Social movements and political subjectivity: notes on recent Brazilian political sociability /Movimentos sociais e subjetivacao politica: anotacoes sobre sociabilidade politica brasileira recente.

AutorBarros, Joana da Silva
CargoLutas, Cidadania e Direitos Humanos

Participacao popular: uma questao e seu campo de discussao

As relacoes entre cidade e politica, ao longo da decada de 1990, alteraram-se profundamente. Este parece ser um ponto de partida comum, na producao sociologica desde a metade dos anos 1990, a varias e distintas formas de apreensao, leitura e analise da realidade brasileira atual. Sobretudo das formas de compreensao da vida urbana e da participacao politica que se seguiu a chamada redemocratizacao brasileira, a partir de 1985.

A problematizacao da vida publica brasileira e seus impasses encontrou, nos anos 1980, centralidade no aparecimento de novos sujeitos politicos ou "novos personagens", usando expressao celebre cunhada por Eder Sader (1988), que serviu de inspiracao para uma proficua discussao nos anos 1980 e 1990. Essas leituras do cenario brasileiro, ao mesmo tempo em que analisavam a cena publica da epoca, "acertavam as contas" com a historia da formacao brasileira, relendo e problematizando as figuracoes e entendimento da formacao, do papel e das maneiras de aparecimento e atuacao politicos das classes populares. Estes eram lidos ate ali na chave da incompletude e da impossibilidade de acesso a cidadania, aos direitos sociais e a vida publica; tal visao foi problematizada por Paoli (1987), Paoli e Sader (1986), Sader (1988) e Telles (1999).

O que entao se colocavam em questao eram os proprios vinculos entre cidadee politica, iluminando a experiencia politica dos trabalhadores para alem dos seus locais de trabalho, privilegiando a leitura dos seus locais de sociabilidade e suas formas de vida. Assim, no campo da teoria sociologica, ultrapassava-se a concepcao estrita dos trabalhadores como meros operarios, rejeitando a heranca ortodoxa do marxismo althusseriano. Por outro lado, no campo das praticas sociais, viu-se um "arejamento" das formas de organizacao dos trabalhadores, fundado na critica a trajetoria dos partidos de esquerda centralizados e na procura de uma organizacao mais horizontal dos "de baixo", na expressao de Florestan Fernandes.

Nesse encontro entre as praticas populares e as novas interpretacoes academicas de sua trajetoria, situa-se o nascimento de experiencias de democratizacao dos espacos de decisao politica sobre a coisa publica. Ali mesmo se refaziam as relacoes entre cidade e politica, tanto nos marcos da literatura quanto da propria experiencia concreta dos movimentos sociais.

Neste sentido, a Constituinte de 1988 e um momento importante, uma vez que representou um novo marco juridico que, em alguma medida, exprimia os anseios e expectativas de uma sociedade democratica, instituindo mecanismos e formas de participacao popular e social na vida politica do Brasil, recem-saido da Ditadura Militar, para alem da democracia representativa. A importancia da Constituinte tambem reside no fato de que, a partir deste novo arcabouco juridico-legal, formas de participacao popular foram reconhecidas como justas, ao menos formalmente e abriram, entao, caminho para afirmar-se como uma pratica de gestao compartilhada das politicas publicas, dos programas sociais e dos recursos concernidos nessa disputa. A inscricao desses mecanismos no corpo da lei constitucional e uma importante vitoria dos movimentos sociais, sindicais e populares e, sendo resultado de lutas, com avancos e derrotas desses segmentos, serviu como referencia na disputa pelos rumos da democratizacao brasileira ao longo dos anos 1990.

A consolidacao dessas novas formas de participacao popular--camaras setoriais, foruns de negociacao, conselhos gestores de politicas publicas--na vida politica brasileira, entretanto, ocorreu concomitantemente as transformacoes pelas quais passou a economia mundial e a forma especifica como o capitalismo se reorganizou (e ainda o faz) na periferia do mundo e no Brasil, sob a insignia de globalizacao ou do neoliberalismo. Essa concomitancia teve impacto nao desprezivel sobre as formas de organizacao da vida politica do pais e, especialmente, sobre as possibilidades de realizacao das promessas de democratizacao e emancipacao concernidas nestas.

E possivel perceber os impactos dessas transformacoes em diversas dimensoes da vida social, seja na organizacao da producao (nos locais de trabalho e na organizacao sindical), seja na cidade (na gestao urbana e nas suas formas de regulacao, ou na falta dela), seja no aparecimento e consolidacao de novos espacos de discussao de temas e questoes ate entao postos a margem da vida publica brasileira.

Olhados em perspectiva, as novas formas de participacao apresentam-se como uma experiencia bifronte. Resultado do acumulo popular que emergiu com forca nos anos 1980, essas formas de democratizacao do Estado e da vida politica brasileira, em certa medida, herdaram nos anos 1990 as "energias utopicas" de construcao dos mecanismos de partilha de poder entre Estado e sociedade da decada anterior. Contudo, essa experiencia se realiza sobre um solo movedico de transformacao da economia brasileira e tambem da vida politica e social.

