A solidariedade intergeracional do patrimônio cultural imaterial

AutorDavid Barbosa de Oliveira
Páginas55-68

Page 56

1 Introdução

A globalização1 impôs aos cidadãos/consumidores pós-modernos, num presente que mercantiliza as referências passadas e antecipa vertiginosamente as possibilidades futuras, um intenso e caótico tráfego humano, de informações e culturas, forçando as pessoas a buscar, nesse caldo fragmentado do real, as referências para formação das suas identidades. A globalização “diminui” as distâncias físicas e temporais e força ante esses elementos a massificação e homogeneização das diversidades culturais. Em razão desses fatos, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) começou a discutir formas de proteção dessas matrizes identitárias das diferentes sociedades (patrimônio cultural imaterial). Este artigo objetiva, então, discutir a implicação do princípio da solidariedade intergeracional do Direito Ambiental sobre o patrimônio cultural imaterial, tendo nele o instrumento garantidor dos conhecimentos tradicionais em relação ao conflito entre gerações.

Na segunda seção, definimos cultura à luz da teoria antropológica idealista de Clifford Geertz, estabelecendo a importância da cultura para a própria existência humana. Após relacionarmos Direito e Cultura, analisamos as modernas teorias jusfilosóficas que buscam estudar o Direito pela óptica de outras exteriorizações culturais, como a Música, a Literatura etc.

No terceiro tópico, concebemos que o Direito Ambiental abrange tanto o meio ambiente natural quanto o meio ambiente cultural. Distinguimos os bens culturais do suporte material sobre o qual recai o valor significante, para então podermos diferenciar os bens culturais materiais dos imateriais.

No quarto segmento, circunstanciamos a origem e a evolução do debate sobre o patrimônio cultural imaterial. A concepção patrimonial, surgida no Japão, serviu de paradigma para a UNESCO e para alguns países ocidentais na proteção do patrimônio cultural imaterial. O Brasil não adotou inteiramente esse sistema, por ter cultura mais híbrida, mutante e antropofágica. Abordamos, ainda, a noção de que parte de nossa matriz cultural, até então relegada ao esquecimento, foi alcançada por essa nova forma de preservação decorrente da Constituição Federal de 1988.

Por fim, no quinto módulo, relacionamos o princípio da solidariedade intergeracional à defesa do patrimônio cultural imaterial. Definimos e dissecamos o princípio da solidariedade entre gerações, enfocando-o como o elemento garantidor da continuidade dos conhecimentos tradicionais. Seguem-se as Considerações Finais, compondo o tópico de remate, coincidente com o sexto segmento.

2 Cultura e direito

Cultura é um termo polissêmico, podendo significar patrimônio próprio e distintivo de um grupo ou sociedade específica; cultivo agrícola ou de animais; hábito; conhecimento; criação intelectual; método ou atividade que consiste em promover, em meios artificialmente controlados, o desenvolvimento ou proliferação de matéria viva, como microrganismos, células e tecidos orgânicos, órgãos ou parte de órgãos etc.

Um conceito definitivo de Cultura é algo que provavelmente jamais acontecerá, “pois uma compreensão exata do conceito de cultura significa a compreensão da própria natureza humana, tema perene da incansável reflexãoPage 57 humana”. A fim de fugir da polissemia, entretanto, utilizaremos a definição de cultura formulada por Clifford Geertz:

Acreditando com Max Weber que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado2.

Esse conceito semiótico deixa claro que o homem é essencialmente um ser cultural, constituindo-se com suporte na bagagem de conhecimentos (interpretações) adquiridos de seus antepassados. Longe de uma adaptação genética e evolutiva da espécie, foi a Cultura que assegurou ao homem sua continuidade terrena. Em verdade, quando a pessoa humana substituiu os instintos pela Cultura, sua evolução genética praticamente estacionou, permitindo ao ser humano “não somente adaptar-se ao meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos”3.

A Cultura, destarte, não é apenas um ornamento, um detalhe da existência humana, mas a condição essencial dessa existência4. Assim, há uma relação de dupla implicação entre a Cultura e o ser humano, não podendo existir um sem o outro, pois sem Cultura não há homem.

A Cultura é também um complexo mecanismo de controle para governar o comportamento humano, pois o “homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele”5. No âmbito dessas bordas culturais, o homem se elabora e cria os mais variados instrumentos culturais para disciplina do corpo6 e do comportamento, como a Caligrafia, a Ortopedia, as Regras e, por fim, o Direito. Entre Cultura e Direito, há, então, uma estreita relação “em que cada um dos pares 'completa' o outro, com vantagens e benefícios recíprocos, na medida em que 'a cultura obriga o direito a evoluir e o direito recompensa-a, tornando-a mais universal e democrática”7.

