Soberania e meio ambiente: a adequação do direito internacional às novas necessidades de gestão ambiental e os mecanismos da ONU para resolução de conflitos

AutorFlávio Paulo Meirelles Machado
Páginas123-150

Flávio Paulo Meirelles Machado. Bolsista da UNITAR. United Nations Institute for Training and Research.

Page 123

1 Introdução

Por ser um tema crucial, a globalização possibilitou aos seres humanos a conscientização de que todos os atos do homem podem afetar não somente a si mesmo, mas também aos inúmeros atores presentes no meio ambiente.

Globalização é, na verdade, uma mutação crescente na geopolítica mundial. Seu sintoma mais visível é o constante aumento do entrelaçamento dos povos, envolvendo rede de interdependência1 continentais, ligadas pela circulação e influência de capital e bens, de informação e idéias, de pessoas e forças, e, também, pelo meio ambiente.2

Atualmente as fronteiras políticas não definem o que está cercado por seu poder do que não está. Hoje vivemos em uma “civilização genuinamente transnacional”3 De fato, há o desaparecimento das fronteiras nacionais, pois os Estados deixam de limitar as ações dos indivíduos, perdendo o controle sobre grande parte de suas ações.

Dentro da perspectiva de problemas ambientais, como resultados da globalização, não que a ordem ambiental possa ser enquadrada somente em um evento transnacional, fruto da globalização, é obvio que esses problemas são antrópicos e naturais.

O que é mais importante se constatar é que as ações do homem e da natureza excedem o conceito geopolítico de território: um problema ambiental, em um país, em pouco tempo, pode afetar outras nações vizinhas, ou, até mesmo, Estados em continentes diferentes. Verifica-se que a depreciação da camada de ozônio, o aquecimento global, a poluição são problemas globais que não podem ser contidos nem solucionados por um único Estado. OuPage 124 seja, muitos dos problemas globais implicam soluções políticas internacionais, como, por exemplo, o Protocolo de Montreal, relativo às substâncias que destroem a camada de ozônio.

Dessa forma a questão é como gerir corretamente, ou sustentavelmente, o meio ambiente em um mundo globalizado. A utilização de axiomas tradicionais, tais como a teoria da balança de poder ou a imaginária segurança nacional, para análise dos problemas econômicos ou ecológicos da interdependência é falha.4 Conseqüentemente, assim com os demais axiomas tradicionais, seria o conceito tradicional de Soberania encontrado na ordem internacional, em um mundo sem fronteiras, incapaz de corresponder às necessidades do planeta?

No entanto, os meios políticos atuais não permitem que haja um único sistema mundial de proteção ao meio ambiente. O modelo tradicional de Estados soberanos, tendo em vista sua limitação instrumental, ainda é a forma vigente de organização do direito internacional. A solução encontrada, portanto, tem sido a cooperação entre os Estados, e a tentativa de conscientização de todos os atores envolvidos acarretando a responsabilidade perante a Humanidade em proteger o meio ambiente.

Prevendo isso, a Declaração de Estocolmo enfatiza que em questões relativas ao meio ambiente “os países, [...] devem ocupar-se com espírito de cooperação [...] respeitando a soberania e os interesses de todos os Estados.”5

Dessa forma, o objetivo central da primeira parte desse trabalho é versar sobre a compatibilidade entre o princípio da Soberania concernente com a responsabilidade ambiental dos Estados. Na segunda parte deste pretende-se apresentar, de forma sucinta, o sistema da família ONU para resolução de controvérsias ambientais entre Estado soberanos. Por último, a análise da ordem ambiental atual, a posição em que se encontra o direito ambiental internacional com relação à proteção ao meio ambiente e às formas tradicionais do direito.

2 O conflito entre o princípio da soberania dos Estados e a responsabilidade de proteção ambiental
2. 1 Soberania

Em sentindo amplo, o conceito político-jurídico de Soberania pode ser indicado como “o poder de mando de última instância, numa sociedade política.”6 Ademais, aPage 125 Soberania é a racionalização do uso dos recursos jurídicos, pretendendo-se compor força e poder, em poder de direito. Em outras palavras, aliar o poder de fato à legitimidade política. Entende-se desse espectro político-jurídico a possibilidade do Estado, mediante seus mecanismos internos, manter a concentração de poder, tendo o objetivo de realizar a sua máxima unificação política.7

Segundo o professor Alexandre Kiss, a Soberania pode ser entendida como a exclusividade de jurisdição de um Estado em seu território, ou seja, “o Estado é a única autoridade competente para estipular obrigações legais em seu território, possui o poder executivo e seus tribunais são os únicos competentes para julgarem litígios”.8

Essa definição evidencia uma das faces da Soberania, a interna. Isto é, a centralização do poder para a eliminação dos conflitos internos, como no caso da guerra privada, a fim de manter a paz.

A segunda é a externa, a qual, na visão da teoria realista das relações internacionais, constitui-se na obrigação do uso da força, em última instância, pelos Estados para equilibrarem a balança de poder. Entretanto, essas relações internacionais de poder, progressivamente, têm sido disciplinadas pelo direito internacional.9

Na visão tradicionalista do direito internacional público, os Estados são os únicos atores legais nas relações internacionais; são soberanos em seu território, achando-se em nível de igualdade com os demais Estados, não devendo submissão a qualquer ente político global.10O artigo 2, § 7 da Carta da ONU confirma este princípio: nenhum Estado é obrigado a se submeter a qualquer intervenção em assuntos domésticos.11

Segundo Hobbes, a legalização desse monopólio do uso da força pelos Estados encontra-se no contrato social, entretanto seus sucessores confundiram o monopólio de aplicarPage 126 sanção com a capacidade de se fazer obedecer pelo uso da violência, ou seja, reduziram o uso da força e a Soberania à mesma esfera de poder, conduzindo as relações a um poder sem direito, quebrando o vínculo político-jurídico.12

Em contrapartida, observa-se outra fórmula de desequilíbrio da Soberania: o direito sem poder, isto é, a identificação do poder legislativo extremado na visão da vontade geral, em que o soberano faz somente a vontade do povo.

Do ponto de vista teórico, verifica-se a partir das visões mencionadas a existência de algumas características da Soberania. Seria ela indivisível, perpétua e absoluta? Quanto à visão da teoria do estado misto13, para a legitimidade da Soberania é preciso a validade das leis. Verifica-se que o objetivo fundamental de qualquer sistema jurídico é a proteção de valores reconhecidos como essenciais na sociedade.14 No que concerne à lei no Estado Moderno de Direito, as normas são adotadas através de procedimentos aceitos como válidos e o caráter obrigatório da lei restringe os comportamentos danosos.15

A lei torna-se cada vez mais o principal instrumento de organização social.16 Dessa forma, através do contrato social – modernamente, usando-se da Constituição - põe-se um freio jurídico à Soberania, proclamando novos direitos e valores fundamentais das sociedades. Considerando a divisão de poder como válida, desde que percorrido o devido processo constituinte, possibilita-se a divisão da Soberania entre os representantes legais e o povo desde que essa faculdade esteja previamente pactuada.17

O pensamento político de Locke, apesar de proteger a tese que a Soberania é “o poder máximo”, afirma que o soberano deve usar de seu poder em combinação com o que foi constituído em contrato. Tal conceito proporciona que, independentemente da Soberania ser do povo ou do representante, este poder encontra-se prisioneiro do ordenamento jurídico e somente ele prevê quem pode legislar e quem pode utilizar-se da violência legal.18

Page 127

Nas questões internas dos Estados, na realidade, faz pouco sentido comentar-se sobre Soberania, já que essa é, na verdade, limitada à constituição e caracterizada somente no momento da constituinte. Não que ela tenha desaparecido, mas é neutralizada pelos poderes internos de um Estado. Este é, de fato, o poder soberano, que:

[...] cria o ordenamento [...] a real Soberania do povo, que se manifesta no seu poder constituinte, pelo qual, através da constituição, define os órgãos e os poderes constituídos e instaura o ordenamento, onde estão previstas as regras que permitem sua transformação e sua aplicação.19

2. 2 Cenário internacional

Quanto à abordagem da corrente realista: o cenário internacional é um sistema em que os Estados competem entre si pelo poder, e, é, basicamente, um sistema anárquico, sem governo ou autoridade suprema. Os Estados promovem seus interesses, não podendo recorrer a nenhuma autoridade para implementar lei ou direito internacional. Isso não significa uma desordem total, pelo contrário, a racionalidade e unanimidade (homogeneidade) promovem a ordem e a previsibilidade no comportamento dos Estados. Normalmente, esses observam e se conduzem pelos caminhos do direito internacional, não porque são bons, mas porque o direito internacional promove seus objetivos e lhes interessa...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT