Os sistemas processuais agonizam?

AutorJacinto Nelson de Miranda Coutinho
Páginas203-218

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Ver Nota12

i. A matéria dos sistemas processuais, no âmbito do direito processual penal, nunca deixou de ser atual. Por sinal, isto diz – a atualidade – com quase todos os “institutos” dele. A disciplina, como se sabe, está em formação, em geral porque se tornou autônoma muito recentemente. Para tanto perceber basta ver que, na Itália, ela foi assim concebida pela primeira vez no RD 652, de 30 de setembro de 19383, quando começa a ganhar corpo e se espalhar pelo mundo afora.

Apesar dessa “juventude”, de tanto em tanto há quem misture as coisas e, manejando as datas – que, no tema, pode-se contar em séculos e talvez milênios –, queira tratar dos sistemas processuais penais (ou da visão que se tem deles) como algo antigo e, por isso, superado. Há, por evidente, um equívoco em conclusões do gênero.

Para tanto, precisam negar o passado e assim o fazendo atingem pessoas que não deveriam atingir, pelo menos da maneira correta. Afinal, as pessoas têm reputação e também são o que são pela reputação que têm. É por isso que, para tais pessoas, não basta que sejam o que são: de tanto em tanto precisam provar por que o são. Em suma, não basta, por exemplo, que sustentem uma determinada teoria; precisam renovar os esforços para mostrar que suas bases estão corretas, pelo menos em face daquilo que dizem os outros.

ii. Há pouco tempo, talvez três ou quatro anos, algumas pessoas – quiçá no afã de terem necessariamente novas respostas, o que é apreciável; ou para serem tão só do contra, o que é infantil – come-

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çaram a analisar a matéria dos sistemas processuais penais e, com uma crítica aguda, acabaram sugerindo sua superação, seu desmonte, quem sabe seu afastamento ou sua destruição, desde pontos de vistas que não se podia aceitar, por uma série de razões.

Entre elas – e talvez a principal – está aquela ligada ao lugar que o tema tem, ou seja, de fundamento do fundamento do direito processual penal; e, assim, nada é aceitável, desde este ponto de vista, se quem formula algo do gênero (de todo destruidor) não coloca alguma coisa no lugar. Ali, se algo não está, outra coisa estará, como é evidente. Se fosse possível (e só o é no sentido metafórico), há de se entender que ali não há vazio.

Afastadas as questões que levaram a tais críticas, parecia que o problema estava superado, mas não é bem assim. Em tempos de tentativa de reforma do CPP (como se discute na Câmara dos Deputados – PL 8045/10), sempre aparece gente que, lendo mal algumas assertivas (em geral deslocadas do contexto), acaba por voltar ao tema e propor a precitada superação. Parece ser cômodo.

Boa parte dessa gente não sabe nada ou sabe muito pouco do tema, assim como dos fundamentos dele. Mesmo assim, arriscam-se a tratar do assunto e, dessa forma, falam mal dele (o que é inaceitável) e das pessoas que o defendem.

Para refutar seus argumentos – o que é necessário – é preciso tratar, mais uma vez, do tema, retornando a ele sem, contudo, dar atenção àqueles que só querem agredir e, assim, falar mais de si mesmo do que daqueles que tentam ofender. Não precisa se saber muitas coisas dos campos psi para entender que algumas agressões gratuitas são pueris e acabam por acusar mais a quem acusa do que aquele que pretendem acusar. Deixados esses de fora, vale voltar aos argumentos da discussão e reforçar os pilares de sustentação dos sistemas processuais penais.

Os referidos argumentos partem de premissas equivocadas. Sem embargo, antes de analisá-los é preciso rapidamente fazer uma breve aproximação com a noção de sistema. Desse modo, pelo menos fica demarcado “um lugar” que pode ser o ponto de partida (embora seja de vários autores) e, com isso, a partir daí se pode pensar a matéria.

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iii. Por que se fala de sistemas? Por que se ensina o direito processual penal dentro dos sistemas? Afinal, o que é um sistema? São perguntas básicas que devem seguir de guia.

As respostas, por evidente, estão atreladas à base filosófica e essa era ligada à essência das coisas nos gregos (e aqui a verdade, como questão elementar), além da impossibilidade dela (como essência/ verdade) ser pensada como um conjunto, em face de se reclamar a unidade.

Immanuel Kant [1724-1804], já na modernidade e, portanto, depois de Descartes, vai colocar luz sobre o tema em sua arquitetônica da razão pura. Kant achou o modo de dar conta do conjunto/sistema ligando os elementos a partir de um princípio unificador ou reitor ou fundante, ao qual tratou por “ideia única”4. Já não era mais um problema de “essência” e sim de um sujeito que deveria dizer sobre o objeto (no caso o conjunto). Ele, no entanto, diz a verdade e, por isso, ela aparece na palavra que é intermediária. Isso não basta, porém. Afinal, ele não vai dizer nunca sobre o objeto todo e, assim, falseia “a verdade”.

Eis, então, por que se passa a aceitar a palavra não mais como intermediária e sim como protagonista, após o chamado linguistic turn. Por todos, nesta matéria (sobre a superação dos modelos) é preciso ver Žižek: “O problema, naturalmente, é que, numa época de crise e ruptura, a própria sabedoria empírica cética, restrita ao horizonte da forma dominante de senso comum, não pode dar respostas, e é preciso arriscar o Salto da Fé. Essa mudança é a mudança de ‘falo a verdade’ para ‘a própria verdade fala (em/através de mim)’ (como no ‘matema’ de Lacan sobre o discurso do analista, em que o agente fala na posição da verdade), até o ponto em que posso dizer, como Meister Eckhart: ‘É verdade, e a própria verdade o diz’. No nível do conhecimento positivo, é claro que nunca é possível (ter certeza de

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que se conseguiu) atingir a verdade; só se pode aproximar-se dela interminavelmente, porque a linguagem, em última análise, é sempre autorreferencial, não há como traçar uma linha definitiva de separação entre sofisma, exercícios sofísticos e a própria Verdade (é esse o problema de Platão). A aposta de Lacan aqui é aquela de Pascal: a aposta da Verdade. Mas como? Não correndo atrás da verdade ‘objetiva’, mas agarrando-se à verdade a respeito da posição da qual se fala.”5A partir da base filosófica, então, usa-se o modelo nos outros campos, entre eles o direito6.

No atual estágio (de esforço para se fazer imperar a filosofia da linguagem), ainda não se disse decisivamente sobre o assunto, se em pauta estão os sistemas processuais penais, mais ou menos como em tudo que é jurídico. tem-se convivido, por isso, com uma série de problemas dos quais se destacam aqueles que relativizam tudo; e não pela equivocidade da linguagem e sim porque os “relativistas” não querem saber da questão referente à “verdade” (não a querem enfrentar), da qual não se pode abrir mão, mormente se – como su-cede no direito – está ela umbilicalmente ligada à limitação gerada pela lei, isto é, a marca que se não deve ultrapassar, como no caso das chamadas cláusulas pétreas constitucionais.

iv. Alguns sugeriram que Kant está ultrapassado. Isto seria verdadeiro e deveria ser tomado em consideração na hora de se pensar o tema dos sistemas processuais penais?

A sugestão é equivocada.

Como seria elementar, Kant estaria ultrapassado se se tivesse algo para colocar no lugar dele, em se pensando como a base do fundamento do fundamento jurídico processual penal. Mas não há! Seria o mesmo que dizer que Copérnico (1473-1543) é velho, ou melhor, ultrapassado... porque é do século XV-XVI.

Isso não quer dizer que se não possa pensar a partir de outras matrizes e, assim, tentar dar solução aos inúmeros problemas processuais penais. Para isso se fazer, porém, é necessário alcançar a matéria inteira e não só um dos seus aspectos como, com frequência,

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pretende-se. Não raro, tais fórmulas são aparentemente bem-sucedidas e resolvem questões sérias que aparecem em relação a algum “instituto” mas, como se sabe, quando ele diz com os demais com os quais há de se relacionar (necessariamente), o castelo de cartas forjado tão bem rui. E tudo retorna à estaca zero. Bom exemplo, aqui, é a questão da imputação e sua relação com inúmeros “institutos” do processo penal. trabalhar com ela implica laborar com o que lhe está próximo como ação, qualificação jurídica, requisitos formais da denúncia e da queixa, inépcia, nulidade... até coisa julgada...

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