Poder, soberania e agentes privados no direito internacional comercial

AutorAdriano da Nobrega Silva
Páginas280-301

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Introdução

De modo generalizado, afirma-se que as relações entre o Estado e as pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas em seu território são de subordinação dessas ao poder e à soberania daquele. Poder, no dizer de Joseph S. Nye, é a “capacidade de obter os resultados desejados e, se necessário, mudar o comportamento dos outros para obtê-los” (2002, p. 30). Soberana, por seu turno, é a potência absoluta e perpétua de uma república (SCHMITT, 2001, p. 24) ou, por outras palavras, a potência que não conhece outra acima dela (GOYARDFABRE, 2002, p. 116).

No estudo acerca do exercício do poder e da titularidade da soberania, tem papel de destaque a obra de Thomas Hobbes. Isso porque ele transcende a um só tempo a análise da política como uma arte – como era, por exemplo, a tradição entre os filósofos gregos – e nem como uma questão prática – como fez Maquiavel.

Hobbes realizou, de modo pioneiro, o problematizar da política a partir da filosofia e, portanto, da razão1. Tamanha é sua convicção acerca do caráter inovador de seus estudos que ele chega a afirmar que a filosofia política não existia antes de sua obra Do Cidadão2.

O propósito do presente estudo é, partindo do referencial teórico de Hobbes, analisar as relações entre o Estado e as multinacionais. Para tanto, partirá de concepções gerais sobre a política e o comércio para, ao seu final, relacionar essas duas esferas de ação e verificar as relações entre elas, especialmente quanto ao comércio internacional.

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1. A arte política de Platão

Para se fazer a alusão à primeira fase das noções sobre a política3, partir-se-á das concepções de Platão. Este define a política como uma arte – a arte régia – a qual, apesar disso, consiste em uma ciência teórica, que não se confunde com as artes manuais ou outras artes práticas (1987, p. 201).

Para Platão, todas as ciências teóricas dividem-se em diretivas e críticas, pertencendo a política ao gênero das ciências diretivas, na medida em que o político não tem apenas o papel de julgar, como mero expectador, ou o de fornecer interpretações, mas sim o de verdadeiramente dirigir, ordenar (1987, p. 203).

Ainda segundo ele, dentre as ciências diretivas, o político exerce uma especial, na medida em que a política é autodirigente, haja vista que o governante não necessita retirar o fundamento de validade de seu comando de qualquer outro fato que não o domínio da arte régia (1987, p. 203). Nisso já se vê um primeiro rudimento da noção de soberania.

Essa é uma noção fundamental, aliás, para se compreender a distinção que Platão faz do papel político daquele reservado ao comerciante ou ao arauto, tendo em vista que os comerciantes, ainda que dirijam seus negócios, apenas compram as mercadorias produzidas por outrem, para as revender, não existindo comerciante sem produtor, e os arautos, por seu turno, apenas recebem decisões alheias para transmiti-las a terceiros (1987, p. 203).

Para Platão, ademais, cabe, ao político, o papel de dirigente dos seres humanos, sendo ele o condutor de um rebanho de homens (1987, p. 211), tendo ele como rivais em potencial os comerciantes, os agricultores, os moleiros, enfim, quaisquer outros que possam avocar para si o papel de pastores de homens (1987, p. 212-213).

Platão retorna à noção de soberania do político ao afirmar que este, ainda que assemelhado aos homens, se encontra em posição de supremacia em relação a eles, assim como Deus, ou os pastores divinos, o estavam antes dele, quando dirigiam diretamente a humanidade (1987, p. 221), tendo em vista que a direção do político deve ser aceita de bomPage 283 grado pelos homens, no que, aliás, o político seria, para Platão, distinto do tirano, o qual impõe o seu querer aos demais pela força (1987, p. 223).

Isso não significa que, para Platão, os políticos retiram sua soberania de leis divinas, de leis escritas ou da satisfação dos demais homens com seu governo. Com efeito, para ele os políticos encontram-se em posição de superioridade na medida em que:

[...] quer governem a favor ou contra a vontade de seu povo, quer se inspirem ou não em leis escritas, quer sejam ricos ou pobres, é necessário considerá-los chefes [...] desde que governem competentemente por qualquer forma de autoridade que seja. [...]

É indiferente também que eles sejam obrigados a matar ou exilar alguém a fim de purificar e sanear a cidade; que exportem emigrantes como enxames de abelhas, para tornar menor a população, ou importem pessoas do estrangeiro, concedendo-lhes cidadania, a fim de torná-la maior. Enquanto se valerem da ciência e da justiça, a fim de conservá-la, tornando-a a melhor possível [...] (PLATÃO, 1987, p. 241-242).

Essas noções nos permitem identificar, com clareza, o fato de que Platão defendia a supremacia do político, consistente essa no domínio da arte régia, razão pela qual deveria governar os outros homens.

2. A ação política de Maquiavel

Maquiavel representa um divisor de águas em relação aos estudiosos que lhe precederam porque não está preocupado com a política apenas no plano das idéias, mas sim com as ações práticas que podem levar ao poder e permitem nele se manter. Sua concepção de poder e de política não parte de noções de melhor governo, ou de regime perfeito, mas sim da análise de situações históricas que constituem, para ele, casos extremos que permitem compreender quais os motivos determinantes das ações dos homens. Nesse sentido, Maquiavel rompe com as noções idealistas até então vigorantes e inaugura um novo modo de pensar a questão política, agora calcada na realidade, a partir do exame daquilo que a experiência possibilita (GOYARD-FABRE, 2002, p. 60-61).

3. Thomas Hobbes

Hobbes também busca o realismo político, mas considera que a política deve ser analisada a partir da razão e não da experiência. Acerca da razão, ele faz uma grave advertência: “a razão de nenhum homem, nem a razão seja que número for de homens,Page 284 constitui a certeza, tal como nenhum cômputo é bem feito porque um grande número de homens o aprovou unanimemente” (2000, p. 52). Nessa passagem ele já deixa transparecer que o entendimento de uma assembléia, ou mesmo o da maioria de uma assembléia, nem sempre é o melhor.

Hobbes entende que a razão é adquirida por meio (2000, p. 54):

  1. da experiência;

  2. do uso adequado da linguagem; e

  3. de um método apropriado – a ciência – que consiste em partir dos elementos (nomes) para as conexões, daí para os silogismos e finalmente para o conhecimento de tudo quanto se refira a este elemento.

Para Hobbes, apesar de a ciência do direito ser calcada na razão4, a verdadeira racionalidade, ao se tratar das normas jurídicas. não consiste em analisar cada uma das normas do ordenamento jurídico, visto que, muitas vezes, as normas não dizem respeito a um conjunto particular de indivíduos, mas sim em saber se as normas devem ser obedecidas, quaisquer que sejam elas e mesmo que as mesmas venham a mudar (2004a, p. 35).

A análise da racionalidade das normas jurídicas pode servir de pretexto à sua desobediência e, assim sendo, Hobbes a rejeita. A parêmia segundo a qual nihil quod est Rationi contrarium est licitum é falsa, pois, para ele, uma norma jurídica não vale por sua racionalidade ou pela crença em sua racionalidade, mas sim por sua autoridade sobre o comportamento dos homens (2004a, p. 36-37).

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1. 1 O método hobbesiano

O método hobbesiano, o que é comum entre os ingleses, é calcado no empirismo. Hobbes não acredita que seja possível, a partir de causas conhecidas, chegar a conseqüências definidas a priori, mas apenas na probabilidade de que estas venham a ocorrer, em função do que a experiência demonstra:

Só o presente tem existência na natureza, as coisas passadas têm existência apenas na memória, mas as coisas que estão por vir não tem existência alguma, sendo para o futuro apenas uma ficção do espírito, aplicando as conseqüências das ações passadas às ações que são presentes, o que é feito com muita certeza por aquele que tem mais experiência, mas não com a certeza suficiente. (2000, p. 41)

Nesse sentido, a única preocupação do homem quanto ao futuro seria a de conservar, pelas ações presentes, os meios de sua existência, tendo em vista que só se pode supor quais serão as conseqüências das ações tomadas.

A linguagem é, para esse autor, a mais nobre e útil de todas as invenções, porquanto possibilita:

  1. a expressão das opiniões e concepções;

  2. o registro das conseqüências que podem decorrer de causas que já são conhecidas, pela memória, ou apenas supostas, pela imaginação;e

  3. verificar racionalmente a exatidão do pensamento dos outros, por meio da análise do registro de suas premissas (2000, p. 43-44).

1. 2 A natureza humana

Quanto à natureza humana, Hobbes, entende que o homem possui talentos naturais e adquiridos. Enquanto os primeiros são aqueles que decorrem “da prática e da experiência, sem método, cultura ou instrução” (2000, p. 71), os últimos são aqueles desenvolvidos, metodicamente e em decorrência da instrução, é a razão, a qual não é exercida aleatoriamente pelos homens, mas sim em função de suas paixões ou interesses, sendo que osPage 286 homens possuem diferentes paixões em virtude da constituição diferente de seus corpos e dos costumes e da educação a que estiveram submetidos (2000, p. 74).

1. 3 A paixão pelo poder e o estado de beligerância

Dentre todas as paixões que movem os homens e os fazer desenvolver seus talentos, Hobbes destaca uma em especial:

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