Sociedade anónima: a questão do voto múltiplo

AutorPaulo Salvador Frontini
Páginas68-77

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1. O tema na Lei Societária de 1976
  1. Ao ser promulgada, em 1976, a atual Lei de Sociedades por Ações trouxe em seu bojo uma inovação: a disciplina do voto múltiplo. Em termos de legislação brasileira, era uma novidade, que se incorporou a nosso Direito Positivo na forma do art. 141 da Lei 6.404, assim redigido:

"Art. 141. Na eleição dos conselheiros, é facultado aos acionistas que representem, no mínimo, um décimo do capital social com direito a voto, esteja ou não previsto no estatuto, requerer a adoção do processo de voto múltiplo, atribuindo-se a cada ação tantos votos quantos sejam os membros do Conselho, e reconhecido ao acionista o direito de cumular os votos num só candidato ou distribuí-los entre vários.

"§ 1º A faculdade prevista neste artigo deverá ser exercida pelos acionistas até quarenta e oito horas antes da Assembleia Geral, cabendo à Mesa que dirigir os trabalhos da assembleia informar previamente aos acionistas, à vista do 'Livro de Presença', o número de votos necessários para a eleição de cada membro do Conselho.

"§ 2º Os cargos que, em virtude de empate, não forem preenchidos, serão ob-jeto de nova votação, pelo mesmo processo, observado o disposto no § 1º, infine.

"§ 3º Sempre que a eleição tiver sido realizada por esse processo, a destituição de qualquer membro do Conselho de administração pela Assembleia Geral importará destituição dos demais membros, procedendo-se a nova eleição; nos demais casos de vaga, não havendo suplente, a primeira assembleia procederá à nova eleição de todo o Conselho.

"§ 4º Se o número de membros do Conselho de administração for inferior a cinco, é facultado aos acionistas que representem 20%, no mínimo, do capital com direito a voto, a eleição de um dos membros do Conselho, observado o disposto no § 1º"

1.1 Convém desde logo ressalvar que, para as companhias abertas, a Comissão de

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Valores Mobiliários, com fundamento no art. 191 da Lei de Sociedades por Ações, pode estabelecer percentuais inferiores ao previsto no dispositivo acima transcrito, para autorizar o requerimento de utilização do voto múltiplo. Confira-se, a propósito, a Instrução CVM 282, de 26.6.98. As peculiaridades dessas norrnas infra-legais não interferem, todavia, sobre as considerações que são desenvolvidas neste estudo.

2. Justificativa para a inovação
  1. A figura jurídica do voto múltiplo tem sua razão de ser na conveniência de possibilitar aos acionistas não controladores, mas com presença acionária relevante (mínimo de 10% das ações com direito a voto), sua participação no Conselho de Administração. Disse-o explicitamente a exposição de motivos justificadora do proje-to: "O artigo 141 assegura - através do processo do voto múltiplo - a representação das minorias no órgão deliberativo da administração" (apud Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, A Lei das S/A, 1/241, 2âed., Renovar).

Não foi a primeira vez, nem terá sido a última, em que o legislador tenta transplantar para a disciplina das sociedades anónimas figuras jurídicas do Direito Público criadas e desenvolvidas, no âmbito do Estado e da coletividade política, para viabilizar o convívio democrático de forças antagónicas. Lembremo-nos das lições de Ripert, traçando paralelismo entre a Assembleia Geral e o Poder Legislativo, a Di-retoria e o Poder Executivo e o Judiciário e o arbitramento, embora com o cuidado de acentuar constituir essa aparente simetria um esquema pertinente à grande ilusão dos acionistas (Aspectos Jurídicos do Capitalismo Moderno, Freitas Bastos, 1947, p. 107).

3. O Conselho de Deliberação e seu modo de deliberar
  1. Parece sempre oportuno lembrar que o Conselho de Administração é órgão de deliberação colegiada, investido de elevadas atribuições, sendo a primeira delas a de fixar a orientação geral dos negócios da companhia. Dentre suas atribuições, consta, por exemplo, a de eleger os membros da Diretorial (Lei 6.404, art. 142, II) Paralelamente, as deliberações, no âmbito do Conselho, são tomadas por cabeça, vale dizer, cada membro desse colegiado tem direito a um voto. Não pesa, nas deliberações do Conselho, a representação do capital. Como os membros do Conselho devem ser acionistas (art. 146), poder-se-ia supor que um conselheiro, titular de 51% das ações com direito a voto, estaria sempre vencendo a tomada de decisões no Conselho. Mas assim não acontece, porque, embora a lei das companhias determine que o estatuto deve estabelecer as normas sobre convocação, instalação e funcionamento do Conselho, consta da lei o comando imperativo de que o Conselho deliberará por maioria de votos (art. 140, III).

4. Minoria societária e participação no Conselho
  1. O tema justifica reflexões, porquanto a utilização desse instrumento de representação democrática de minoria no órgão colegiado de administração superior pode ensejar, em casos concretos, surpresas. Estas surgirão em duas hipóteses: a primeira ocorrerá se e quando os controladores, conscientes de seu comando sobre a companhia, souberem agir de modo a obstar a presença de minoritários no Conselho. A segunda hipótese representa o oposto, ou seja, a surpresa ocorrerá se e quando os não controladores, prevalecendo-se da desatenção dos controladores, conseguirem eleger a maioria dos membros do Conselho.

Prevalecerem os controladores sobre os não controladores é fato comum, embora nem sempre legítimo. Mas, lograrem os não controladores eleger a maioria do Conselho de Administração é ocorrência que

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escapa à lógica e à rotina. Mas, pode acontecer! E essa é a asserção marcante no tema: acionistas minoritários, não controladores, valendo-se do instituto do voto múltiplo, podem sair vencedores na Assembleia Geral que elege os conselheiros. Através do voto múltiplo - se a maioria não estiver atenta - a minoria elegerá maior número de conselheiros.

É a lição da boa doutrina, como se lê em Paulo Fernando Campos Sales de Toledo: "Não é simples a utilização do voto múltiplo. Enseja manobras táticas complexas, que podem levar, se mal conduzidos os interesses, à perda do controle dos majoritários no Conselho de administração, ou, por outro lado, à não obtenção de um cargo pelos minoritários, quando isto seria matematicamente possível" (Conselho de Administração na Sociedade Anónima, p. 32, Atlas).

E tendo eleito maior número de conselheiros, essa minoria, deliberando por maioria de votos, elegerá a Diretorial Eleger a Diretoria significa exercer a representação da companhia e a administração desta, quer dizer, comandar a sociedade anónima. Anote-se que, além de eleger a Diretoria, a minoria vencerá todas as demais votações no âmbito do Conselho.

4. 1 Situações casuísticas, exemplos e dificuldades na aplicação do preceito de voto múltiplo; ponto crítico da questão

4.1 Para melhor compreensão do tema, vale a tentativa, que será feita nestas linhas, de exemplificar a casuística do preceito legal enfocado. Assim, no cenário da Assembleia Geral da sociedade anónima, em cuja reunião ordinária anual normalmente se dá a eleição dos membros do Conselho, processa-se a eleição dos diversos conselheiros mediante a votação para cada cargo.

Para cada cargo de conselheiro, cada acionista fará o respectivo sufrágio. Pelo regramento geral do Direito Societário...

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