Solução de conflitos por meio da conciliação: contínuo espaço institucional para a composição processual adequada

AutorAdriana Goulart de Sena Orsini
Páginas27-35

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1. Introdução

Nos últimos dez anos, o Brasil tem vivenciado uma mudança nos paradigmas do tratamento de conflitos. Desde o Movimento Conciliar legal e a sua culminância com a edição da Resolução n. 125/2010 pelo Conselho Nacional de Justiça, observa-se uma radical alteração na concepção da solução de conflitos e, via de consequência, também na do acesso à justiça. A visão stricto sensu na qual o acesso a Justiça e o acesso ao Poder Judiciário se equivaliam é ampliada, tanto para se acolher os meios complementares de resolução de conflitos nas possibilidades endoprocessuais como para se fomentar a utilização do espaço extrajudicial pelos cidadãos e para que o acesso à Justiça se verifique pela via dos direitos.

A Política Pública nacional de tratamentos de conflitos avançou ainda mais com a publicação da Lei
n. 13.105/2015. É que o Código de Processo Civil/2015, logo no seu artigo terceiro, traz como norma fundamental à inserção dos métodos complementares de solução de conflitos, sendo responsabilidade dos profissionais jurídicos o estímulo de sua implementação.

Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

...

§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. (BRASIL, 2015).

O CPC/15 estabeleceu que em todos os processos cíveis devem existir audiências de mediação ou conciliação, ainda que não obrigatórias, designadas antes da apresentação da defesa pelo réu. Assim, alocou, no curso do processo, um momento para que o o consenso entre as partes fosse buscado e com a possibilidade de realização de um acordo e extinção do processo. Além dessa hipótese, o CPC/15 prevê duas situações em que a audiência de mediação será de comparecimento obrigatório para os litigantes: as ações de família,2 nas quais a audiência de mediação acontecerá previamente à apresentação de defesa pelo réu; e as ações possessórias multitudinárias que envolvam posse velha (posse de um ano e um dia) antes de o juiz apreciar o pedido de concessão de medida liminar (BRASIL, 2015d).

Outro importante exemplo da mudança paradigmática acima mencionada é a regulamentação da mediação, tanto judicial quanto extrajudicial, pela Lei
n. 13.140/2015, denotando reconhecimento de outras formas de resolução de conflitos e, via de consequência, da ampliação das “portas de acesso” à justiça.

Entretanto, a mudança do paradigma de tratamento de conflitos de interesse não ocorre somente pela positivação das formas consensuais de solução de controvérsias. É preciso que a atuação dos profissionais do direito também se altere para que a mudança da mentalidade de judicialização e da não consensualidade no tratamento dos conflitos no Brasil se altere de forma material.

2. Acesso à justiça: caminhos para a efetivação de direitos

O acesso à justiça tem sido tratado, hodiernamente, como o mais básico dos direitos humanos, tendo em vista que somente a partir dele existe a possibilidade de reivindicação dos demais direitos previstos em lei.

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Na concepção jurisdicional, o acesso à justiça é compreendido como o acesso ao Poder Judiciário, ou seja, o direito pelo qual as pessoas podem reivindicar direitos ou resolver litígios por meio da proteção do Estado. Nesse contexto, a finalidade do sistema jurídico é ser universal, acessível a todos, produzindo resultados individual e socialmente justos para as partes envolvidas em um conflito. (CAPPELLETI; GARTH, 2002).

O princípio do acesso à Justiça inscrito no inciso XXXV do art. 5º, da Constituição Federal, assegura muito mais do que o acesso meramente formal aos órgãos judiciários. O contínuo desafio é que este acesso se torne um acesso à Justiça efetivo e que assegure um acesso qualificado propiciando aos indivíduos o acesso à ordem jurídica justa.

Para que uma ordem jurídica justa (WATANABE, 2009) seja efetivada, não somente a formalização do direito de ação é suficiente. A compreensão da necessi-dade de instituição do que alguns chamam de um modelo multiportas de justiça, composto por diferentes instâncias de solução de litígios, para além da esfera dos Tribunais Judiciais, representa um passo fundamental para a promoção de um acesso à justiça voltado à garantia de direitos.

