Sociedades, culturas e processos de integração internacional?

AutorWilliam Smith Kaku
Páginas175-198

    O presente trabalho é decorrente da tese doutoral do autor, intitulada “Habitus (Ethos e Práxis) na Civilização Latino-Americana: uma Compreensão da Formação Social, Cultural e Ideológica da América Latina e sua Influência nos Processos de Integração Internacional Regional e Sub-Regional, com Enfoque no Mercosul”, trabalho este em parte financiado pelo CNPq.

William Smith Kaku. Doutor e Mestre em Direito pelo CPGD/UFSC. Educador e pesquisador em Direito e Relações Internacionais. Professor do Curso de Graduação e Programa de Mestrado em Direito da Universidade Regional Integrada Ato Uruguai e das Missões (URI), Campus Santo Ângelo.

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Introdução

Um processo de integração internacional é gerido por pessoas concretas que estão em constante inter-relacionamento social no exercício de suas elevadas atribuições públicas, mas além desses atores públicos, há também as diferentes pessoas e instituições de caráter privado que contribuem – todos – para somar ou dividir o processo público de integração internacional. Assim, um processo dessa magnitude é formado por diferentes pessoas pertencentes e diferentes setores – ou dimensões – sócioeconômico-culturais que foram constituídas simbolicamente e, também, ao mesmo tempo, constroem concretamente a realidade simbólica do mundo social na resultante do conjunto de forças das inter-relações sociais que cotidianamente vivem.

Observa-se que o simbólico – esse conjunto de sinais, símbolos, valores que formam os sentidos de certo e errado, possível e impossível, preconceitos, princípios de visão e divisão do mundo social etc., resultando nas decisões concretas humanas no mundo social – é fruto de um trabalho coletivo histórico e pode ser traduzido também pela cultura específica que marca a existência singular de uma sociedade ou comunidade num dado espaço geográfico ao longo do tempo. Tal fato é melhor revelado pela força epistemológica do pensamento de Pierre Bourdieu, que se mostra útil para a possibilidade de sua aplicação para interpretação dos avanços e retrocessos de um processo de integração regional, em busca de explicações mais concretas e desveladoras sobre as tomadas de decisões – ou a ausência delas – para a (in)evolução de uma integração econômica regional.

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As relações internacionais e o direito internacional dela decorrente sofrem influxo, vale dizer, são determinadas pelo conjunto de fatores culturais ou civilizatórios que estão inseridos cada povo nesse processo de contato e aproximação, que contém toda carga de interesses dos seus protagonistas. Entretanto, sucede que se os interesses podem ser tidos como conjunturais e históricos, eles também são determinados por um longo percurso temporal que, forjados pelo passado, alcançam o presente, condicionando as expectativas e ações integrativas passíveis de serem efetuadas em cada época, e preparando as possibilidades futuras de inter-relacionamento recíproco e interdependência de gentes e instituições de sociedades diferentes no espaço internacional.

Relações internacionais e direito internacional, assim, podem ser vistos como frutos de opções civilizatórias arbitrárias,1 que se imbricam e somente podem ser vistos em sua abrangência ou maior completude se forçosamente forem estudados com a filosofia, política, economia, sociologia, antropologia, psicologia e história, por exemplo.

Cada povo é uma singularidade formada pelo conjunto civilizatório ou cultural próprio, produto de forças e lutas internas – e respectivas influências externas – para definição dos legítimos rumos da respectiva sociedade, sendo que o resultado dessas lutas acaba retornando – realimentando – sobre os comportamentos e atitudes das pessoas nas diversas esferas de atuação social, desde a família até o Estado, passando pelas diferentes instituições privadas e públicas erigidas no corpo social, inclusive as instituições de ordem ético-moral, que permeiam a existência e sobrevivência das gentes.

Diante disso, todas as consequências positivas ou negativas, que tais processos integrativos – com seus respectivos arcabouços jurídicos – proporcionam, estão também vinculados a esse conjunto cultural ou civilizacional que marca a integração, favorecendo-a ou desfavorecendo-a, direcionando seus ganhos para o conjunto total da sociedade ou apenas uma parcela reduzida dela, observando que o favorecimento ou desfavorecimento da integração também pode significar a sonegação de maior bem-estar social para uma ampla parcela das populações envolvidas, especialmente as mais humildes e pobres, bastando que os agentes envolvidos no processo não abram mão dos sacrifícios necessários – especialmente das elites – em prol de toda sociedade ou manipulem o processo apenas para favorecer alguns poucos atores sociais em cada sociedade envolvida.

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1 Uma Introdução ao Pensamento de Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu, sociólogo francês, com formação em filosofia e pesquisas em etnologia, estabeleceu ou desenvolveu, através de suas pesquisas e reflexões, uma filosofia da ciência denominada relacional, que dá primazia às relações que se inserem os objetos de pesquisa, uma vez que são essas relações que dão o sentido e significado para diversas ações e comportamentos humanos num determinado contexto histórico-cultural, pois o ser humano produz concretamente sua vida social – vale dizer, tudo que ele faz ou deixa de fazer – nas e pelas inter-relações travadas, com os sentidos específico – históricos – que lhes são conferidos.2

Para o autor francês, a ciência social costuma estabelecer objetos ou realidades substanciais como indivíduo, grupos, entre muitos outros mais, mas não se atém fortemente às relações objetivas intangíveis que essas realidades estabelecem com o meio onde se inserem e que somente podem ser verificáveis – tais relações – através de um processo difícil de construção e validação por meio do trabalho científico.3

Também concebeu ou desenvolveu uma filosofia da ação, que denominou como disposicional, por desvelar as potencialidades inscritas nos corpos dos agentes4 e nas estruturas das situações onde eles atuam relacionalmente,5 através do que ele denomina por habitus, campo e capital.6 Desta forma, ele iniciou opor-se, a seu modo, às explicações consagradas para ações ou representações humanas, fundadas de forma inexorável em uma razão explicitamente dada por um indivíduo autônomo, plenamente consciente de suas motivações.7

Considerando que ele trabalha com o simbólico – marcante e condicionador –, edificado através da comunicação humana, e que o estruturalismo8, como teoria do conhecimento – epistemologia – ou método dePage 178 pesquisa das ciências humanas e sociais nasceu – em seu sentido moderno – dos linguistas, seu enquadramento dentro da corrente estruturalista foi devidamente anotado,9 entretanto, como o próprio sociólogo francês terá oportunidade de explicar, ele não recusa o enquadramento, mas se afasta de certa corrente estruturalista que insere os agentes a simples epifenômenos da uma estrutura, ao mesmo tempo em que, ao recusar essa redução, Bourdieu não os eleva a sujeitos absolutamente livres e autônomos em suas manifestações e ações sociais.10

Ao proceder desta forma, ele rompe com noções consagradas que circulam no discurso acadêmico de forma já naturalizada – sujeito, motivação, ator, papel, etc. –, e sobre elas lança uma mirada que até então nada semelhante havia sido feito, para estabelecer um outro grau de discussão mais crítica os fenômenos sociais ou o que os agentes sociais – pessoas, instituições – fazem entre si e que realizam de uma forma específica o mundo social concreto que marca a existência das pessoas e da própria sociedade, bem como rompe com os diversos pares teóricos – consagrados – de oposições que os acompanham e que constituem a própria construção do imaginário social – indivíduo/sociedade, individual/coletivo, consciente/inconsciente, objetivo/subjetivo, etc.11

Suas descobertas propõem modos controlados e constantes de agir e de pensar e que constituem um método para a busca da representação realista da ação humana que, para o pensador, é condição primeira para um conhecimento científico do mundo social em suas várias dimensões, pois a análise sociológica passa a ser um dos instrumentos poderosos para conhecimento de alguém próprio, como ser social e, desta forma, como ser singular, pois “oferece alguns dos meiosPage 179 mais eficazes de acesso à liberdade que o conhecimento dos determinismos sociais permite conquistar contra os determinismos”.12 Uma pesquisa que traga a compreensão rigorosa do mundo é parte dos instrumentos de libertação com que o ser humano – individual ou coletivamente – conta para si, e seu método trata-se de um guia para se aplicar a uma prática.13

As pesquisas de Pierre Bourdieu centraram-se em sua maioria na França. O início de sua atividade de pesquisador ocorreu no norte da África, numa das colônias da França, estudando os efeitos da mudança de uma sociedade pré-capitalista – agrário – para capitalista, o confronto entre a tradição e as imposições sociais de uma nova economia que não pode sobreviver com a velha. De qualquer modo, suas análises voltaram-se para sociedades diferenciadas por classes, definidas enquanto tais pelo próprio avanço ou evolução de uma economia capitalista, os denominados países desenvolvidos. Assim, seus modelos de reflexão foram construídos especialmente a partir do caso da França,14 mas com intenção de validade universal para outras sociedades com as mesmas características socioeconômicas.

Para Bourdieu, seria possível analisar a Alemanha, o Japão, os EUA, através de seu método de pesquisa social, apenas com o porém de considerar seriamente particularidades ou...

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