State, civil society and social policies: Social Work in Cras in action/Estado, sociedade civil e politicas sociais: o Servico Social no Cras em acao.

Autorda Silva, Chris Giselle Pegas Pereira

Introducao

A Politica Nacional de Assistencia Social (PNAS) foi aprovada pela Resolucao no. 145, de 15 de outubro de 2004, do Conselho Nacional de Assistencia Social (CNAS). Propoe-se a materializar as diretrizes preconizadas pela Lei Organica de Assistencia Social e os principios inseridos na Constituicao Federal de 1988, que destaca a Assistencia Social como uma politica social e um direito de cidadania.

A PNAS indica a Assistencia Social como Protecao Basica nao contributiva, que se apresenta em dois niveis: Protecao Social Basica e Protecao Social Especial. Os servicos da Protecao Social Basica devem ser oferecidos pelos Centros de Referencia de Assistencia Social (Cras), que atuam "com familias e individuos em seu contexto comunitario, visando a orientacao e ao convivio sociofamiliar e comunitario" (BRASIL, 2004, p. 35). Nesse sentido, e responsavel pela oferta do Servico de Protecao e Atendimento Integral a Familia (Paif).

O Paif e realizado atraves do trabalho social com as familias. Segundo a Tipificacao Nacional de Servicos Socioassistenciais, tem a finalidade de fortalecer a funcao protetiva das familias, prevenir a ruptura de vinculos, promover seu acesso e usufruto de direitos e contribuir com a melhoria de sua qualidade de vida (BRASIL, 2009). Obrigatoriamente, o assistente social compoe a equipe de referencia da Protecao Social Basica e, portanto, deve trabalhar no desenvolvimento do Paif (BRASIL, 2006).

O Servico de Protecao e Atendimento Integral a Familia, um dos principais programas desenvolvidos pelo Cras e preconizado na Politica Nacional de Assistencia Social, visa contribuir com o fortalecimento e a materializacao da Assistencia Social enquanto uma politica publica. Nesse sentido, a historia pregressa dos papeis exercidos pelo Estado e pela sociedade civil contribui com a discussao da visao democratica dessa politica.

Diante do exposto, o presente artigo objetiva mostrar uma reflexao sobre o Paif e sua interlocucao com a Politica Nacional de Assistencia Social, contribuindo para a superacao das situacoes de vulnerabilidade dos usuarios atendidos pelo Cras, resultante do processo de elaboracao do projeto de qualificacao durante o curso de Doutorado em Servico Social da Pontificia Universidade Catolica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Estado e sociedade civil: uma relacao historica

No inicio do seculo XVII, Thomas Hobbes introduz a discussao sobre a origem contratual do Estado, que contribui para superar a fase do Estado tecnocratico, baseada no direito divino. A sua classica obra O Leviathan tentou sistematizar o comportamento politico das pessoas a partir da logica dedutiva, junto as leis do movimento e os conceitos do seculo XVII que revolucionaram a pesquisa cientifica (CANOY, 1988). Essa obra defende o poder infinito de quem governa em nome da manutencao da ordem, na qual o Estado, e nao mais a Igreja, torna-se senhor absoluto da vida e dos comportamentos humanos. A transformacao do "estado de natureza" para o Estado e representada pela passagem de uma condicao na qual cada um utiliza a propria forca contra os demais; uma condicao na qual o direito de usar a forca cabe apenas ao soberano. Assim, o poder politico assume uma conotacao que permanece constante ate hoje (BOBBIO, 2003). O "estado de natureza" e configurado pelo desejo de poder pelos homens, no qual esse poder e definido pela capacidade de comandar e dominar os outros homens, tidos como concorrentes (MONTANO; DURIGUETTO, 2011).

Ao final do seculo XVII, John Locke criticava o absolutismo atraves de uma concepcao positiva dos direitos do homem e das liberdades individuais importantes para libertar politicamente a sociedade inglesa da tirania predominante. Locke diverge completamente de Hobbes no que tange a natureza do soberano; na sua definicao de sociedade politica, a monarquia absoluta nao e compativel com o governo civil. Nesse sentido, Locke exclui a monarquia absoluta de qualquer forma aceitavel de governo (CANOY, 1988).

No inicio do seculo XVIII, Montesquieu faz uma profunda critica ao discutir, nas relacoes sociais e institucionais, as tecnicas de liberdade e os instrumentos de protecao, evidenciando a necessidade de haver separacao e equilibrio de poderes. A sua obra O espirito das leis foi transformada pelo constitucionalismo europeu em breviario da democracia representativa e manual civico da liberdade moderna. Para esse autor, a democracia, na ordem republicana, apresenta-se como nova virtude moral, com plena capacidade de envolver a todos na renuncia e no sacrificio por amor a patria e as leis, tendo a liberdade como virtude por excelencia (BANDEIRA, 2006). Atraves da idealizacao que Montesquieu faz da monarquia inglesa, na qual ve realizado o principio da separacao de poderes, a monarquia constitucional passa a ser interpretada como forma mista e torna-se o modelo universal de Estado apos a Revolucao Francesa (BOBBIO, 2003).

