Sociedades comerciais e direitos do homem. Diálogos Improváveis em Tempos de Globalização

AutorJosé Engracia Antunes
Páginas8-21

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I - Introdução

I. A Convenção Européia dos Direitos do Homem (CEDH) representa uma das expressões mais emblemáticas do movimento de proteção internacional dos direitos do homem. É sabido que, sobretudo após o cortejo de horrores que acompanhou a I e a II Grande Guerra Mundial, a positivação e a proteção dos direitos humanos ("human rights", "droits de Phomme", "Menschenrecht") foi ganhando um crescente lugar de destaque na agenda política e jurídica, quer ao nível individual dos Estados (através de uma densificação das garantias jurídico-constitucionais dos direitos fundamentais do homem),1 quer mais tarde ao nível da própria comunidade internacional.2 Espécie de "código europeu" dos direitos humanos, a CEDH de 1950 e respetivos protocolos adicionais3 contêm um elenco vasto de direitos garantidos, tais como o direito à vida, à não sujeição a tortura ou penas degradantes, à proibição da escravatura ou servidão, à liberdade e segurança, à livre circulação e escolha de domicílio, a um processo equitativo, à não retroatividade da lei penal, ao respeito da vida familiar e privada, à liberdade de pensamento, consciência e religião, à liberdade de expressão, à liberda-

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de de reunião e de associação, e ao recurso efetivo perante instância nacional em caso de violação dos direitos garantidos, entre outros.4

II. Numa era marcada pela globalização e pela hegemonia do "homo oeconomicus", ninguém pode ignorar o relevo da sociedade comercial ("corporation", "company", "Ge-sellschaft", "société", "società"). Trata-se indubitavelmente da mais perfeita, poderosa e complexa das pessoas coletivas de direito privado: ela está para o Direito Privado, como o Estado está neste domínio para o Direito Público. Numa proposição que peca apenas por defeito, tornou-se freqüente ver afirmado que, entre as entidades económicas mais poderosas do mundo, se contam hoje cinqüenta Estados e cinqüenta sociedades (anónimas) - o que também explica que o instituto societário desperte amores e ódios, já que, se uns viram nela, numa frase que ficou célebre, o "instrumento maravilhoso do capitalismo moderno" (Georges Ripert), outros houve que não hesitaram em qualifica -la de "organismo de pilhagem metódica" (P. Leroy-Beaulieu). E, sem que talvez disso nos demos suficiente conta, o curso das nossas próprias vidas individuais desenvolve-se, da nascença à morte, sob a égide destas entidades, nos mais variados papéis de seu dirigente, sócio, investidor, credor, trabalhador, cliente, ou simplesmente consumidor.5

  1. O tema do presente trabalho surge justamente na encruzilhada destes dois vetores caraterísticos da moderna era da globalização económica e jurídica: a universalização da tutela dos direitos humanos e a difusão hegemônica das pessoas coletivas.

"Prima facie", dir-se-ia tratar-se de aspetos aparentemente desconexos, sendo até a questão, em si mesma, concetualmente paradoxal: constituindo os direitos humanos, histórica e semánticamente, a expressão de um conjunto de direitos essenciais e inalienáveis dos indivíduos enquanto "seres humanos", fará sentido estendê-los a organizações etéreas e sobre-humanas movidas pelo lucro e destituídas de corpo e alma?6 Por outras palavras, será possível - sem cair nas garras de uma analogia antropomórfica à outrance " - considerar as pessoas coletivas societárias como titulares de direitos e obrigações consagrados na CEDH, a par das pessoas singulares ou físicas?

IV. A resposta a tal questão, de modesta ambição, será dada em duas etapas. Num primeiro momento, procuraremos averiguar o estatuto jurídico-ativo das sociedades comerciais em matéria de direitos humanos: do que se trata de saber é, desde logo, se e em que medida as pessoas coletivas societárias podem ser titulares dos direitos consagrados na CEDH, passando em revista os respetivos pressupostos (subjetivos, substantivos, procedimentais) e procedendo a uma breve análise da casuística jurisprudencial existente na

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matéria (desenvolvida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, doravante TEDH) (II). Num segundo momento, viraremos a questão do avesso, interrogando-nos pela pertinência de um eventual estatuto jurídi-co-passivo das sociedades em matéria de direitos humanos: tendo em atenção o papel central hoje desempenhado por algumas dessas sociedades (especialmente, multinacionais) na vida económica, social e política contemporâneas, é crescente o número de vozes que pretende ver nelas, a par dos Estados, verdadeiros titulares de obrigações de respeito e de garantia dos direitos humanos, mormente dos protegidos pela CEDH (III).

