferecer nao apenas vias de esclarecimento para praticas sociais emancipadoras e libertadoras, mas ao mesmo tempo compreende-las, justifica-las e instiga-las. Aqui ainda vale a percepcao de Guy Debord sobre o papel da filosofia: nao se trata de fazer uma fogueira--o que, de resto, seria nao so impossivel, mas tambem presuncoso, tipico daqueles que se autointitulam "filosofos-reis"--, e sim de jogar gasolina nas fogueiras ja existentes, tornando novamente as ideias perigosas.

  1. A desobediencia civil entre o liberalismo politico e o constitucionalismo (4)

    Entender a desobediencia civil como expressao permanente do poder constituinte de uma democracia radical nao e apenas uma proposta teorica inovadora de corte quase heretico, mas tambem uma tomada de posicao que traz importantes consequencias para os movimentos e atores sociais que questionam a ordem capitalista. Como se vera a seguir, a localizacao da desobediencia civil no campo do poder constituido ou no do poder constituinte se relaciona diretamente a sua fundamentacao e justificacao, bem como as limitacoes e potencialidades que o exercicio pratico da desobediencia impoe aos atores sociais que dela lancam mao.

    No que diz respeito a tradicao do pensamento politico-juridico constituido, conforme indiquei em outro trabalho (MATOS, 2006), a desobediencia civil corresponde a uma postura politica individual ou coletiva que, mediante acao organizada, consciente e nao-violenta, contesta a validade de aspectos especificos do direito vigente. Assim, a desobediencia civil nao se identifica com uma simples revolta ou com a mera negativa de cumprimento de normas juridicas. Trata-se de uma acao que busca transformar o direito sem, no entanto, utilizar para tanto mecanismos juridico-institucionais (COSI, 1984; SERRA, 2000 e BIONDO, 2008). Segundo a doutrina tradicional que logo terei a oportunidade de problematizar, a desobediencia civil nao se identifica com a anarquia, que pregaria a ausencia de qualquer ordem juridica, e nem com a revolucao, que objetivaria a integral transformacao do direito e do Estado. Com efeito, a desobediencia civil nao se define pela negativa da ordem, do governo ou do direito, pretendendo antes questionar e resistir a uma especifica ordem, a certo governo e a um particular direito que, por diversas razoes, sao tidos por injustos (MOORE JR., 1987).

    Embora muitos autores pretendam ver elementos de desobediencia civil ja no pensamento grego, em especial na celebre tragedia de Sofocles (Antigona) e no suicidio politico de Socrates, nao ha duvidas de que o conceito so e afirmado em sua especificidade a partir da modernidade, como bem demonstrou Hannah Arendt. No mesmo sentido, ainda que a discussao sobre o direito de resistencia--tema relacionado a desobediencia civil, mas nao identico--possa ser rastreada na obra de pensadores medievais como Tomas de Aquino, para quem seria licito resistir as normas juridico-positivas que nao se adaptassem ao direito natural revelado pela Igreja, somente com o surgimento do Estado de Direito pode-se pensar de maneira efetiva em estruturas de autocontrole capazes de evitar que a ordem juridica se transformasse em um mecanismo de opressao da cidadania.

    Algo como um esboco da ideia de desobediencia civil compos o rol original dos direitos fundamentais afirmados pelos revolucionarios franceses de 1789. Le-se no art. 2[degrees] da Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidadao de 1789, primeiro diploma constitucional em que se encontra positivado o nucleo basico dos direitos fundamentais: "A finalidade de toda associacao politica e a conservacao dos direitos naturais e imprescritiveis do homem. Esses direitos sao a liberdade, a propriedade, a seguranca e a resistencia a opressao". Ora, a desobediencia civil...

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