Sistemas penais e a nova Lei de drogas: do uso, da pena e de outras questões

AutorEugênio Pacelli de Oliveira
CargoProfessor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Páginas178-196

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No Brasil, que, possivelmente, ocupa o primeiro lugar na produção legislativa do mundo ocidental, a criação de leis, geralmente, é obra de pouca reflexão, e, quase sempre, de poucos autores. Os dois males andam juntos: a ausência de debates públicos e, assim, da participação popular - não no processo legislativo, em si, já que assim não o prevê nosso modelo constitucional – indica a menor amplitude na argumentação por ocasião da elaboração das normas e, em conseqüência, a sua diminuição (da participação) no âmbito da formação da vontade popular. Tais são os problemas mais sensíveis em relação à ausência de legitimidade de um sem número de leis nacionais, e, particularmente, em relação àquelas de maior alcance social, frutos, quase sempre, ou da solidão parlamentar, ou, o que é muito pior, da prevalência de interesses exclusivamente privados de determinadas hegemonias econômicas e/ou políticas.

Não bastasse, campeia também a fragilidade técnica na produção dos textos normativos.

Recentemente, por exemplo, e possivelmente movidos por interesses predominantemente eleitoreiros, o Legislativo e o Executivo brindaram a população feminina brasileira com a Lei 11.340/06, destinada à produção de mecanismos paraPage 179 coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, garantindo a elas as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar comunitária (art. 3º). Direito, enfim, e para além do manifesto apelo retórico da citada legislação, a um efetivo Estado Democrático de Direito, que simplesmente faça cumprir as promessas da modernidade, ignoradas desde a perspectiva liberal e social, e que parecem também irrealizáveis pelo atual modelo político de Estado, que sequer dá sinais da concretização dos direitos fundamentais garantidos em texto constitucional. A citada Lei, além de outros graves defeitos de forma e conteúdo, comete o desatino de se referir aos (inexistentes) territórios nacionais, que teriam também competência legislativa para a instituição de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 14). Ao lado, então, da relevância da matéria – violência à mulher – predomina a fragilidade das soluções legislativas. Para uma leitura em maior extensão sobre a aludida Lei, permitimo-nos remeter o leitor ao nosso Curso de Processo Penal (Del Rey, 7ª. edição, item 15.6, 2007).

Os mesmos defeitos, entretanto, não estão presentes na Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, que, revogando expressamente as Leis 6.368/76 e 10.409/2002 (art. 75, da Lei 11.343/06), passou a regular toda a matéria atinente ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas –Sisnad, destinado à prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, bem como à repressão à produção e ao seu tráfico ilícito. Há equívocos ali, como é próprio à atividade legiferante e à veiculação de políticas criminais. Mas os acertos estão em número muito superior.

Nosso propósito, aqui, não é uma abordagem sobre toda a matéria regulamentada na nova legislação, o que demandaria esforços e espaço temático bem mais amplos que um trabalho desta natureza pode apresentar. Nossas pretensões são bem mais modestas. Procuraremos levantar e discutir duas questões específicas a respeito da nova Lei de Tóxicos, a serem examinadas no contexto do atual universo jurídico brasileiro, incluindo, ainda mais especificamente, a perspectiva teórica do funcionalismo aplicado ao Direito Penal e Processual Penal. O objetivo é apresentar uma possível mediação entre as pretensões da política criminal anunciada na Lei 11.343/06 e de algumas das categorias dogmáticas do respectivo Direito, isto é, do Direito Penal e Processual Penal, que deverão conduzir a realização da política pública ali deduzida.

Trata-se de breve reflexão sobre o tratamento legislativo destinado ao usuário de drogas, sobre as sanções escolhidas para a aludida prática, e, finalmente, sobre as questões processuais penais que ostentem pertinência e relevância jurídica com a aludida matéria. O alcance limitado do trabalho é inexorável: decorre das deficiências pessoais do autor e da complexidade do tema, cujo enfrentamento, contudo, se impõe a quem se dedica às ciências penais, abrindo-se, assim, às críticas dos doutos.

Não poderia faltar, de outro lado, uma incursão, mínima que seja, sobre o tratamento reservado à liberdade provisória na Lei 11.343/06, tema sobre o qual se debruçou, de modo jamais superado, o Prof. Weber Martins Batista, em obra clássica que leva o mesmo nome (Liberdade provisória).

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Ficam registradas, portanto, nossas antecipadas escusas.

