Para o Sr. Schneider': quando operários pedem a seu patrão que se candidate a deputado (1902)
Autor | Michel Offerlé |
Páginas | 76-111 |
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2017v16n37p76
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“Para o Sr. Schneider”: quando
operários pedem a seu patrão que
se candidate a deputado (1902)1
“Devemos desejar que a sócio-história não prevaleça”
Pierre Favre, Amiens, 13 de maio de 2005
Michel Offerlé2
Resumo
Com base em procedimentos da sócio-história do político, o artigo discute como a competência
em política não pode ser compreendida fora das situações em que é solicitada. A análise de car-
tas escritas por operários de uma grande fundição no Creusot (França) a seu patrão e deputado
permite capturar os meandros do laço de patronagem por meio da mediação da prova escrita,
pela manifestação de fidelidade pessoal, logo, política, ao senhor da fundição-deputado. O entre-
laçamento entre o pessoal, o econômico e o político é a regra para os mais fiéis ou para aqueles
que imitam essa fidelidade. O jogo em torno dessa indiferenciação é um dos impulsos de certas
estratégias epistolares.
Palavras-chave: Politização. Operários. Sócio-história. França.
Apresentação para um leitor não familiarizado com a
história política e econômica da França
O Creusot é uma pequena cidade da Borgonha, na França. Seu nome,
agora conhecido pelos especialistas em histórica econômica, tinha grande re-
putação nos séculos XIX e XX, pois se tratava da sede de uma das maiores
empresas do mundo (Schneider et Compagnie), desde então e até sua liquida-
ção, em 1984, de propriedade da família Schneider (pronuncia-se Schneidre).
1 Texto publicado originalmente em Favre, P.; Fillieule, O.; Jobart, F. (dir.). L’atelier du politiste: théories,
actions, représentations. Paris: La Découverte, 2007, p. 163-188, à exceção da apresentação adicionada pelo
autor para publicação neste dossiê temático. Tradução de Ernesto Seidl.
2 Professor emérito de Ciência Política da Université de Paris I Panthéon-Sorbonne e da École Normale Supérieure
de Paris.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 16 - Nº 37 - Set./Dez. de 2017
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A cidade tem 2.700 habitantes em 1836, quando Adolphe e Eugène ad-
quirem uma fundição em diculdades nanceiras. Em seu apogeu, em 1921,
contará 38.000. Adolphe morre em 1845 e seu irmão Eugène (1805-1875)
assume o negócio que, em seguida, caberá a seu lho (1840-1898) e, poste-
riormente, a Eugène, chamado Eugène II (1868-1942). Charles (1898-1960)
herdará o negócio após a morte de seu pai.
A empresa produz sobretudo barcos, locomotivas e material militar (ca-
nhões). Fábricas Schneider também são instaladas no exterior e o grupo pos-
sui, antes da Primeira Guerra Mundial, cerca de 100.000 operários, emprega-
dos e engenheiros, no mundo inteiro.
Por meio de bons casamentos, a família Schneider se instalará de forma
durável na grande burguesia e na aristocracia francesas.
O Creusot é célebre na história social francesa, pois é um exemplo de
cidade-fábrica dirigida por seus empresários, que praticam uma política pa-
ternalista. Do berço até o túmulo, é possível se beneciar das liberalidades da
família (Senhoras Schneider participam da distribuição de auxílios): creches,
escolas, empregos, moradia, cuidados médicos, aposentadoria, cemitério.
A única condição é uma aceitação da dominação da fábrica, que pode, a qual-
quer momento, demitir agitadores e operários recalcitrantes. A cidade está
repleta de estátuas dos Schneider, um vitral da igreja os evoca, os nomes de
rua ainda hoje os celebram.
Essa dominação é reforçada pelo fato de a cidade ser controlada pelo
proprietário da fábrica, o qual, segundo os períodos, acumula os mandatos de
prefeito e deputado ou delega a um engenheiro e, mais tarde, a um testa de
ferro, os cuidados em manter os mandatos. As eleições em geral se desenrolam
sem contestação, devido ao alto custo que o uso da palavra tem no Creusot,
e devido também ao fato de até 1913 haver na França o voto com sufrágio
universal masculino (instaurado em 1848), mas sem envelope de cédula nem
cabine de votação. O dono da empresa e seus principais colaboradores reco-
lhem eles mesmos as cédulas, que depositam na urna, podendo assim sentir,
de acordo com o papel, para quem vai o voto do eleitor. É somente após a
Segunda Guerra Mundial que esse sistema desmoronará e que os mandatos
não mais serão controlados pela fábrica. A gestão política não passa de um
prolongamento da direção da empresa.
“Para o Sr. Schneider”: quando operários pedem a seu patrão que se candidate a deputado (1902) | Michel Offerlé
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Esse sistema atinge seu paroxismo sob o Segundo Império (1852-
1870), regime autoritário com base em eleições legislativas com candida-
turas ditas ociais (“o candidato do Imperador”), durante o qual Eugène
Schneider – chamado retrospectivamente de Eugène I – é não apenas um
comandante de indústria e um senhor de fundição muito importante, mas
também um homem político nacional ouvido pelo Imperador (ele foi mi-
nistro por alguns meses de Luís Napoleão Bonaparte em 1849, mais tarde
Napoleão III) e, ao nal do Império, ele é o presidente do Corpo Legislativo.
Os Schneider não serão tão bem considerados durante a III República (a partir
de 1870); mas, tendo em conta seu peso na economia francesa, O Creusot, a
cidade, sua fábrica e seus mandatos (quase sem interrupção) permanecerão à
disposição dos proprietários do lugar.
Neste texto, descrevo a maneira pela qual fui levado a redigir o artigo.
As cartas enviadas pelos operários se dão após o cansaço de Eugène II (pouco
presente e pouco ativo, aliás, na Câmara dos Deputados) com os mandatos
políticos que exerceu em primeira pessoa, isso em um momento em que as
greves de 1899-1900 colocaram em questão, para ele e para certo número de
operários, a evidência da “dominação paternal”.
Este artigo se propõe um exercício de método sócio-histórico e um retor-
no às ambivalências e à complexidade da relação de dominação paternalista.
O objeto define a caixa do arquivo?
Praticar a sócio-história implica uma relação particular com o campo e o
objeto. Armar que não há campo sem objeto e que não há objeto sem cam-
po parece um truísmo, pois, metodologicamente, o objeto de um trabalho
sócio-histórico é tão importante quanto seu campo; no sentido que a riqueza
empírica que o campo abriga e permite que se descubra não poderia levar a
esquecer que uma pesquisa sócio-histórica, em seus métodos e objetivos vi-
sados, considera o campo com seriedade, mas também o usa como pretexto.
Portanto, a pergunta é tanto “sobre o que você trabalha”? quanto “por que
você trabalha com esse campo”?
Velha questão sociológica esta que consiste seja em partir do campo e
de nele descobrir seu objeto, uma vez que o campo está disponível, aberto e,
portanto, abordável (SCHWARTZ, 1998); seja partir de um objeto – sempre
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