II - O Estatuto Jurídico-Ativo: as Sociedades como Titulares de Direitos Humanos
1. Âmbito de aplicação

I. A primeira questão que nos sai a caminho consiste em saber se as pessoas sociedades comerciais são sujeitos ativos abrangidos no âmbito de aplicação da CEDH, ou seja, se e sob que pressupostos podem ser aquelas consideradas como titulares dos direitos e liberdades por ela garantidos.7

1.1 Requisitos subjetivos

I. Ao contrário de outros instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos - é o caso do "Pacto Internacional dos Direitos Cívicos e Políticos", adotado pelas Nações Unidas em 1966 (a que Portugal aderiu em 1976), que se refere expressa e exclusivamente a pessoas individuais ou naturais8-, a CEDH reconheceu expressamente as pessoas coletivas ou morais como titulares de (alguns) direitos humanos.

II. Desde logo, recorde-se que o art. \-da Convenção dispõe que "as Altas Partes Contratantes reconhecem a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades definidos no título I da presente Convenção": ora, ao recorrer ao termo genérico "qualquer pessoa" (e não indivíduo), os trabalhos preparatórios mostram que foi justamente intenção dos seus pais fundadores permitir que a mesma pudesse ser aplicada, em princípio, a qualquer entidade com personalidade jurídica, fosse esta singular ou coletiva.9 Esta leitura é ainda confirmada pelo art. 34º da Convenção, que, ao delimitar o direito de petição ou queixa, estabelece que "o Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos".10 Enfim, se dúvidas subsistissem, elas seriam forçosamente dissipadas pelo art. 1- do Primeiro Protocolo Adicional, datado de 1952, o qual, relativamente ao direito à proteção da propriedade, consagrou expressamente que

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"qualquer pessoa singular ou coletiva tem direito ao respeito dos seus bens".11

III. Assim sendo, em sede geral e abstrata, podem ser objeto da proteção conferida pela CEDH todo o tipo de pessoas coletivas privadas, incluindo associações (de natureza política,12 religiosa,13 sindical,14 etc), fundaçõesº5 e, naturalmente, sociedades, sejam estas civis ou comerciais:16 como o próprio TEDH reconheceu expressamente, "nem o estatuto jurídico de sociedade anónima, nem o caráter comercial das respetivas atividades priva" estas entidades de beneficiar da proteção conferida pela CEDH, "a qual é aplicável a qualquer pessoa, singular ou coletiva".17

1.2 Requisitos objetivos

I. O busilis da questão, todavia, não reside tanto em saber se as sociedades podem ou não ser titulares de direitos humanos à luz da CEDH (âmbito subjetivo), mas antes, uma vez respondida afirmativamente tal questão, em determinar quais os direitos em causa (âmbito objetivo da proteção).

  1. A resposta a tal questão é complexa, já que pressuporá sempre uma tomada de posição subjacente, ainda que implícita, sobre o sentido último da própria personificação coletiva.18 Em termos genéricos, pode afirmar-se que a titularidade de direitos humanos por pessoas coletivas societárias se encontra sujeita a um conjunto de limites próprios, de índole geral e concreta, que a diferencia da titularidade das pessoas singulares.

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Por um lado, limites de caráter geral ou universal, decorrentes da sua própria natureza, que são aplicáveis a todas as pessoas coletivas. Um pouco à semelhança do que se passa com a titularidade dos direitos fundamentais nas ordens jurídicas internas,19 tornou-se usual na doutrina e na jurisprudência considerar as pessoas coletivas apenas são titulares de direitos consagrados na CEDH "que sejam compatíveis com a sua natureza particular".20 Excluídos estarão, desde logo, aqueles direitos humanos inseparáveis da personalidade singular, postuladores de uma referência humana ou de uma "pessoa de carne e osso", tais como o direito à vida (art. 2º), o direito à não sujeição a tortura e penas degradantes (art. 3-), o direito à não sujeição a escravatura (art. 4-), o direito à instrução (art. 2- do Primeiro Protocolo Adicional),21 o direito ao domicílio (art. 8º),22 o direito à liberdade de consciência (art. 9º),23 o direito ao casamento (art. 12-),24 e assim por diante.

Por outro lado, limites de caráter concreto ou individual, decorrentes do fim ou escopo concreto de cada sociedade comercial em particular. E bem sabido que a capacidade jurídica das sociedades se encontra balizada por um princípio fundamental: o princípio da especialidade do fim, de acordo com o qual a respetiva capacidade compreende todos mas apenas os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins (art. 160º, n. 1, do Código Civil, art. 6% n. 1, do Código das Sociedades Comerciais).25 Assim sendo, a titularidade coletiva dos direitos da CEDH está ainda sujeita a um limite funcional, a determinar caso a caso em função...

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