Participação popular nas políticas socioassistenciais na América Latina: estudo comparativo entre Brasil e Venezuela

AutorMirella Rocha
CargoUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Páginas303-314

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1 Introdução

O presente estudo resulta de um esforço crítico-dialético para analisar especificamente o desenho da política socioassistencial no Brasil e na Venezuela, com ênfase na problematização do lugar da participação popular, tendo em vista a construção de bases comparativas que sejam capazes de traduzir e explicar as tendências em curso na América Latina. Trata-se de identificar nos dois países, a partir de um estudo teórico-bibliográfico, o reconhecimento das diferentes experiências que engendram e articulam (ou não) referências político-participativas para a organização dos serviços socioassistenciais a partir dos grupos populares.

Apredileção em investigar Brasil e Venezuela é devido à expressão de tendências singulares nestes países, particularmente no que se refere à universalização e democratização dos seus respectivos sistemas de proteção social, que estariam configurando diferentes projetos de sociedade no horizonte político-social latino-americano a partir do final do século XX e início do século XXI.

Portanto, precisamente, o objetivo central ao qual nos propusemos com esse estudo, é, através da análise do lugar da participação popular no desenho da política socioassistencial no Brasil e na Venezuela, demonstrar se a implementação da política socioassistencial na América Latina, com toda a contraditoriedade que lhe é inerente, pode ser capaz de contribuir para nutrir a radical democratização dos modelos institucionais das políticas públicas de governo, numa direção que contemple e amplie o protagonismo e a participação crescente do povo no patrimônio político e econômico-social, coletivamente construído pelo conjunto da classe trabalhadora.

Pois bem, o intento teórico ao qual nos propomos, refere-se à preocupação em identificar - em meio aos rígidos mecanismos de controle e de reprodução da força de trabalho - em que medida a política pública de assistência social no Brasil, no terreno do Sistema Único de Assistência Social - SUAS, e na Venezuela, no horizonte das Misiones, enseja a construção do seu potencial político-emancipatório.

Cabe referenciar que o exame proposto não prescindiu de um rigor metodológico genuinamente latino-americano. Nesse sentido, o estudo que ora apresentamos tem como fio condutor da análise a latinoamericanização do debate, considerando a necessidade de pensar horizontes categoriais assentados na realidade concreta do continente e, assim, propor soluções para a superação do atual modelo. Dessa maneira, reiteramos nosso esforço em pensar criticamente desde abajo, o que significa negar a reprodução de uma ciência gerada como mônada, imune às contradições e aos conflitos sociais e retomar uma razão que nos explique a partir de nossa própria realidade. Nessa medida, o referencial teórico-metodológico deriva, essencialmente, da perspectiva dialética-materialista, numa dimensão fortemente crítica da tendência eurocêntrica, portanto, alinhada com o pensamento crítico das ciências sociais latino-americanas.

Esse estudo, cabe ressaltar, foi originalmente produzido como uma dissertação de mestrado1, na qual procuramos condensar e aprofundar as investigações desenvolvidas ao longo dos últimos anos no âmbito de dois projetos de pesquisa. O primeiro, desenvolvido entre os anos de 2005 e 2006, "O Gasto Social na América Latina: Estudo comparativo entre Brasil e Venezuela" versou o cotejamento dos dados de financiamento público das políticas sociais nos dois países, visando mensurar a magnitude do investimento social e, assim, delinear as tendências em curso no continente. O segundo, iniciado em 2007, "Família e Participação Popular: Antinomias dos Modelos de Proteção Social na América Latina" cujo objetivo refere-se ao desenvolvimento de uma cartografia do debate sobre família e participação popular afeto ao campo socioassistencial sob bases genuinamente latino-americanas, está atualmente em fase de conclusão. Tais projetos foram conduzidos pela Profa. Dra. Beatriz Paiva e qualificado grupo de pesquisa do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina - IELA/UFSC, que desde 2004, através do Observatório Latino-Americano - OLA, vem se dedicando ao tema das transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas na América Latina.

2 Trabalho, questão social e política social: o prisma latino-americano

O prisma latino-americano conducente da análise remete à tentativa de contribuir para o desenvolvimento de uma perspectiva autônoma e crítica do modo de perceber o mundo, ou seja, especialmente partindo da concreticidade de um espaço/tempo que nos pertence, que encerra determinadas contradições por ter uma peculiaridade histórica que deve ser resgatada, defendida e analisada.

