Sofrimento psiquico e a universidade em tempos de crise estrutural/Psychic suffering and the university in times of structural crisis.

AutorLeao, Thiago Marques

Introducao

Este artigo discute o impacto subjetivo das transformacoes sociais contemporaneas, em sua expressao fenomenica, como experiencia social (individualmente generalizada) de sofrimento psiquico, abordando especificamente o sofrimento no ambiente universitario. Este evidencia de forma imediata as pressoes, contradicoes e impasses da vida universitaria, em uma sociedade individualizada, do consumo e do desempenho.

Alem do fenomeno diretamente observavel, o sofrimento e expressao de uma metamorfose estrutural da sociedade, resultante da crise e deslocalizacao das instituicoes sobre as quais se ancorava a sociedade industrial. Nao se trata apenas de uma crise conjuntural ou de mudancas pontuais nas dinamicas sociais, mas de uma transformacao radical em todos os aspectos da vida social, que altera o funcionamento das instituicoes. Alem disso, tambem modifica "nossa maneira de estar no mundo--a maneira como vivemos no mundo, como pensamos o mundo e como tentamos agir sobre o mundo por meio da acao social e politica" (BECK, 2017, p. 16).

Vivemos em uma sociedade em constante transformacao, na qual ha uma crescente subjetivacao e individualizacao dos riscos e contradicoes socialmente produzidas; em outras palavras, estes riscos e contradicoes sao cada vez mais percebidos como fracasso pessoal e descolados de seu contexto social e institucional, para se transformarem em "novas formas de risco pessoal: somam-lhes novas formas de 'atribuicao de culpa'" (BECK, 2010, p. 200). As crises produzidas social e institucionalmente sao percebidas como crises individuais a medida que se fragilizam as instituicoes e redes de protecao social, cada vez menos preparadas para lidar com o sofrimento e o adoecimento psiquicos. As respostas ou reacoes ao sofrimento, portanto, tambem se organizam de forma individualizada e estando aquem da sua complexidade.

Neste sentido, as respostas institucionais tendem a adotar, em linhas gerais, uma perspectiva essencialmente individual, seja pelo vies clinico, seja pelo vies da "auto-administracao"--como aqui o denominaremos. O vies clinico das respostas institucionais presume um sentido totalizador da clinica (DONNANGELO, 1979), capaz de transcender os limites do ato individual de saude e atingir as causas sociais do sofrimento. Assim, aquele que sofre e adoece e ofertado o atendimento individual (ANDRADE, 2017), tomando as manifestacoes mais agudas de sofrimento sob o marco do desvio ou da anormalidade.

Nao se consideram o ambiente ou as praticas institucionais, os eventuais desafios academicos, as violencias simbolicas e fisicas, as insuficiencias economicas e assim por diante--aos quais tampouco podera a clinica responder. Simplesmente, quando ha servicos de saude mental ligados as universidades, quem adoece e encaminhado a clinica individual para depois retornar as engrenagens da maquina que o adoeceu e que permanece intocada.

O vies da autoadministracao transforma a experiencia do sofrimento em objeto administrativo, isto e, aborda o sofrimento a partir de uma "racionalidade administrativa" (CHAUI, 2014), que nao se pergunta sobre o porque do sofrimento ou sobre seu contexto social de emergencia, mas busca dar respostas organizativas a este: uma melhor organizacao das atividades cotidianas do estudante, repensar a distribuicao de carga horaria, metodologias de estudo, memorizacao e sono, e assim por diante. O vies da autoadministracao nas respostas institucionais se assemelha as tecnicas do discurso gerencial de empresas ou dos livros de autoajuda. Alem disso, normalmente "se apresentam como saberes psicologicos, com um lexico especial, autores de referencia, metodologias particulares, modos de argumentacao de feicao empirica e racional" e como tecnicas de autotransformacao individual a partir de principios basicos (DARDORT; LAVAL, 2016, p. 339). Tudo conspira para que o individuo, por si mesmo, promova uma melhora em seu desempenho e produtividade (laboral ou academica) e atue como protagonista de sua propria biografia.

Este discurso reforca a responsabilidade e (auto)culpabilizacao individual sobre o sofrimento--sofre quem nao e resiliente o bastante, quem nao se organizou adequadamente, quem nao sabe como estudar etc.--e afasta a analise de eventuais fatores supraindividuais que possam estar ligados a experiencia de sofrimento. Apresenta, portanto, uma gramatica neoliberal do sofrimento, em que nao ha sociedade, conflitos ou contradicoes sociais, mas apenas o individuo que sofre e que, por merito proprio, deve superar o sofrimento pela autoadministracao e aprimoramento pessoais.

E certo que fatores individuais, bem como situacoes ligadas ao ambiente, funcionamento e praticas academicas, devem ser levados em consideracao como possiveis aspectos da experiencia de sofrimento. Mas assumi-las como causas unicas e necessarias, ou aborda-las de um ponto de vista estritamente individual, e uma leitura reducionista e, portanto, equivocada. Junto a questoes eminentemente individuais e singulares, o sofrimento no ambiente universitario envolve tambem dimensoes socioestruturais, coletivas e institucionais. Isto e, ao mesmo tempo em que duas pessoas nao experimentam o sofrimento de forma absolutamente igual, ha tambem algo comum, algo coletivamente individualizado. O sofrimento individual pode estar relacionado a (i) questoes coletivas, opressoes ou violencias especificas de determinados grupos (renda e escolaridade, genero, raca e sexualidade, pessoas com deficiencia etc.), a (ii) questoes socioestruturais e economicas (contrarreformas, mudancas das condicoes objetivas de vida e de consciencia, modo de producao capitalista, ciclos e crises politico-ideologicas etc.) e a (iii) relacoes ligadas diretamente ao contexto da universidade (produtivismo academico, jornada de trabalho e estudo, assedio moral e sexual, precarizacao das condicoes de trabalho e estudo etc.).

Ao pensarmos o sofrimento nestas quatro dimensoes, nao podemos desconsiderar como elas se relacionam e se determinam mutuamente, como intensificam ou aliviam o impacto sobre os estudantes. Estas dimensoes (individual, social, coletiva e institucional) sao indissociaveis, multideterminantes e multideterminadas, para alem do quadro especifico do sofrimento psiquico. Nosso quadro de analise destas questoes e a Sociedade de Risco e o processo de Individualizacao, discutidos pelo sociologo alemao Ulrich Beck (2010).

Sobre a modernizacao reflexiva e o processo de individualizacao

Os contornos do sofrimento psiquico, em que pese seu carater subjetivo, sao eminentemente sociais. A maneira como daremos significado so sofrimento sera determinada pelas formas e pelos referenciais sociossimbolicos historicamente situados a medida que nos, igualmente, somos sujeitos historicos. Assim, e importante que contextualizemos nosso marco de leitura social sobre o fenomeno, a partir das profundas mudancas estruturais pelas quais passou a sociedade ocidental moderna nas ultimas decadas. Beck (2010, 2012) analisou estas mudancas pelo que denominou de Modernizacao Reflexiva, isto e, um processo de modernizacao da modernidade, pela autotransformacao das instituicoes e relacoes da sociedade industrial, atravessada por contradicoes e efeitos colaterais nao planejados.

O processo acelerado de transformacao, tipico do dinamismo da sociedade industrial, remonta ao intenso contexto historico de mudancas socioculturais e politico-economicas de alcance global, que culmina no paradigmatico ano de 1989, com o fim do antagonismo Oriente-Ocidente, a hegemonia do projeto capitalista e a dissolucao do "inimigo ao Leste" (HOBSBAWM, 2009...

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