Page 58

Direito, seja como norma, como ciência, ou, ainda, na qualidade de relação, é Cultura interpretando Cultura. É Cultura que impõe Cultura e, por assim dizer, pressupõe “contracultura”8. Na perspectiva de Raimundo Bezerra Falcão,

a normatização destinada a tolher, limitar, essa aptidão para ser livre, ou essa capacidade de escolha, é, desenganadamente, algo que modifica a natureza – a natureza do homem. E, se modifica a natureza, por ação humana, dá-lhe um sentido novo. É cultura, portanto. [...] A norma jurídica é cultura formal. Isso acontece pela circunstância de que a norma jurídica é forma cultural de expressão. Exprime um conteúdo também cultural9.

Peter Häberle também explora a relação entre Direito e Cultura, pois o pluralismo cultural é a mola da sociedade aberta de intérpretes. Aponta Häberle que uma democracia cidadã apoiada no pluralismo “es uma conquista cultural de la civilización occidental. Es resultado y aportación de processos culturales, del mismo modo como transmite y es apropriado renovadamente el 'patrimonio cultural' de los textos clássicos10.

Atualmente, o Direito é estudado pela óptica de outras exteriorizações da cultura humana, como a Literatura, a Música, a Arte Dramática etc11. A relação entre Direito e Arte, prima facie, é antitética, já que a “Arte permite, incentiva a transgressão, como elemento salutar; por vezes propicia mesmo a violação de valores juridicamente protegidos12”. Entretanto, encerra-se o contrassenso quando percebemos que o binômio (regulação – transgressão) permeia todos os objetos culturais, inclusive o Direito – diga-o a Teoria Egológica, de Carlos Cossio13.

Em decorrência dessa realidade, não é esdrúxula a existência de correntes jusfilosóficas modernas (critical legal studies, postmodern jurisprudence) procurando compreender o Direito mediado por

[...] uma analogia determinante com os processos de criação, interpretação e comunicação-uso abertos pelos discursos literários [mas vale também paraPage 59 outras manifestações artísticas, como a música, o teatro, a ópera, o cinema] e pelos exercícios de retextualização que eles determinam14.

O determinante, nestas teorias, é a percepção da diferença entre o momento da criação do objeto cultural e o instante de sua execução. Um bom exemplo para compreendermos essa tentativa de explicação do Direito conjugado a outra manifestação cultural15 está nos estudos envolvendo a relação entre Direito e Música. A comparação entre os fenômenos jurídicos e a música (Law as Music) permite realçar o papel criador do intérprete – seja ele musical ou jurídico –, assim como introduz a lógica do público, situando “o estudo do direito como arte do 'espetáculo'”16.

3 Bem cultural imaterial

Os bens culturais são as “coisas criadas pelos homens mediante projeção de valores, 'criadas' não apenas no sentido de produzidas, não só do mundo construído, mas no sentido de vivência espiritual do objeto”17. Preenchem o bem cultural um objeto material e um valor que lhe dá sentido. Assim, o bem cultural, em sentido jurídico, não se esgota no objeto material que o suporta, pois subsume também o valor resultante da incorporação.

Os bens culturais se distinguem pelo suporte sobre o qual recai o valor significante. Se esse amparo do valor é corpóreo, tangível, esse bem é material (monumentos, documentos sítios arqueológicos etc). Em contrapartida, os bens culturais de natureza imaterial “são os que refletem valores em suporte não materiais, tais são as crendices, cultos, danças, festas, que não compreendem produtos culturais apreensíveis fisicamente [...]. Seu produto consiste especificamente no manifestar-se”18. Essa classificação dos bens culturais em material e imaterial, todavia, não é absoluta, pois “normalmente os aspectos tangíveis e intangíveis sempre se conjugam, ou seja, tais elementos não são coisas absolutamente estanques”19.

Incluem-se como bens culturais imateriais, segundo o art. 216, CF, as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, típicos da cultura popular20, a exemplo da banda cabaçal dos irmãos Aniceto21, do Crato, Ceará.

Page 60

Para Rosemberg Cariry, a banda dos irmãos Aniceto cumpre uma função social profana e religiosa. Assinala o pesquisador que, no início do século passado, nas procissões de São José, era comum que as populações flageladas pelas secas, abandonadas pelos poderes públicos, recorressem aos poderes divinos. A banda cabaçal dos irmãos Aniceto participava desses cortejos religiosos. À época, a procissão de São...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT