Entre políticas públicas e a soberania popular: estado e democracia participativa na América do Sul

AutorCláudio Azevedo; Aruã Silva de Lima
Páginas373-385

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2 Democracia, esquerda e participação popular: liberdade vigiada

Os anos de luta123 contra o imperialismo e pela libertação nacional circunscrevem-se, de modo amplo, na segunda metade do século XX. O discurso em torno da libertação dos povos – portanto, o tema da liberdade – misturou-se às bandeiras de grupos subalternos em todo o globo. No Brasil não seria diferente pelo simples fato de o país se encontrar imerso na engrenagem complexa do mundo pós-45.4 Comunistas e trabalhistas, como correntes políticas, apoiavam o governo João Goulart e travavam, desde meados da década de 1950, árdua batalha pela defesa da ordem constitucional e pela manutenção do Estado de Direito. Setores legalistas das Forças Armadas Brasileiras também o fizeram, pelo menos em duas ocasiões – 1958 e 1961. Tratava-se de um momento de grande efervescência popular, haja vista a crescente organização de trabalhadores urbanos e de camponeses que avançavam cada vez mais numa pauta reivindicativa em direção ao tensionamento da democracia histórica.5 Não cabe discorrer sobre as motivações e realizar um balanço acerca das forças políticas que compunham o cenário conflituoso. A grande questão é: quando, num momento de agudização de conflitos, grupos subalternos unificam-se e criam mecanismos próprios nas tomadas de decisões, construindo uma agenda própria de exercício de cidadania e, a partir disso, de crítica ao status quo, tem-se um processo democrático? Ou, um processo democrático necessariamente perpassa pela partilha do poder decisório do Estado?

A questão, talvez, fosse mais bem posta se a ideia de democracia se fizesse presente não tanto como um método de exercício de poder e sim, como instituição sociopolítica disputada na dinâmica do cotidiano de cada sociedade. A caracterização, portanto, da democracia estaria posta sob disputa entre sujeitos sociais. Desse modo, as análises da complexidade dos processos que têm como pano de fundo a questão da liberdade e emancipação do homem. Compreender, destarte, o exercício da democracia no Brasil e, principalmente, os sujeitos que propugnaram agendas democráticas significa compreender os papéis de classe desempenhados pelos protagonistas da história recente no Brasil e, analogamente, dos demais países sul-americanos.

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3 As concepções de soberania popular e esfera pública: fundamentos da participação popular na América do Sul

A perpetuação de um regime de democracias representativas acabou por gerar um verdadeiro engodo sociopolítico: as “meias-democracias” ou as “semirrepresentatividades”. Essas formas de governo perpetuaram a participação indireta do cidadão na condução dos assuntos públicos – por meio das eleições; participação esta, contudo, que se revelou totalmente atrofiada, pois os cidadãos possuem poucos meios de controle de seus representantes e tampouco possuem maneiras de exigir o vínculo dele aos compromissos firmados no momento eleitoral.

Pretende-se, então, indagar qual o impacto dessa perpetuação de prática de poder na (des)valorização da democracia participativa, fundada na necessidade de conceder àquele poder dado aos representantes democráticos mais legitimidade, isto é, de aproximar mais os cidadãos nas tomadas de decisões; de sair do estado em que era participado – comunicado – dos rumos do país, para um outro cenário em que ele deixa a posição de coadjuvante para também participar daquelas tomadas de decisões. Na democracia participativa, os cidadãos passam a assumir de maneira efetiva a condução da coisa pública, legitimando, constantemente, o poder que foi dado àqueles representantes eleitos. Logo, isso quer dizer que esse regime não nega que existam representantes, mas sim ressalta que o direito que determinado indivíduo assume ao ser eleito legalmente tem limites; limites estes que residem na soberania popular, isto é, na legitimidade, sendo renovada constantemente pelos cidadãos. Deve-se, assim, observar os mecanismos de organização comunitária, bem como a existência (e o tipo) de políticas públicas que interfiram na conscientização populacional e na ampliação do direito à cidadania.

Além desse reflexo interessante, observamos a mutação que sofreu a concepção de soberania popular – principalmente nos regimes de Direito Democrático sul-americano alicerçado nos direitos fundamentais. É importante notar que os Estados de nosso continente nasceram a partir uma raiz ibérica, fundada no interesse privado e no autoritarismo das relações sociais, que sempre foram/são fundadas em um verticalismo e em uma hierarquia social. Não é por acaso que notamos, a despeito de outros países de situação cultural distinta, o grande protagonismo conferido ao poder executivo na América do Sul.

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Contudo, como já foram pontuadas acima, as mudanças nas formas de mobilização social, iniciadas nas décadas de 60 e 70 - que são abortadas por um período ditatorial -, retornam ao cenário político sul-americano no século XXI. São essas mudanças que vão provocar a “mutação” da concepção de soberania popular. Assim, aquela sociedade, alicerçada principalmente em interesses privados, por meio de ações coletivas, exigirá uma maior participação na tomada de decisões estatais, o que demanda o surgimento do fenômeno da transparência estatal (publicização), refletindo a ampliação do domínio público, antes fechado a interesses coletivos. Então, a legitimação da soberania popular, em um processo contínuo de concretização passará a fundar-se na esfera das relações sociais e não mais apenas na esfera institucional do Estado.

Dessa forma, a concepção de soberania popular ganhará novo significado, devido à mudança ocorrida no espaço público. Este, por sua vez, passará a se basear, não mais naqueles interesses privados, mas sim, fundamentalmente, naquela soberania popular e na publicização da informação. A ampliação da esfera pública cria, assim, um espaço de interação entre os seres humanos, o que permite a formação de grupos e movimentos sociais que passam a apresentar demandas e a reivindicar câmbios nessa esfera. Essa apresentação de demandas e esses conjuntos de reivindicações foram alicerçados justamente pela publicização da informação que, da mesma forma, ampliou o domínio público ao possibilitar a politização de novas questões antes não relevantes para a sociedade.6 As organizações não-governamentais de proteção ao meio ambiente são um bom exemplo da realidade vivida pela esfera pública atualmente, pois apresentam frequentemente demandas ao Estado, que são frutos de um processo de busca por informação e debate de argumentos dentro desses espaços comuns.

Assim, perceba-se, o espaço público não pode ser encarado como instituição - pois não regula competências -, nem como sistema - visto que possui horizontes abertos e deslocáveis -, e tampouco como organização - já que não regula nada. A esfera pública, de acordo com o que foi dito no parágrafo anterior, parece ser uma rede de comunicação entre aqueles atores sociais, em que são...

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