Sociedades estatais, controle e lucro

AutorMarcia Carla Pereira Ribeiro/Rosângela do Socorro Alves
CargoProfessora Doutora de Direito Comercial da UFPR. Professora Titular de Direito/Mestre em Direito pela UFPR. Procuradora do Estado do Paraná.
Páginas163-182

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Este artigo foi elaborado a partir de parte da monografia (inédita) intitulada Gestão das sociedades estatais: uma abordagem dos mecanismos societários e contratuais, premiada pelo concurso DEST - Departamento de Controle das Estatais do Ministério do Planejamento - de monografias sobre estatais, no ano de 2006, em Brasília, DF. A segunda parte da monografia será publicada na Revista da ENAP - Escola Nacional de Administração Pública no segundo semestre de 2006. A referida monografia foi concebida a partir de pesquisa realizada pelas autoras e por Gisela Dias Chede.Page 164

1 Introduçåo

Nos anos 90 não só o Brasil como o Mundo Ocidental deparou-se com a necessidade de reformulação das políticas de investimento público na atividade de produção de bens ou serviços, por meio das sociedades estatais. Pelos mais diversos motivos, como a constatação da excessiva oneração decorrente da manutenção do estado na seara da produção, ou como uma opção de alocação dos recursos públicos e escassos, ou como reflexo da implantação de uma ideologia pautada no afastamento do estado da atividade produtiva, muitas sociedades estatais perderam tal condição por meio das desestatizações em suas diversas modalidades. Na esfera federal, eram 252 em 1985, reduziram-se para 138 em 1995 e, para 93 em 1998. 1

Hoje, totalizam 137. 2

Vale dizer, de 1998 até o presente, foram criadas ou federalizadas 44 empresas. A retomada do crescimento do número de estatais pode decorrer de uma nova mudança de padrão ideológico, ou pode estar associada a uma alteração de rumo quanto à avaliação do papel do estado relativamente à prática econômica. De toda forma, para que tais empresas sobrevivam no mercado, mantenham-se competitivas e não representem um fardo financeiro para o erário, haverá, certamente, a necessidade de adequação de suas estruturas e estratégias às melhores práticas administrativas.

Esta é a preocupação também do Governo Federal, o qual, segundo divulgado (SALLES; ANDRADE, 2005) estaria preparando os termos de uma medida provisória voltada ao estabelecimento do sistema de governança corporativa nas estatais federais. Tal iniciativa, ao determinar a adequação das empresas estatais, reconhece a necessidade de tais empresas utilizarem-se de mecanismos societários e contratuais privados e peculiares à empresa com o propósito de melhor desempenho.

A Constituição Federal, em seu Art. 170, consagra a liberdade de iniciativaPage 165 econômica, sem distinção entre agentes públicos e privados. É o Art. 173, ao estabelecer a faculdade do Estado explorar diretamente a atividade econômica, em seu §1º, sempre por intermédio de organizações societárias - sociedade de economia mista ou empresa pública -, que estabelece os pressupostos à opção. É preciso, para a atuação do estado, a configuração de situação de relevante interesse coletivo ou de motivo de segurança nacional justificadores da excepcionalidade da atuação estatal. Conjugando-se o Art. 170 ao 173 da CF conclui-se, em termos legais, que o exercício direto da atividade econômica pelo Poder Público somente será possível e justificado nas hipóteses expressamente autorizadas pela Lei Constitucional, ou seja, se presentes os pressupostos de relevante interesse coletivo ou de motivo de segurança nacional que serão indicados na lei autorizadora de sua criação.

As sociedades estatais estarão sujeitas ao regime jurídico de direito privado no que se refere aos seus contratos, organização societária, regime de trabalhadores, regime tributário e não poderão ser beneficiadas de forma desigual em relação às sociedades compostas a partir de capital exclusivamente privado. Já, em razão do caráter público do capital investido, ainda que dotadas de personalidade jurídica de direito privado, as sociedades estatais estão sujeitas ao controle do Tribunal de Contas e às normas de concorrência. Decorre justamente da dupla sujeição da estatal, ao regime jurídico privado e, ainda que parcialmente, também ao regime público, um dos traços de distinção dessa modalidade de sociedade.

Qual seja, além de adequar-se às normas tributárias, civis, comerciais, também deverão ser consideradas as normas de direito administrativo aplicáveis em decorrência da natureza pública dos investimentos e bens utilizados na atividade empresarial.

Além da busca de uma situação de equilíbrio mesmo diante da peculiaridade de sua condição, as sociedades estatais, desde os anos 80, vêm sendo analisadas também com relação a sua eficiência e competitividade, o que provavelmente conduzirá à expressa adoção das técnicas de governança corporativa nas estatais. Se não bastasse a necessidade de conciliação de regimes jurídicos de ordem privada e pública, de eficiência e desenvolvimento do objetivo que justificou a sua criação, de interesse do controlador (estado) e dos demais sócios (privados), mais e mais serão as estatais induzidas a operar de forma muito próxima àquela exigida das empresas privadas, tornando-se cada vez menor a tolerância em relação aos vícios normalmente associados aos serviços estatais, aliado à escassez de recursos públicos.

Diante de tais empecilhos, o que ainda pode justificar a adoção da forma societária, ou, o enquadramento do estado na condição de sócio, pode ser analisado sob dois enfoques. Para o estado, a estrutura societária é a única possibilidade de atuação direta no domínio econômico, por opção constitucional,Page 166 e, que oferece uma forma de organização que pode conduzir a atuação empresarial eficiente e diferente do perfil da atividade típica de estado. Vale dizer, o estado precisa da organização societária para atuar empresarialmente e a sociedade humana precisa da empresa estatal em função da natureza de seu objeto e da atividade por ela desenvolvida - já que terá sido criada com fundamento num relevante interesse coletivo ou motivo de segurança nacional.

O artigo pretende, mediante análise retrospectiva da utilização das empresas estatais no Brasil, da sua relação com o lucro e o controle, demonstrar que o domínio do conhecimento relativamente a aspectos societários pode contribuir para a maior independência e menor onerosidade com relação ao investimento do controlador-estado.

2 Percurso evolutivo das empresas estatais: ascensåo e declínio de um modelo de intervençåo estatal

As empresas estatais floresceram no auge do estado de bem-estar como instrumentos de transformação da ordem econômica e social.

No Brasil, em que pese a história registrar a existência de empresas do estado mesmo no período colonial, caso do Serviço Postal (1663) e a Casa da Moeda da Bahia (1694), e, depois da vinda de D. João VI, também o Banco do Brasil e Imprensa Régia, a criação desses entes foi intensificada a partir da terceira década do século XX, no bojo do nacionalismo econômico que marcou o país após a Revolução de 1930.

Sob o Governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o desenvolvimento da indústria nacional passou a ser prioritário, como forma de emancipar o País do vínculo de dependência que mantinha com o mercado externo, uma vez que nas três primeiras décadas do séc. XX, a economia nacional era baseada na exploração de produtos primários, especialmente o cultivo e exportação do café. Esse espírito nacionalista e desenvolvimentista, aliás, alavancou a constituição das primeiras empresas estatais voltadas à indústria pesada, como é o caso da siderurgia, um setor que, por demandar vultosos investimentos, não encontrava na iniciativa privada pátria condições de pleno desenvolvimento.

Independentemente da orientação política dos governos que se seguiram a esse período, manteve-se a tendência de crescimento do número de empresas do estado. Assim, o quadro evolutivo dessas entidades: resistiu à política liberal de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950); recobrou a sua linha ascendente no segundo mandato de Getúlio Vargas (1950-1954) e durante a administração desenvolvimentista não-nacionalista de Juscelino Kubitscheck de Oliveira (1956-1960); conservou seu viés de crescimento mesmo na prolongada crise política e econômica que sePage 167 abateu sobre o país no período de 1961 a 1967; e alcançou seu ápice entre 1970 e 1976.

Em 1949 eram 34 empresas controladas pela União Federal. Nos anos 60 somavam 50, mais 49 estaduais. Nos anos 70 são acrescidas mais 70 federais e 60 estaduais.

As causas dessa expansão do estado empresário podem ser identificadas em três fatores predominantes. Primeiro, a inaptidão do setor privado, associada à falta de interesse do capital estrangeiro em empreendimentos dos quais dependia o avanço posterior do sistema produtivo, como na siderurgia; segundo, a opção pelo exercício do controle nacional sobre recursos estratégicos do país, como no caso do petróleo; e, terceiro, a exigência de contrapartida, em moeda nacional, para os financiamentos externos aplicados em realizações de infra-estrutura, como o caso do BNDE (MARTINS, 1985). Tais aspectos podem ser considerados como associados a uma ideologia de intervenção do estado.

Contudo, a idéia de que o crescimento do número de estatais tenha decorrido de uma ideologia estatizante não é consensual na doutrina. Pensa-se que mesmo nos seus primórdios o intervencionismo estatal não foi exatamente planejado, apresentando-se as ações governamentais, no mais das vezes, como respostas a problemas no plano político, conduzindo a uma alternância de políticas econômicas conforme os dilemas econômicos existentes na ocasião (IANNI, 1991).

No âmbito dessa discussão, não se pode deixar de referir ao fato de que, em boa medida, a ampliação do número de empresas do Estado resultou da multiplicação de subsidiárias, promovida, principalmente, pela Petrobrás e Cia. Vale do Rio Doce. À exceção do setor petroquímico, cuja expansão foi imposta...

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