O sistema normativo da companhia

AutorLuiz Machado Fracarolli
Páginas25-55

Page 25

1. Sistema normativo

1.1 O sistema legal regente da sociedade anónima percorreu, em especial ao longo dos dois últimos séculos, caminho particular, começando como conjunto de normas de caráter predominantemente público - vejam-se os arts. 295 a 299, do Código Comercial de 1850, que a concebiam como entidade privada destinada a desenvolver atividade económica sob permanente fiscalização da autoridade pública, a começar pela necessidade de autorização do Poder Executivo para constituir-se (art. 295)1 -, até a Lei n. 6.404, de 15.12.1976 (LSA), com sua redação atual, que não tem dúvida em desenhá-la, em sua forma básica, como mecanismo jurídico voltado à exploração económica por particulares.

1.2 Desnecessário advertir que, não obstante essa seja a concepção que reveste a anónima, tem ela sido utilizada para a dar forma, também, a empresas públicas, ou estatais, à conveniência da Administração. A rigor, em nossos dias, a companhia sujeita-se a regras de autorização prévia somente nos casos em que seu objeto seja uma daquelas atividades que a lei define como sensíveis para a economia, a exemplo da financeira e da securitária, ou vinculada à defesa do próprio Estado nacional e suas riquezas, como a pesquisa e lavra de minerais, entre outras.2 Fica claro, no entanto, nestas hipóteses, que a autorização administrativa prévia não se deve ao modelo da sociedade por ações escolhido pelo empresário, mas pela atividade a ser desenvolvida. Isto é, se fosse outra a forma de organização societária, ainda assim o Poder Pú-

Page 26

blico deveria emitir sua autorização, previamente à instalação da empresa dedicada a um dos tipos de exploração económica que a lei reputa necessitar de maior rigor fisca-lizatório, desde sua fundação.

1.3 A companhia surgiu no início do século XVII como privilégio concedido pelo Estado mediante lei especial e até o fim do século XVIII era instituto do direito público. A primeira lei a discipliná-lo como negócio jurídico de direito privado foi o Código de Comércio francês de 1807, que regulou a sociedade anónima como um dos tipos de sociedade comercial, ao lado das em nome coletivo e em comandita, admitiu a liberdade de constituição das comanditas em ações, mas subordinou a constituição da sociedade anónima à autorização administrativa.

1.4 O Código de Comércio francês regulou, em sete artigos, a divisão do capital em ações, a emissão de ações ao portador, a transferência de ações nominativas, a responsabilidade limitada dos acionistas, a nomeação e responsabilidade dos administradores e a forma e publicidade dos atos constitutivos, que não permitiam dúvida sobre a natureza contratual do estatuto social da sociedade anónima, como atestou J. M. Pardessus,3 ao afirmar que "os estatutos aprovados pelo Governo passam a ser o contrato entre as partes e as obrigam, mas o caráter da autorização não modifica sua natureza de contrato, e eles não podem impor obrigações particulares a terceiros que nele não intervieram".

1.5 Após o Código de Comércio, a disciplina legal das companhias desehvol-veu-se na França com base na experiência dos órgãos administrativos que autorizavam a constituição das sociedades anónimas e em resposta aos riscos e abusos observados na prática das sociedades em comandita por ações, ocorridos principalmente no período referido como o da "febre das coman-ditas" (entre 1820 e 1840). Uma Lei de 1856 aplicou a esse tipo de sociedade normas que foram reproduzidas e complementadas na Lei de 1867 a qual, ao instituir a liberdade da constituição da companhia, dispôs sobre sua estrutura básica e influenciou a legislação dos demais países da Europa e da América Latina.

1.6 O regime legal da companhia desenvolveu-se, nos séculos XIX e XX, mediante acréscimo de normas que, além de disciplinarem as relações entre os sócios, regulavam a estrutura e funcionamento da organização nascida do contrato, a circulação dos títulos por ela emitidos e visavam a proteger terceiros que com ela mantinham relações, especialmente credores e investidores do mercado. Esse regime compreende grande número def normas imperativas sobre diversos aspectos da constituição e do funcionamento das companhias, incompatíveis com ó conceito doutrinário de contrato que então prevalecia, o que explica a opinião de autores que, a partir do fim do século passado, negaram a natureza contratual da companhia.