Em pesquisa denominada “Cartografia da Justiça no Brasil: uma análise a partir de atores e territórios”, Leonardo Avritzer, Marjorie Marona e Lilian Gomes (2014) introduzem instigante concepção e contemporânea concepção do acesso à justiça, que agora é “pela via dos direitos”:

... o acesso à justiça via direitos tem na igualdade de acesso ao sistema judicial uma de suas mais importantes dimensões. No entanto, o acesso à justiça via direitos deve ser compreendido mais amplamente. Em uma primeira dimensão, como a garantia da efetividade dos direitos, o que depende da informação acerca dos direitos, de uma socialização que permita o recurso a uma instância ou entidade à qual se reconheça legitimidade para dirimir eventual litígio, e da efetiva reparação da injustiça ou desigualdade prove-niente da violação do direito. Em uma segunda dimensão, entretanto, o pleno acesso à justiça pela via dos direitos indica a possibilidade de participação na conformação do próprio direito. Trata-se, nesse caso, de perceber que o reconhecimento de identidades (individuais e coletivas) implica a própria criação de novas categorias de direito que passam, então, a ser reconhecidas pelo Judiciário” (grifo nosso).

Portanto, realizar um acesso à justiça que seja, cada vez mais, pela via dos direitos, é paulatinamente caminhar para um Poder Judiciário que se torne mais poroso, mais representativo da diversidade de conhecimentos e práticas da sociedade, como também para que o sistema jurídico e de justiça sejam, realmente, acessíveis a todos os cidadãos, independentemente de classe social, sexo, idade, etnia, raça, religião e/ou orientação sexual.

3. O poder judiciário para além, mas também, da adjudicação

O Poder Judiciário, um dos três poderes clássicos do

Estado, tem função fundamental na efetivação do Estado Democrático de Direito. É o guardião da Constituição, cuja finalidade, basicamente, repousa na preservação dos valores e princípios que a fundamentam – cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, além do pluralismo político (Art. 1º, CF/88). Aplicar o direito com independência, impondo a sua observância indistinta e contribuir para o desenvolvimento da cultura voltada à paz social são também precípuas funções.

Com costumeira acuidade, Pimenta (2001, p. 152) nos ensina:

A busca pela efetividade do direito processual, concebido como mecanismo de concretização do direito material do qual é ele o instrumento inafastável, tem trabalhado várias questões que são complementares. Em síntese, procura-se abandonar o tecnicismo e o formalismo excessivos para construir um processo de resultados, capaz de concretizar, na realidade prática e dentro de um tempo razoável, a finalidade precípua da função jurisdicional: a pacificação, com justiça, dos conflitos intersubjetivos de interesses. Isto se deve a uma constatação realista que é comum a todos os sistemas jurídicos mais avançados do mundo contemporâneo: a consciência de que esse instrumento processual, por melhor que seja, tem limitações óbvias e inevitáveis.

O Poder Judiciário e a sua estrutura tradicional, organizada para a prestação jurisdicional, voltam-se primordialmente para a imposição do direito constituído e formalmente vigente. Nesta estrutura judiciária instrumentalizada pelo processo judicial tradicional, predomina a ótica individualista civil, onde os procedimentos são essencialmente organizados para demandas individuais. O sistema de justiça brasileiro tem por base um paradigma de resolução de controvérsias que se desenvolve em um ambiente competitivo, desfavorável a uma visão colaborativa para a abordagem dos conflitos.

O sistema foi construído por uma confluência de fatores, que se alimentam numa espécie de círculo vicioso, e que dificilmente serão transformados, apenas por prever os métodos consensuais como mais uma etapa processual. Somam-se à ótica adversarial processual o ensino jurídico do País, arquitetado sob a lógica binária e litigante da relação ganha/perde, o que leva à configuração de um cenário pouco propenso à visão construtivista e cooperativa dos conflitos.

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Apesar de ser uma realidade em transformação,3 a maior parte das faculdades de Direito do País pouco ou nada ensinam sobre conteúdos essenciais para a transformação da visão do conflito, como a teoria do conflito, a teoria da tomada de decisão, o mapeamento dos conflitos e as próprias formas consensuais de abordagem de conflitos. Além disso, a cultura brasileira também contribui para o fomento de um sistema de justiça organizado sob um viés adversarial, já que a maioria dos cidadãos é ensinada a manter ou suprimir o conflito, e que as instituições são elaboradas para lidar com relações adversárias. Lado outro, há pouca tradição e treinamento em resolução construtiva de conflitos, e os recursos institucionais são escassos para ajudar as pessoas a lidarem com situações conflituosas (DEUTSCH, 1973).

Não se nega, de forma alguma, a importância absoluta do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito brasileiro. Os espaços judiciários representam quadros nos quais direitos são defendidos, garantias são asseguradas e injustiças são dirimidas. O papel do Direito é impor limites às relações, evitando que elas se...

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