1. Sistemas penais e funcionalismo

A idéia de sistema a que aqui nos reportaremos acha-se vinculada não só à teoria do conhecimento, mas, de modo ainda mais específico, ao tradicional conceito de dogmática jurídica, ou seja, o estudo acerca da interpretação e sistematização das normas jurídicas, bem como do desenvolvimento científico de determinada ordem normativa.1 Conceito, aliás, que pode ser encontrado desde KANT, no sentido de uma unidade dos múltiplos conhecimentos sobre uma idéia, ou uma totalidade de conhecimentos ordenada sobre princípios.2 Evidentemente, a adesão ao pensamento sistemático, mesmo no âmbito de uma dogmática jurídica, não pode e nem deve excluir a abertura crítica para o reconhecimento das deficiências de semelhante metodologia para a aplicação do Direito. Parece já fora de dúvidas que não raras vezes o método de indução e de dedução, próprios à busca de soluções dentro e no sistema, nem sempre oferecerá respostas que satisfaçam as premissas valorativas de um dado sistema jurídico. Ainda teremos oportunidade de mencionar alguns exemplos.

No âmbito do Direito Penal, como se sabe, a evolução sistemática da matéria teve início ainda no século passado, podendo-se, com ROXIN3, apontar a passagem do modelo clássico, causal, para o finalismo, com amplas conseqüências na teoria do delito, arrolando-se, ainda, o sistema neoclássico, com maiores preocupações valorativas, até a chegada ao que se convencionou denominar funcionalismo, que tem em Claus ROXIN e Günter JAKOBS dois de seus mais importantes elaboradores.

Em linhas muito gerais, pode-se apontar nos aludidos sistemas penais as seguintes distinções teóricas (e práticas, a depender do ordenamento jurídico específico que se quiser examinar):

  1. no sistema clássico, atribuído a VON LISZT e BELING, a perspectiva prevalecente, do ponto de vista epistemológico (isto é, do modo de se examinar cientificamente as suas categorias e conceitos – tipicidade, ilicitude, culpabilidade etc.), o método de conhecimento da matéria assemelhava-se àquele atinente ao exame das leis naturais, ou seja, com ênfase na descoberta dos processos causais para determinação de suas conseqüências. Daí, a separação entre um injusto objetivo (tipicidade e ilicitude depuradas de elementos subjetivos e valorativos) e uma culpabilidade subjetiva, na qual o dolo e a culpa eram formas de sua manifestação. E, por isso, também, o estudo do resultado do crime era estruturado a partir da relação de causalidade (causa e efeito), assentado sobre a base de um conceito ontológico (daquilo que é) da ação (causal, portanto), existente previamente ao Direito, e assim, subordinante deste;

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  2. no sistema neoclássico, que teve em MEZGER o seu expoente, e o seu florescimento, sobretudo, a partir do reconhecimento da importância dos elementos subjetivos do tipo (a subtração de coisa alheia – dado objetivo -, sem a finalidade de assenhoreamento – elemento subjetivo - como exemplifica ROXIN4, seria irrelevante para a definição de furto), teve como característica principal o deslocamento do eixo metodológico do sistema anterior, clássico, passando de uma concepção naturalista, na qual o injusto permanecia neutro, para uma abordagem valorativa. Com isso, a ilicitude, mais que uma contrariedade de um fato a uma norma de direito, deveria ser também a expressão de uma lesividade social da conduta. Trata-se, com efeito, de alteração inserida ainda no contexto do positivismo, enquanto método e explicação do fenômeno do direito, com o reconhecimento de que a ciência jurídica, como ciência do espírito e não ciência da natureza, haveria de se construir segundo finalidades desde logo declaradas, e que deveriam ocupar a base do sistema. Do mesmo modo, na culpabilidade, antes entendida unicamente como o aspecto subjetivo do delito, reconheceu--se a presença de algumas exceções, de natureza objetiva, de que era exemplo a culpa inconsciente. Por fim, a culpabilidade, enriquecida com a ênfase dada ao papel do sujeito na filosofia neokantiana, passa a expressar também um juízo de reprovabilidade em face do autor do fato;

  3. no sistema finalista, ainda predominante na doutrina brasileira, a mudança é, então, radical. Com WELZEL à frente, rechaça-se o conceito e a estrutura meramente causal da ação até então existente, para, a partir da compreensão (epistemológica) de que as ciências, de modo geral, não poderiam desconsiderar em suas formulações a realidade do ser do homem, chegar-se a uma nova definição da ação penalmente relevante: o homem, conhecedor das coisas e do meio em que vive e, assim, dos resultados que produz no mundo físico, se conduz por meio de antecipações dos cursos causais, de tal maneira que sua ação é sempre uma ação orientada finalisticamente. É dizer: o homem age...

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