A sociedade em comum (Uma malcompreendida inovação do Código Civil de 2002)

AutorErasmo Valladão A. E N. França
Páginas32-61

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1. A sociedade de fato e a sociedade irregular no Direito anterior

As expressões "sociedade de fato" e "sociedade irregular", que alguns autores davam como sinônimas, não foram utilizadas pelo Código Comercial de 1850.

Na verdade, o referido diploma legal tratou justamente do que chamou, no art. 304, de "sociedade em comum".3Diplomas posteriores é que utilizaram as expressões "sociedade de fato" (Decreto 917, de 24.10.1890, art. 5º, "d"; Lei 859, de 16.8.1892, art. 8º, "d") e "sociedade irregular" (Lei 2.024, de 17.12.1908, art. 8º, "c").

Vários autores, todavia, distinguiam uma da outra: a sociedade de fato seria aquela contratada verbalmente; a irregular, aquela contratada por escrito mas cujo contrato não tivesse sido registrado.4Posteriormente, o Código Civil de 1916 também disciplinou sucintamente a matéria, mas sem utilizar qualquer denominação particular.

Entendia-se, de qualquer modo, que a sociedade civil não registrada não era ir-

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regular.5Segundo Pontes de Miranda: "No direito civil, sociedades que não se registaram existem, sem irregularidade; apenas não se personificaram. O sistema jurídico comercial é que exige o registo para que ‘regularmente’ funcionem, porque uma das finalidades da política jurídica comercial é ser registado tudo que se passa a respeito de contratos sociais".6

1. 1 Prova da existência da sociedade

1.1.1 Nas relações internas

No tocante à prova da sociedade, o art. 300, primeira parte, do CComercial enunciou: "O contrato de qualquer sociedade comercial só pode provar-se por escritura pública ou particular; salvo nos casos dos arts. 304 e 325".7A seguir, dispunha o art. 301, terceira parte: "Enquanto o instrumento do contrato não for registrado, não terá validade entre os sócios nem contra terceiros, mas dará ação a estes contra todos os sócios solidariamente (art. 304)". Complementava o art. 303: "Nenhuma ação entre os sócios ou destes contra terceiros, que fundar a sua intenção na existência da sociedade, será admitida em juízo se não for logo acompanhada do instrumento probatório da existência da mesma sociedade".

Aparentemente, portanto, ficava vedada aos sócios a prova da sociedade na hipótese de inexistir contrato ou de este não ter sido registrado.

Na nota 6 ao art. 747 da Consolidação das Leis Civis, porém, Teixeira de Freitas deu a seguinte interpretação ao artigo supracitado: "Aproveitarei a occasião para firmar a verdadeira intelligencia do Cod. do Com. Art. 303, de que os nossos juízes e tribunaes têm feito resultar consequencias iniquas. As acções, que esse Art. 303 do Cod. veda aos sócios entre si, e contra terceiros, se não forem acompanhadas do instrumento probatório da sociedade, não são todas as acções indistinctamente, mas só aquellas que não tiverem outra causa possível senão a existência de uma sociedade. É o que bem se conhece pelas palavras do citado Artigo - ‘que fundar sua intenção na existencia da sociedade’. E, na verdade, se estas palavras distinguem certas acções dos socios entre si, ou dos socios contra terceiros, como é possivel entender que os socios estão privados de demandar-se reciprocamente pela restituição dos bens de suas entradas sociaes, pela partilha de lucros havidos em commum, e de demandar a terceiros para pagamento de dividas? Quando não exista sociedade legalmente constituída, ou contractada em fórma legal, existio todavia uma sociedade de facto - uma communhão de bens ou interesses; e ahi temos uma causa juridica das acções, embora não tenhamos a existencia legal de uma sociedade. Por outra, o Art. 303 do Cod. do Com. prohibe que sem o instrumento social registrado se venha demandar em juizo effeitos futuros do contracto de sociedade, por exemplo, para que um socio realise a promettida entrada social; porém não veda que se demande em juizo por effeitos já produzidos, ou pelo que respeita ao passado. A não ser assim, autorisava-se a usurpação dos bens alheios. Esta é a doutrina de todos os escriptores francezes sobre o contracto de sociedade, doutrina tendo por si a boa razão, e mesmo o simples bom-senso".8

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Essa interpretação foi seguida por todos os doutrinadores, a começar por Carvalho de Mendonça, que acrescentou: "Os socios, desde que se fundem em titulo diverso do contracto social, não estão privados de se demandarem reciprocamente, com o fim de evitar que uns se locupletem á custa dos outros. Não se podem escusar ás obrigações já contrahidas, nem impedir o regulamento dos lucros e das perdas ou a restituição das entradas, isto é, os effeitos da sociedade a respeito do passado. Os socios não estão prohibidos de reclamar uns dos outros o que, como donos, condominos ou credores, lhes é devido. Existe nesses casos um principio supremo a attender, e não seria justo fechar as portas dos tribunaes. A sociedade, porém, não póde obrigar os socios a fazer as entradas a que se obrigaram para que ella preencha os seus fins; um socio, tambem, não pode obrigar o outro a cumprir este dever".9A jurisprudência também não destoava.10

O Código Civil de 1916, por sua vez, continha disposições semelhantes às do Código Comercial. No § 2º do art. 20 assim determinava: "As sociedades enumeradas no art. 1611que, por falta de autorização ou de

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registro, se não reputarem pessoas jurídicas, não poderão acionar a seus membros, nem a terceiros; mas estes poderão responsabilizá-las por todos os seus atos". E no art. 1.366 assim dispunha: "Nas questões entre os sócios, a sociedade só se provará por escrito; mas os estranhos poderão prová-la de qualquer modo".