O no naquele periodo (que se estende e transforma ate os anos que se seguem) parece ser justamente a constituicao de espacos de debate e deliberacao publica--esperava-se a consolidacao de uma experiencia democratica--, num cenario de intensa privatizacao da vida e de reducao de horizontes publicos. Parece um contrassenso, mas nao e: tudo se passa como se a politica fosse desnecessaria, ou, nas palavras de Francisco de Oliveira (1999, p. 57), constitui-se "uma experiencia subjetiva de desnecessidade, aparente, do publico", que a bem da verdade, encobre o movimento real de constituicao de formas, naquele momento necessarias a reproducao do capital, com o embaralhamento entre Estado e mercado, que deslegitima a fala dissensual e anula a possibilidade de conflito (RANCIERE, 1996).

A producao academica sobre os conselhos setoriais e as praticas de participacao popular na administracao publica, notadamente os orca mentos participativos, fornecem algumas pistas importantes sobre os eixos de interrogacao privilegiados nesse processo. Alem disso, armam uma constelacao de temas e questoes que foram postos em debate ao longo dos anos 1990. Sem duvida alguma, a relacao Estado/sociedade civil parece ser o centro articulador e irradiador dos questionamentos desses estudos, problematizada sob a otica da cultura politica (DAGNINO, 1994; BAIERLE, 2000).

A compreensao dos anos 1990 e das novas relacoes entre Estado e sociedade civil estava, em certa medida, impregnada de esperancas e da aposta de que, desse "encontro" (DAGNINO, 1994), a questao democratica no Brasil fosse problematizada de maneira diferente. Da mesma forma, esperava-se que os processos reais de questionamento das formas autoritarias presentes no aparelho estatal, na sociabilidade e nas praticas politicas possibilitassem a abertura de espacos a participacao societaria na gestao publica. Alem disso, que eles fomentassem a constituicao de espacos publicos de reconhecimento das demandas legitimas que partiam da sociedade civil organizada, consolidando uma nova cultura politica e uma cidadania renovada.

Essas analises (e tambem as apostas) nao se furtaram a critica dos limites e das contradicoes reais dos processos de implantacao de orcamentos participativos, de conselhos gestores e dos mecanismos de controle social sobre a maquina publica, do aparecimento e do papel das ONGs e sua relacao com os movimentos sociais, da instituicao e institucionalizacao dos chamados "espacos de encontro" entre sociedade e Estado, dos quais supostamente emergiriam novas praticas democraticas, a partir de um novo aprendizado da democracia.

O cenario politico dos anos 1990, que adentra os anos 2000, ou uma das faces dos "anos bifrontes", agrega um elemento importante ao debate sobre a questao democratica brasileira: o desmanche neoliberal (SCHWARZ, 1999), momento do encolhimento das politicas publicas universais e da regulacao estatal como elemento fundamental para manutencao de uma ordem social, na qual ainda fosse possivel a dimensao de disputa publica e politica.

A discussao sobre os impasses dos movimentos sociais e sindicais, as maneiras de desconstrucao de sua representacao politica e as consequencias para a vida publica no Brasil comparecem, de maneira pouco expressiva, no vies teorico de problematizacao que se debruca sobre as formas participativas de gestao publica--o que pode indicar ja uma questao em aberto. Um exemplo na contramao dessa tendencia na literatura e o artigo "Sociedade civil, espacos publicos e a construcao democratica no Brasil: limites e possibilidades", no qual Evelina Dagnino problematiza as experiencias de conselhos e espacos publicos para gestao participativa e da atuacao das ONGs em nome dos movimentos sociais. A autora chama atencao para os impasses com os quais se deparam os "atores" envolvidos:

Sua centralidade [da complementaridade instrumental entre propositos do Estado e da sociedade civil] se relaciona com o fato de que ela tem se construido nos ultimos anos como uma estrategia do Estado para a implantacao do ajuste neoliberal que exige o encolhimento das suas responsabilidades sociais. Nesse sentido, ela faz parte de um campo marcado por uma confluencia perversa entre um projeto participatorio, construido, a partir dos anos 80, ao redor da extensao da cidadania e do aprofundamento da democracia, e o projeto de um Estado minimo se que isenta progressivamente do seu papel de garantidor de direitos. (2002, p. 288-289--grifos no original).

Por um lado, essa producao, que se debrucou sobre a experiencia dos movimentos sociais e dos frutos nascidos do questionamento sobre as formas de sociabilidade politica brasileira, colocava acento e armava a discussao, partindo da nocao de direitos sociais e do aprendizado politico que a sua reivindicacao e as formas de organizacao comunitarias fomentavam. No entanto, e preciso sublinhar que, naquele mesmo periodo, teve lugar no Brasil o que podemos chamar de acantonamento dos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT