A adoção de softwares livres pelas diversas esferas da Administração Pública: Alguns aspectos jurídicos de um ambientede disputas econômicas

AutorMarcelo Andrade Féres
Páginas167-188

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1. Introdução

A revolução tecnológica que avassala o espírito dos sujeitos da sociedade contemporânea alastra-se não apenas sobre o cenário privado, mas também sobre o público. Se o modo de agir individual modifica-se e, de certa maneira, codifica-se pelas formatações binárias dos computadores e da web, é certo que o Estado não pode orientar sua atuação à margem dessa realidade.

Não se discute mais se a Administração Pública deve ou não se valer dos meios tecnológicos; se deve ou não se informatizar. O debate atual refere-se, sim, à escolha que o Estado, em qualquer de suas esferas, deve fazer entre as várias opções existentes no mercado.

Nesse contexto, com atenção especial à forma de contratação de softwares pela Administração, surge a disputa entre os programas livres e os proprietários. Trata-se, entretanto, de tema cuja difusão se notabiliza em diversas searas do saber, como, v.g., na economia, na administração, na política, na sociologia e, naquilo que interessa ao presente estudo, no direito.

Os debates têm sido tão acirrados que até o Supremo Tribunal Federal foi convocado a se pronunciar. Cuida-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.059, proposta pelo Partido da Frente Liberal – PFL, tendo por objeto a Lei nº 11.8711, de 19Page 169 de dezembro de 2002, que “Dispõe sobre a utilização de programas de computador no Estado do Rio Grande do Sul”, e na qual houve concessão de medida liminar.

Naquele feito, sustenta o partido requerente que o mencionado diploma violaria os arts. 22, XXVII (necessidade de normas gerais de licitação e contratação editadas pela União), art. 37, caput e inciso XXI (princípio da impessoalidade e garantia de igualdade de condições dos concorrentes em licitações), 37, caput (princípios da eficiência e da economicidade), e 2º e 61, II, b (princípio da separação de poderes e vício de iniciativa), todos da Constituição da República. Com a petição inicial, juntou-se aos autos parecer elaborado por Miguel Reale Júnior, Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, dando suporte a parte das alegações do autor.

A argumentação expendida pelo PFL é aquela normalmente utilizada pelos adversários dos softwares livres, mas, com a devida vênia, sem o correto conhecimento de causa.

O presente texto, assim, objetiva trazer ao conhecimento do leitor algumas notícias sobre a evolução dos programas abertos, as vantagens que oferecem, bem como demonstrar, juridicamente, a sua idoneidade perante os objetivos da Administração Pública, tudo conforme se desenvolve nas linhas que seguem.

2. Algumas notícias sobre o software livre no mundo e no Brasil: surgimento, evolução e relacionamento com a Administração Pública

O software livre, decorrente do inglês free software, revela-se na liberdade que sua licença confere ao respectivo usuário. A origem estrangeira da expressão, em que se poderia colher uma ambivalência, tanto programa livre, quantoPage 170 programa grátis, tem levado algumas pessoas a se confundirem, adotando a segunda tradução, o que é incorreto. Essa modalidade de software, também conhecida por aberto ou não proprietário, e em oposição ao fechado ou proprietário, não é necessariamente gratuito.2 Seu nome, assim, evidencia as liberdades dela decorrentes, pois a sua licença, aliada ao conhecimento de seu código fonte, além de permitir o uso para qualquer propósito, autoriza a reprodução, a alteração e a redistribuição.

No início, os softwares não eram comercializados; eram entregues pelos fabricantes juntamente com os poucos computadores que existiam. Com a evolução dos sistemas e o surgimento da diversidade de hardwares, os programas ingressaram no âmbito de tutela do direito autoral e, por conseqüência, passaram a ser negociados no mercado, que muitas vezes é monopolista.

O aparecimento do software livre está vinculado a uma relativização dos direitos autorais, em prol do desenvolvimento da sociedade. Ao lado da internet, os programas abertos concorrem para a disseminação da informação. Por seu intermédio, busca-se a tão almejada inclusão digital dos cidadãos. O conhecimento do código fonte dos programas, socialmente compartilhado, gera idôneas possibilidades de concreta participação do indivíduo no mundo contemporâneo da informática.

A adoção de software livre acarreta uma capilarização do desenvolvimento tecnológico, pois pequenas e médias empresas, além de indivíduos, conhecedores dos respectivos códigos, podem concorrer para a melhoria e o incremento da diversidade de programas disponíveis no mercado.

Com efeito, essa possibilidade de agregação de novas funcionalidades e, portanto, de novos valores aos softwares não proprietários, aquece o cenário econômico doméstico dos países em desenvolvimento, uma vez que se criam oportunas alternativas de trabalho.

A ampla propagação dos programas abertos deu vida a diversas organizações, cuja função é justamente estudar, desenvolver e difundir os conhecimentos sobre o assunto. Nessa linha, destacam-se a Free Software Foundation – FSF e suas ramificações espalhadas pelo mundo, como, por exemplo, a Free SoftwarePage 171 Foundation Europa e a Free Software Foundation France – FSF France. Merecem referência também a Association Francophone des utilisateurs de Linux et des logiciels libres – AFUL e a Associação Nacional para o Software Livre – ANSOL, esta última de Portugal. A par delas, no Brasil, há também diversas outras.

Várias entidades estrangeiras e nacionais têm migrado seus sistemas tecnológicos para softwares livres. A esse respeito, Luciano Alberto Rocho, em trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Desenvolvimento Gerencial, do Departamento de Administração da Universidade de Brasília, escreve, in verbis:

“Hoje grandes corporações, tais como a General Motors e a Boeing, ou mesmo órgãos governamentais como a Nasa ou grande parte do governo francês são usuários de software livre, tendo em vista não só a economia, mas também total domínio na tecnologia envolvida, possibilitando a auditoria sobre todos os passos realizados por determinado programa que por muitas vezes é impossível quando se adquire um software vendido comercialmente.” 3

Com respeito à propagação dos softwares livres entre as empresas nacionais, recente matéria divulgada pela Revista Info, da Editora Abril, noticia que “De 2001 para cá, a área de internet da Varig deu vários vôos no mundo livre. Adotou o SAP DB como banco de dados; o Nagios, o Ntop e o NMIS no gerenciamento da rede; o Apache nos servidores web; o Firewall Builder como firewall; o software de atendimento de chamados RT (Request Tracker) no call center; o Jabber nas mensagens instantâneas; o Mozilla em parte dos desktops. ‘Em três anos, queremos ser 100% software livre na área de internet. Já temos pelo menos 30 sistemas rodando em cima desse tipo de programa’, afirma Pinho.”4 A mesma fonte informa que a companhia de aviação estima economizar cerca R$ 12.000.000,00 (doze milhões de reais) por ano em virtude da medida.

Além da VARIG, a reportagem elenca outras empresas que utilizam programas livres, como, v. g., a EMBRAPA, os sucos Mais e a Petrobrás.

O papel do governo no cenário do software livre também é fundamental. Como assinala Roberto A. Hexsel, do Departamento de Informática da Universidade Federal do Paraná, litteris:

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“Para que se desfrute das vantagens da utilização do software livre e se alcance os objetivos já enumerados, os governos devem executar as ações listadas abaixo. As três primeiras ações estabelecerão um mercado fornecedor e consumidor de software livre, a quarta e a quinta eliminarão a dependência do governo de práticas monopolistas, e as três últimas reforçarão os efeitos das outras ações.

1. Incentivo e recomendação ao uso de software livre em todas as situações em que seu uso não seja inviável;

2. uso do poder de compra para criar padrões de fato;

3. implantação de mecanismos de financiamento e incentivos fiscais ao uso e desenvolvimento;

4. adoção prioritária de protocolos abertos de comunicação;

5. retenção de direitos sobre o código fonte de todo o software adquirido pelo governo;

6. implantação de mecanismos de capacitação ao uso;

7. criação de agência para facilitar a adoção e desenvolvimento de software livre; e

8. avaliação do impacto econômico e social da produção e utilização de software livre no país.” 5

Nessa linha, especificamente quanto ao emprego de programas abertos no setor público, vários são os ordenamentos que o contemplam ou, ao menos, intencionam contemplar, o que se constata pelo infinito número de leis e de projetos legislativos em tramitação no mundo contemporâneo. A título ilustrativo, mencionemse, entre outros, os Projetos de Lei nº 5613-D-00 (Dragan) e nº 904-D-02 (Dragan, Becerra & Bertone), ambos da Argentina; a Lei nº 1416-D-02 (Caram), da cidade de Buenos Aires; a Proposition d’ordennance relative à l’utilisation de logiciels libres dans les administrations régionales de Bruxelle-Capitale, na Bélgica; o Projeto de Lei nº 122/000217 (Puigcercós et Boixassa), da Espanha; a Proposition de Loi 117 (Laffitte, Trégouet, Cabanel), a Proposition de Loi 2437 (Le Déaut, Paul, Cohen) e o Decrét 2001-737 (Premier Ministre Jospin), todos três da França; o Projeto de Lei S.1188 (Cortiana), da Itália; a Motion approuvée le 11/07/2001...

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