Não obstante a semelhança, introduziu o Código Civil, porém, sutis diferenças. Enquanto o Código Comercial exigia não só o contrato escrito, mas seu registro, para "validade"12entre os sócios (art. 301, terceira parte), o Código Civil de 1916 falava apenas em "prova escrita". E no § 2º do art. 20 vedou apenas à sociedade acionar os seus membros, e não estes entre si (se houvesse prova escrita, nos termos do art. 1.366).

Por consequência, "tendo a sociedade sido formada por contrato escrito, embora sem haver o registro" - afirmou J. M. Carvalho Santos -, "o contrato prevalece para todos os efeitos jurídicos, menos quando diz respeito à aquisição de uma personalidade distinta da dos sócios. Vale dizer: os sócios, com fundamento nesse contrato, poderão acionar uns aos outros, com relação a tudo quanto diga respeito à sociedade, existindo, ainda neste caso, uma comunhão de bens, mas já regida pelas determinações do contrato e pelas disposições do Código Civil, quando regulamentou o contrato de sociedade nos arts. 1.363 e ss. (cf. Gomes de Oliveira, ob. cit., n. 60)".13Mais ainda: como observou, com precisão, Pontes de Miranda: "A prova por escrito, a que o art. 1.366 se refere, não é sempre a prova do contrato. Pode dar-se que haja escrito ou escritos que não sejam o do contrato, mas que sejam suficientes para que se repute existente a sociedade".141.1.2 Nas relações externas

No art. 303, como se viu, o CComercial exigiu o "instrumento probatório" da existência da sociedade para viabilizar a propositura de qualquer ação entre os sócios ou destes contra terceiros.

No art. 304, todavia, ressalvou: "São, porém, admissíveis, sem dependência da apresentação do dito instrumento, as ações que terceiros possam intentar contra a sociedade em comum ou contra qualquer dos sócios em particular. A existência da sociedade, quando por parte dos sócios se não apresenta instrumento, pode provar-se por todos os gêneros de prova admitidos em comércio (art. 12215), e até por presunções fundadas em fatos de que existe ou existiu sociedade". E no art. 305 exemplificou: "Presume-se que existe ou existiu sociedade, sempre que alguém exercita atos próprios de sociedade, e que regularmente se não costumam praticar sem a qualidade social. Desta natureza são especialmente: 1 - Negociação promíscua e comum. 2 - Aquisição, alheação,

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permutação, ou pagamento comum. 3 - Se um dos associados se confessa sócio, e os outros o não contradizem por uma forma pública. 4 - Se duas ou mais pessoas propõem um administrador ou gerente comum. 5 - A dissolução da associação como sociedade. 6 - O emprego do pronome ‘nós’ ou ‘nosso’ nas cartas de correspondência, livros, fatura, contas e mais papéis comerciais. 7 - O fato de receber ou responder cartas endereçadas ao nome ou firma social. 8 - O uso de marca comum nas fazendas ou volumes; 9 - O uso de nome com a adição ‘- e companhia’. A responsabilidade dos sócios ocultos é pessoal e solidária, como se fossem sócios ostensivos (art. 316)".

Para Carvalho de Mendonça, porém, a prova da sociedade irregular deveria ser a mais completa possível e "formada com muita segurança, mórmente quando se trata de arrastar á falência alguem que se tem como socio".16Advertia que sobre os indícios enumerados no art. 305 deveria prevalecer sempre a verdade dos fatos.

Para finalizar, o Código Civil de 1916, como se viu, também permitiu a terceiros a prova da sociedade não registrada "de qualquer modo" (art. 1.366), bem como a sua responsabilização (§ 2º do art. 20).

1. 2 Regime jurídico

1.2.1 A disciplina societária

Tendo em vista a remissão feita na parte final do art. 305 à sociedade em nome coletivo, pode-se dizer que nas relações entre os sócios de uma sociedade comercial de fato ou irregular aplicavam-se as regras daquela.17

Sua falência, dissolução judicial e liquidação deveriam se fazer, segundo Carvalho de Mendonça, na mesma forma das sociedades regulares.18Relativamente à dissolução e à liquidação, o Código de Processo Civil de 1939 editou regra especial, determinando, no art. 673: "Não havendo contrato ou instrumento de constituição de sociedade, que regule os direitos e...

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