Situating the trace: A philosophical proposal for the Theory of Legal Comparison/Situando o traco: Uma proposta filosofica para a Teoria da Comparacao Juridica.

AutorDutra, Deo Campos
CargoTexto en portugues - Ensayo

"Com um olho, observar o mundo exterior, com o outro o fundo de si mesmo"

Amadeo Modigliani

Introducao: filosofia como critica (1)

A filosofia foi conceituada das mais diversas formas no decorrer dos ultimos seculos e tem se mostrado como parte integrante e indissociavel do processo de producao do conhecimento cientifico em todas as culturas do globo (EDELGLASS; GARFIELD, 2011).

Em que pese a profundidade e a importancia do debate em torno do processo de conceituacao do termo "filosofia", nao pretendemos investigar tal questao. Tampouco iremos fazer uma abordagem etimologica sobre o mesmo. Adotamos aqui a ideia inicial, na esteira de Karl Jaspers, de compreendermos a filosofia como uma atitude de reflexao critica humana em relacao ao seu proprio ser que, uma vez atrelada ao estudo das ciencias, contribui de forma essencial ao desenvolvimento do conhecimento cientifico, mas que e um processo anterior a ele (2003, p.8). (2)

Neste sentido, e direcionando essa limitacao conceitual em beneficio dos objetivos desse trabalho, compreendemos a filosofia como o processo de reflexao critica metodologicamente estruturada que contribui para a producao de uma serie de distintos conhecimentos. Em suma, em que pese consideracoes divergentes, consideramos aqui a filosofia em seu sentido de "meta-disciplina" como o processo de producao critica do conhecimento sobre um determinado objetivo analisado. (3)

Assim, e na esteira de Michel Foucault, entendemos o processo/projeto do pensar filosofico como aquele empreendido no sentido de analisar de forma metodologicamente organizada, mas tambem de uma maneira a procurar construir estruturas de reflexao que sao distintas daquelas ja produzidas anteriormente pelo pesquisador.

Essa "atividade filosofica" atua, portanto, como uma especie de "curiosidade (...) praticada com obstinacao. Nao como aquela que procura assimilar aquilo que convem conhecer, mas aquela que nos permite nos afastar de nos mesmos". O objetivo e realizar um trabalho critico sobre pensar o proprio ato de pensar (FOUCAULT, 1984).

Esse processo critico, quando direcionado ao direito, da vazao a um modo de investigacao cientifica que potencializa operacoes intelectuais que sao caracterizadas por sua interdisciplinaridade e, exatamente em razao deste fato, produzem um amplo e importante resultado teorico. O proprio conceito de disciplina, por sua vez, esta conectado a ideia da limitacao da pesquisa, da criacao de um espaco dogmatico, que impede a construcao do saber fora dos espacos institucionalizados e submete a liberdade do pesquisador as regras profissionais. A interdisciplinaridade e, por si so, um ato de rebeldia contra a disciplina imposta pelo dogmatismo e e utilizada frequentemente por diversos intelectuais para combate-lo (LEGENDRE, 1999).

Neste momento surge o inevitavel conflito com as estruturas da formacao do pensamento juridico. A predominio historico da perspectiva "tecnica" da formacao do jurista, em suma, o dominio da transferencia da informacao juridica sem uma perspectiva critica e reflexiva, impregna diversos campos da ciencia juridica e faz com que a licao dogmatica seja o (fragil) fio condutor do dito raciocinio juridico. Trata-se de um verdadeiro obstaculo epistemologico (4) que atinge profundamente o campo da ciencia juridica. (5)

O pensar analitico que a reflexao critica sobre o proprio direito impoe, nos termos delimitados anteriormente, o pensar filosofico sobre o Direito, rompe esse obstaculo epistemologico e insere o sujeito dessa operacao num novo e amplo leque de possibilidades interrogativas, fornecendo as condicoes que consideramos ideias para se refletir de forma cientifica. (6)

O trabalho de reflexao filosofica do direito e feito obrigatoriamente de forma interdisciplinar (7) exatamente pelo fato de buscar em outros campos do conhecimento, interrogacoes que ultrapassam a proprio o direito, realizando um processo de pensamento complexo (8) que ira produzir novos questionamentos, ultrapassando assim o quadro totalizante e reduzido da dogmatica juridica. (9)

Como podemos facilmente desconfiar, a producao de reflexao critica em diversos campos do saber das ciencias socais, especialmente as aplicadas, sao relegadas a um espaco que, em que pese seu propagado prestigio, e acusado de pouco influenciar o campo da efetivacao pratica.

Por outro lado, e ainda pior, ha campos de intersecao entre o direito e a filosofia que sao pouco explorados em todo o mundo. Geralmente esses sao espacos de reflexao que estao capturados por uma disciplina que a dogmatica juridica impoe e que pouco se desenvolvem nesse sentido.

A situacao ainda e pior quando o proprio campo dogmatico da disciplina e pouco explorado, sendo composto por importantes, porem reduzidas, iniciativas intelectuais, como no caso do Direito Comparado.

O campo do direito comparado e historicamente conectado com o processo de construcao de um conhecimento que frequenta mais de um sistema juridico. Entretanto, essa caracteristica positiva, a possibilidade de identificar e compreender sistemas juridicos distintos, vem raramente acompanhadas de um procedimento de reflexao critica sobre comparacao.

Podemos dizer que aquilo que e considerado um processo de comparacao juridica e, na verdade, um arduo, e algumas vezes inspirado, trabalho de sistematizacao da observacao de uma lei estrangeira em contraposicao a um outro sistema juridico. Este trabalho, ainda assim, e quase sempre restrito a uma perspectiva dogmatica.

Essa realidade na pesquisa juridica comparativa, a contraposicao dogmatica de dois sistemas legais, vem caracterizando, ainda hoje, a maioria das colaboracoes realizadas nesse campo do conhecimento juridico.

A inclinacao, por grande parte dos autores, por uma perspectiva positivista/ortodoxa do direito comparado, identificada com o trabalho de Zweigert e Kotz (1998) e seus herdeiros, acaba prevalecendo sobre abordagens criticas como as desenvolvidas por Frankenberg (1985; 2013; 2014; 2016) (10). Ha, por outro lado, alguns importantes trabalhos sendo produzidos, tornando-se verdadeiros espacos de reflexao sobre o proprio direito comparado.

Algumas destas pesquisas vao no sentido de refletir sobre o processo de realizacao da comparacao juridica, seus desafios e sua dimensao epistemologica (SACCO, 1991; VAN HOECKE, 2004; SAMUEL, 2014). Outros constroem sua abordagem de forma altamente interdisciplinar produzindo importantes e desafiadoras colaboracoes entre o Direito e os estudos de traducao (GLANERT, 2011). Essas contribuicoes podem ser consideradas como parte de um esforco intelectual pessoal que converge de forma coletiva para o desenvolvimento de uma verdadeira teoria da comparacao juridica. (11)

De forma paralela, e em muitos momentos cooperativa, podemos destacar um aporte dotado de uma abordagem que e francamente conectada com a reflexao critica sobre seu sujeito de pesquisa e que, portanto, guarda enormes pontos de contato com a filosofia, sendo diretamente influenciado por diversas formulacoes desenvolvidas neste campo do saber.

O objetivo deste artigo e apresentar ao leitor a perspectiva culturalista do direito comparado, atraves de seu principal expoente, Pierre Legrand, aqui considerada como a primeira iniciativa de uma apropriacao sistematizada pelo campo do direto comparado de pontos de reflexoes produzidos pela filosofia continental.

O culturalismo se distingue das outras contribuicoes dentro da teoria da comparacao juridica exatamente porque pode ser considerado nao como um herdeiro da construcao intelectual dos autores que a sustentam, mas como uma reinterpretacao original dessas mesmas fundacoes filosoficas, tendo como perspectiva a comparacao juridica. Neste sentido, entendemos, esta construcao teorica pode ser categorizada como uma verdadeira filosofia da comparacao juridica.

Essa primeira e importante intersecao dentro do ambito do direito comparado, traz consigo diversas formulacoes teoricas que desafiam a maneira pela qual a comparacao juridica tem sido percebida nas ultimas decadas por diversos motivos. Dois merecem destaque.

O primeiro deles e sua profunda e bem articulada critica epistemologica as fundacoes da comparacao juridica ortodoxa. O segundo e a importante e complexa construcao de uma teoria da comparacao juridica que absorve de diversos campos do saber filosofico suas mais instigantes contribuicoes. Essa e, sobretudo, sua mais importante contribuicao.

A filosofia do direito comparado, sua interlocucao com outros campos da teoria da comparacao juridica, sua inedita contribuicao interdisciplinar e consequentes indagacoes sao, portanto, o objeto de pesquisa deste trabalho.

  1. Um raro intercambio: Filosofia e Direito Comparado

    A contribuicao dada pela filosofia no processo de producao intelectual critica do direito foi utilizada em diversos campos que trabalham com a analise da intersecao entre sistemas juridicos nacionais e internacionais. A realizacao bem-sucedida deste procedimento intelectual pode ser observada, por exemplo, quando analisamos o direito dentro da perspectiva da teoria politica (WALDRON, 2012, p. 352). (12)

    Podemos identificar tambem, em diversos momentos historicos, influentes producoes no campo da reflexao filosofica do direito internacional publico (DEL VECCHIO, 1931) e privado (BATIFFOL, 1956). Recentemente, importantes trabalhos dedicaram suas atencoes nos campos da Filosofia do Direito Internacional Publico (BESSON; TASIOULAS, 2010) e da filosofia dos direitos humanos (CRUFT; LIAO; RENZO, 2015). O direito internacional privado, por sua vez, contou recentemente com producoes interdisciplinares no campo da teoria politica (LINARELLI, 2016).

    Em um de seus ultimos escritos, a critica filosofica de Dworkin em relacao ao direito internacional publico contribui com importantes insights sobre o tema, ao abordar uma interessante perspectiva que aproxima o direito internacional publico, a teoria do direito e a teoria politica (DWORKIN, 2015).

    Por outro lado, a contribuicao do saber...

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