Situações Jurídicas Coletivas no Processo do Trabalho e o Microssistema da Tutela Coletiva
Autor | Marcelo Freire Sampaio Costa |
Ocupação do Autor | Doutor em Direito pela PUC-SP. Mestre em Direito pela UFPA |
Páginas | 37-52 |
Capítulo 2
Situações Jurídicas Coletivas no Processo do
Trabalho e o Microssistema da Tutela Coletiva
2.1. Dos direitos que ultrapassam a esfera da individualidade
A emergência de conitos que ultrapassam a esfera do indivíduo não se trata de fenômeno recente, nem muito menos
exclusivo de países ditos de economia avançada; apenas é um reexo natural da evolução e consequente massi-
cação das relações sociais(53) — consectário da chamada vida contemporânea(54).
Vejamos trecho doutrinário em que tal ideia é desenvolvida com precisão:
É que, passando a examinar os conitos emergentes, percebe-se que eles também deuem da transformação
da sociedade, de individualista que era, em sociedade de massa. E se é verdade que tais conitos são próprios da
civilização pós-industrial, desenvolvidos sobretudo em países de economia avançada, não se pode desco-
nhecer especial importância de que sua solução se reveste nos países em desenvolvimento, por signicar não
apenas a institucionalização de novas formas de participação na administração da Justiça e de gestão racional
dos interesses públicos e privados, mas por assumir também relevante papel promocional de conscientização
política. É como se a exigência de solução de novos conitos tivesse duas almas: uma, adequada às sociedades
mais avançadas; outra, mais necessária ainda aos países em desenvolvimento.(55)
O meio ambiente(56), o patrimônio histórico material e imaterial, a proteção da moralidade administrativa, as
relações de consumo, o trabalho exercido por uma coletividade e tantos outros direitos desbordantes do indivíduo são
chamados metaindividuais, coletivos em sentido lato ou transindividuais. Estão situados em uma zona limítrofe entre
as esferas do interesse público e do privado(57). Esses interesses ou direitos são instrumentalizados pelas chamadas ações
coletivas ou ações de classe (class actions).
2.2. Da classicação tripartida dos direitos ou interesses de natureza transindividual. Proteção
de situação jurídica coletiva
A discussão envolvendo expressões “direitos” ou “interesses” está ultrapassada, pois ambas deverão ser tidas como
sinônimas. A classicação tripartida(58) a ser apresentada utilizará tais palavras indistintamente.
(53) Sobre o assunto, cf. com mais profundidade ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução: Roberto Raposo. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010. p. 50.
(54) Cf. relação entre a vida contemporânea e os conitos de massa em MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição Federal de
1988. In: Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 61, p. 186, jan./mar. 1991.
(55) GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual de acordo com a Constituição de 1988, op. cit., p. 50.
(56) Em consonância com o art. 3o, I, da Lei n. 6.938/1981, da Política Nacional do Meio Ambiente, Raimundo Simão de Melo conceitua o meio
ambiente como um “conjunto de condições, leis, inuências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas”. In: MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano
material, dano moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 4. ed. São Paulo: LTr, 2010. p. 29.
(57) Nesse sentido, MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio
público e outros interesses, op. cit., p. 40.
(58) Antonio Gidi critica a classicação tripartida ora apresentada. Prefere qualicar tais interesses como meramente “direitos de grupo”. In: GIDI,
Antonio. Rumo a um Código de Processo Coletivo: a codicação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 211.
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A jurisprudência, por intermédio de decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, verdadeiro leading case (cf.
RE n. 163.231-3-SP, STF Pleno. Rel. Ministro Maurício Corrêa), corrobora, desde 1997, a posição doutrinal reconhecendo
a existência de um gênero direitos coletivos em sentido lato, do qual são espécies os difusos, coletivos em sentido estrito
e individuais homogêneos lato.
Em clássica sistematização doutrinal, haveria os direitos que seriam essencialmente coletivos (difusos e coletivos
em sentido estrito), e os “acidentalmente coletivos” (59) (individuais homogêneos).
Há novel posição doutrinal, aqui raticada, que propõe a superação dessa classicação ultrapassada em razão da
necessidade de considerar principalmente os direitos individuais homogêneos como “relevantemente coletivos pela sua
dimensão social”(60), ou seja, ao invés de se consagrar uma concepção de tutela meramente “acidental” dessa modalidade
de direitos por serem tais individuais em sua origem (tutela coletiva de direitos individuais) e apenas considerados
coletivos para a efetivação processual, conforme será apresentado oportunamente, prestigia-se fundamentalmente a
relevância social dessa modalidade, o que acabaria por atrair, pela importância dessa espécie, a respectiva tutela coletiva.
Trata-se, na verdade, não de direitos acidentalmente coletivos, mas “de direitos coletivizados pelo ordenamento
jurídico para os ns de obter a tutela jurisdicional constitucionalmente adequada e integral”(61).
Portanto, essa dicotomia essencial-acidental merece ser superada porque vem causando relevantes confusões juris-
prudenciais quanto à instrumentalização pela via jurisdicional coletiva dos direitos individuais homogêneos, assunto
a ser formado no transcorrer dos próximos capítulos.
Por m, essas três modalidades de direitos albergam a proteção das aqui chamadas “situações jurídicas coletivas”(62).
2.2.1. Dos direitos difusos
Os primeiros estudos sobre direitos transindividuais não apresentavam exatidão conceitual entre os denominados
interesses difusos e coletivos em sentido estrito. Eram tidos como equivalentes(63).
As primeiras impressões do direito brasileiro, pelo fato de deitarem raiz no direito italiano, também caminhavam
pela confusão entre direito difuso e coletivo em sentido estrito(64), rmando-se aproximações entre eles no tocante à
ausência de titularidade singular dessas modalidades de direitos. Em outros termos, ambos seriam, como de fato são
realmente, transindividuais.
O legislador brasileiro buscou afastar essa indenição ao separar os conceitos de interesses difusos e coletivos no
Código de Defesa do Consumidor. O conceito de difusos, segundo o art. 81, parágrafo único, inciso I, desse diploma
legal, são aqueles “transindividuais, de natureza, indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas
por circunstâncias de fato”.
Dessa denição legal extraem-se duas características objetivas e interligadas(65): objeto indivisível e a massa inde-
terminada de sujeitos.
É possível colher da doutrina(66) quatro peculiaridades marcantes dos direitos difusos, assim resumidos:
Indeterminação dos sujeitos: decorrem da ausência de vínculo jurídico que aglutine devidamente os sujeitos;
agregam-se ocasionalmente em virtude de situações fáticas fugidias e certas contingências, ínsitas à vida em
(59) Cf. com mais profundidade BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In: ______ Temas de direito
processual civil: 3. série. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 195-197.
(60) BARBOSA, Maria da Graça Bonança. Ação coletiva trabalhista: novas perspectivas. São Paulo: LTr, 2010. p. 160.
(61) DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op. cit., p. 76.
(62) Ibidem, p. 62.
(63) Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução: Ellen Gracie Northeet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 26. A
propósito, a doutrina italiana até a presente quadra da história não rmou distinção precisa entre tais categorias de direitos.
(64) Nesse sentido, NERY JR., Nelson; FERRAS, Antônio Augusto Mello de Camargo; MILARÉ, Édis. Ação civil pública e a tutela jurisdicional dos interesses difusos.
São Paulo: Saraiva, 1984. p. 56.
(65) BARBOSA, Maria da Graça Bonança. Op. cit., p. 139.
(66) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 67 e ss.
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