Ainda no seculo XVIII, Jean-Jacques Rousseau, em sua obra Contrato social, mostra a nocao de liberdade como direito e dever, com o qual, por meio de contrato social, se alcanca a vontade geral. A vontade individual e submetida a vontade geral e ao bem publico, contribuindo para que o Estado imponha ao homem deveres e obrigacoes politicas e sociais que justificam a propria existencia do Estado. Para Rousseau, ao contrario das outras teorias de contrato social daquela epoca, a sociedade civil representa a forma como os homens sao encontrados na sociedade, e nao um modelo idealizado (CANOY, 1988).

Rousseau ainda critica a ordem politica visualizada por Hobbes e Locke como forma de garantir a seguranca e o interesse de todos. De acordo com ele, esta ordem acaba por defender os interesses da minoria, contribuindo para ratificar a desigualdade e a dominacao politica dos "poderosos" sobre os "fracos" (MONTANO; DURIGUETTO, 2011). Enquanto que para Locke e Hobbes a sociedade civil e uma sociedade civilizada porque e politica, para Rousseau a sociedade civil e civilizada (e cheia de defeitos, usurpacoes, banditismos e exploracoes) porque ainda nao e politica.

No inicio do seculo XIX, Georg Wilhelm Friedrich Hegel reestabelece a distincao entre Estado e sociedade, mas coloca o Estado como fundamento da sociedade civil e da familia. Para ele, o Estado detem a soberania, nao o povo. Portanto, e o Estado que funda o povo e organiza a sociedade, mas a estabilidade desse Estado so podia ser alcancada se os suditos compartilhassem valores eticos comuns. Hegel indica o Estado nao como um modelo ideal, mas como uma descricao do Estado burgues, tendo como marco o movimento historico real de desenvolvimento do capitalismo (MONTANO; DURIGUETTO, 2011).

A sociedade civil, segundo Hegel, representa o momento em que a unidade familiar se dissolve nas classes sociais antagonicas, ainda guiadas pelas necessidades, mas cujas lutas promoviam a instauracao de leis como forma de regulacao de conflitos sociais. Assim, a sociedade civil continha elementos do Estado, mas nao era Estado por falta de organizacidade. Embora, para Hegel, a sociedade civil "se transforme em Estado, ha entre ambos (Estado e sociedade civil) distincoes e nao identificacoes diretas tal como pensavam os jusnaturalistas, Hobbes e Locke" (PEREIRA, 2008, p. 155).

A sociedade civil hegeliana representa o primeiro momento de formacao do Estado (juridico-administrativo), cuja tarefa e regular relacoes externas, enquanto que o Estado propriamente dito representa o momento etico-politico cujo objetivo e realizar a adesao intima dos cidadaos a totalidade de que faz parte. As categorias hegelianas tem uma dimensao historica e sao ao mesmo tempo partes interligadas de uma concepcao global da realidade (BOBBIO, 2003).

Para Karl Heinrich Marx, contemporaneo de Hegel, nao e o Estado que organiza a sociedade, mas a sociedade, entendida como o conjunto das relacoes economicas, que explica o surgimento do Estado, de sua natureza, de seu carater e dos recursos politicos. Nas palavras de Marx (apud GRUPPI, 1980, p. 27), "o conjunto dessas relacoes de producao constitui a estrutura economica da sociedade, isto e, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura juridica e politica a qual correspondem formas de consciencia social", sendo o Estado determinado pelas relacoes economicas. Marx, diferente de Hegel, criticava o Estado e nao o legitimava; pelo contrario, evidenciava o seu carater alienante. Ele subordina claramente o Estado a sociedade civil, sendo esta que define as formas de organizacao e os objetivos do Estado, considerando as relacoes materiais de producao em um determinado estagio do desenvolvimento capitalista (CANOY, 1988).

Alem disso, no seu conceito de sociedade civil burguesa, Marx designa o modo de divisao e organizacao do trabalho em condicoes de predominio do capital inserido em um campo sociopolitico e cultural mais amplo, em que essa divisao e organizacao se inscrevem (PEREIRA, 2008), definindo a sociedade civil como esfera da producao e reproducao da vida material (MONTANO; DURIGUETTO, 2011). Portanto, Marx faz da sociedade civil o lugar das relacoes economicas e passa a significar o conjunto de relacoes interindividuais que estao fora ou antes do Estado, exaurindo a compreensao da esfera pre-estatal distinta e separada do Estado (BOBBIO, 2003).

Ja no inicio do seculo XX, Antonio Gramsci amplia o conceito de Estado, que inclui a sociedade, diferenciando-se da concepcao restrita de Marx, para quem o Estado e um instrumento de dominacao da classe dominante, cuja sociedade civil faz parte do terreno estrutural ou de "base material" (BOBBIO, 2003). Para Gramsci, existe distincao entre sociedade civil e Estado: a sociedade civil esta inserida em um dos dois eixos superestruturais, isto e, naquele constituido por um conjunto de organismos e instituicoes de carater privado que corresponde a funcao de hegemonia. Em outro eixo, esta a sociedade...

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