Tal advertência teórico-metodológica inicial deve ser enriquecida do ponto de vista histórico, por isso entendemos ser imprescindível considerar a dependência como um dos grandes pilares nos quais se assentam as relações sociais de nossas nações, haja vista que a processualidade capitalista em âmbito mundial determina este caráter peculiar de organização da produção na América Latina.

A dependência, de acordo com análise de Marini (2000) pode ser entendida como uma relação de subordinação que ocorre entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou constantemente recriadas para assegurar a reprodução ampliada dessa condição. Nos termos de Marini (2000, p. 106):

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[...] Ainda quando realmente se trate de um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento, não poderá nunca se desenvolver da mesma forma como se desenvolveram as economias capitalistas consideradas avançadas. É por isso que, mais que um capitalismo, o que temos é um capitalismo sui generis, que só ganha sentido se o contemplamos tanto a nível nacional como, principalmente, a nível internacional.

A inserção periférica e dependente da América Latina no processo de acumulação capitalista em escala global, se fundamenta a partir da formação de uma divisão internacional do trabalho, que posteriormente acaba por condicionar o desenvolvimento subsequente da região dependente. Em seu ensaio Dialética da Dependência, Marini (2000) apresenta os mecanismos que determinam a produção e a reprodução de capital em escala ampliada, partindo das relações estabelecidas entre países centrais e países periféricos, e apontando suas consequências sob a organização das sociedades dependentes. Segundo o autor, são estabelecidas relações comerciais que se baseiam em um sistema de trocas desfavoráveis, reatualizando permanentemente os termos do intercâmbio desigual.

Através desse mecanismo, os condicionantes da dependência empreendem uma maciça transferência de valor produzido na periferia, que é então apropriado no centro da acumulação mundial, de modo que tal dinâmica capitalista, nos termos de Marini (2000), é garantida através de uma maior exploração da força de trabalho na periferia.

A superexploração da força de trabalho, mecanismo típico adotado nestas economias através da intensificação dos processos de extração da mais-valia nas suas formas absoluta e relativa combinadas, segundo análise de Marini (2000), caracteriza-se como um regime de regulação da força de trabalho em que a acumulação de capital repousa sobre a maior exploração do trabalhador, e não sobre o aumento da sua capacidade produtiva. Através desse mecanismo, portanto, a América Latina desempenha uma funcionalidade dual: transformando as relações sociais no interior dos países centrais, haja vista que os produtos alimentícios fornecidos pelos países periféricos permitem manter determinado nível de salários aos trabalhadores daqueles países; compensando as perdas, próprias do intercambio desigual na relação com as economias centrais, a partir da superexploração da força de trabalho.

Assim, o que aparentemente configura um dispositivo estrutural de compensação em nível de mercado, caracteriza-se como um instrumento que opera internamente no âmbito das relações sociais de produção gerando, nos países dependentes, efeitos severos sobre o trabalho, por meio de três mecanismos, quais sejam, "a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho" (MARINI, 2000, p. 125), que caracterizam o modo de produção fundado exclusivamente na maior exploração da força física do trabalhador, em contraposição à exploração resultante do aumento de sua produtividade.2 Há que se considerar que esses mecanismos impõem condições deploráveis de vida às massas, pois sua manifestação mais expressiva é que a força de trabalho é remunerada muito abaixo do seu valor real, ademais a ausência ou precariedade de um sistema de proteção social público.

Desse modo, do ponto de vista genuinamente latino-americano, à medida que, através de uma maior exploração do trabalhador, a forte e contraditória relação de subordinação com o mercado externo ajusta as relações de produção internas para a acumulação do capital em escala global, o capitalismo dependente institui - de modo sempre crescente - o pauperismo das massas, produzindo e reproduzindo, desta forma, uma intensa e crescente exploração do trabalhador, determinando, peculiarmente, os traços da chamada questão social no continente latino-americano.

Nessa conjuntura em que a realidade concreta veste ainda sua mais dura pele, cabe ressaltar a dupla dimensão das políticas sociais públicas: a) sua refuncionalização para, num mesmo movimento, amortizar o conflito social próprio da luta operária em dado momento do processo de...

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