1.7 O conceito de contrato foi formado a partir dos negócios bilaterais de prestação, que organizam sistemas sociais de troca, em regra com poucas pessoas e de curta duração. Daí a análise do contrato concentrar-se tradicionalmente no seu aspecto de fato jurígeno (como causa do nascimento das relações jurídicas que organizam um sistema social concreto), com menor atenção ao efeito desse fato, que é a existência (nos planos social e cultural) de um sistema social organizado por sistema jurídico. Esse enfoque explica definição do contrato como acordo de vontade de partes que têm interesses opostos4 - acordo que consiste no ajustamento de manifestações de vontade que passam a ter o mesmo ob-jeto, formando-se por "fusão de vontades", um consentimento, ou concordância.

Page 27

1.8 Esse conceito abrange as sociedades de pessoas com pequeno número de sócios, nas quais o processo de formação de consenso é semelhante ao dos contratos bilaterais, mas não se ajusta à constituição das sociedades por ações mediante assinatura de boletim de subscrição e deliberação dos subscritores em assembleia geral, quando as declarações de vontade se sucedem no tempo e cada subscritor pode desconhecer a maioria dos demais.

1.9 Desde logo, no entanto, importa observar que o simples sistema normativo das anónimas, de per si, obrigatoriamente já incorpora em. sua estrutura normas que ultrapassam o simples acordo de vontades entre os particulares - normas alteráveis pelos sócios mediante manifestação concorde em tal ou qual sentido -, e que se podem considerar de ordem pública, não derrogáveis pelos estatutos ou através de acordos parassociais, posto que de natureza cogente e obrigatória.

1.10 Este aparente paradoxo constitui desafio complexo para o estudioso e para o doutrinador. Afinal, trata-se de um modelo de sociedade destinado a possibilitar aos particulares ampla flexibilidade negociai -venda de ativos, por exemplo, total ou parcial, mediante alienação de ações, sem obrigatoriedade de formas contratuais complexas, muitas vezes notariais -, e o empresário que o adota se vê obrigado a cumprir regras de ordem pública em sua própria estruturação interna. Matéria de não pouca monta constitui a perquirição do ca-ráter de tais ou quais disposições constantes da lei, de presença obrigatória nos esta-tutos, a fim de esclarecer a natureza jurídica dessas disposições, e do próprio contrato de constituição da sociedade anónima em que elas se inserem.

1.11 Desnecessário enfatizar que esta situação ocorre há tempo, não só no Brasil, mas em todos, ou quase todos, os países que consagram forma da companhia semelhante à de nossa legislação do anonimato. Merece citação, por obviamente pertinente, o estudo sobre esta matéria efetuado pela Prof. Sophie Schiller,5 a qual, depois de longa referência à publicização das formas societárias privadas, tanto no direito civil como no direito comercial, afirma: "Les méthodes suivies par les deux matières sont en particulier três différentes, les règles étant définies beaucoup plus rigoureuse-ment en droit civil qu'en droit commercial. Cette faible précision des règles de droit commercial empêchait de les qualifier d'impératives. Cependant les règles impé-ratives se sont vite multipliées en matière commerciale. Depuis le début du siècle, Ia doctrine suggère un rapprochement du droit civil e du droit commercial, car les parti -cularités sociologiques que les justifiaient se seraient estompées. L'étude comparée de Fimportance de Ia présence des règles d'or-dre public dans ces deux matières permettra d'effectuer une mesure de Ia realité de ce rapprochement".

E, a seguir, a autora francesa apresenta uma tabulação do percentual de normas de ordem pública que encontrou nas normas de direito societário inseridas no Código Civil francês:

[VER PDF ADJUNTO]

Page 28

[VER PDF ADJUNTO]

Em seguida, a autora apresenta outras duas tabelas, tendo em vista as diferenças entre as regras do direito ordinário e as regras decorrentes de legislação extravagante, observando que o número das disposições de ordem pública parece aumentar à medida que esta legislação se torna mais específica para cada caso que tem em vista regular. E, por último, apresenta duas novas tabelas, baseadas na distinção das diferentes etapas da vida da sociedade, em especial sua criação, sua gestão e sua liquidação, variando o percentual de normas de ordem pública, conforme se tenha em vista uma ou outra etapa:

[VER PDF ADJUNTO]

1.12 Não obstante o estudo acima tenha sido feito sobre os textos legais franceses referidos, pouca dúvida pode restar de que, em nosso direito, situação semelhante está a ocorrer, dado que o fenómeno da publicização do direito privado tem abran-gência universal, consequência do cada vez mais intenso inter-relacionamento entre os ramos do direito, que torna difícil, frequentemente impossível, marcar as fronteiras entre o público e o privado. Quer se tenha em vista a velocidade com que as formas comerciais se difundem e se alteram, em nível global, quer se tenha em vista a sempre invocada necessidade de melhor proteger terceiros, no que tange às garantias do pactuado, o fato é que a invasão...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT