A organização sindical no microssistema jurídico dos portos organizados do Brasil

AutorFabiano Holz Beserra
CargoMestre em Direito pela PUCRS
Páginas230-246

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Introdução

O presente trabalho parte da premissa de que o sistema portuário brasileiro constitui um microssistema jurídico. Como consequência, o estudo dos seus institutos jurídicos deve observar, em primeiro lugar, as particularidades da disciplina específica da matéria — sobremaneira os princípios e a lógica interna do sistema —, para, em seguida, buscar enquadramento no contexto normativo mais amplo.

Além disso, para que seja possível efetivamente compreender a organização sindical no microssistema portuário, segmento em constante transformação desde a edição da Lei de Modernização dos Portos (Lei n. 8.630/93), é imprescindível o conhecimento do seu processo histórico e da realidade das suas relações de trabalho.

1. Considerações sobre microssistemas jurídicos

A codificação do direito é um produto típico do século XIX. Trata-se da expressão de um ideal que, em última análise, visava incorporar ao Direito as conquistas (e a credibilidade) obtidas no campo

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das ciências naturais, conferindo-lhe a certeza necessária para a obtenção do status científico. É a influência do racionalismo, componente de movimento mais amplo denominado iluminismo1.

A reunião de todo um ramo do direito — como no exemplo do código civil napoleônico —, em um documento único, de forma a garantir-lhe a racionalidade, a sistematicidade e a universalidade inerentes ao pensamento científico, era a proposta central da codificação.

Além disso, essa providência atendia aos anseios da classe burguesa em ascensão. Todos os destinatários da lei poderiam, então, realizar seus negócios sabendo de antemão os efeitos jurídicos que seriam produzidos, com toda a previsibilidade necessária ao desenvolvimento do capitalismo florescente, diminuindo a interferência de fatores aleatórios. Nesse contexto, a tarefa do magistrado resumir-se-ia à conhecida função de “boca da lei”2.

A falência desse ideal de apreender todo um complexo segmento da realidade em um único documento, assim como a tomada de consciência da impossibilidade de compartimentalização do conhecimento (interdisciplinaridade), levaram os legisladores não exatamente à extinção da ideia de codificação, mas à sua análise crítica e ao reconhecimento de suas limitações. Paralelamente, ganha prestígio a atividade do intérprete, a qual, inicialmente evitada, passa a ser guiada por princípios jurídicos. Ao invés de negar a atividade hermenêutica, busca-se pautá-la por balizas racionais, fixando-se critérios dentro dos quais a argumentação é considerada válida.

Passou-se, então, à elaboração de diplomas legislativos denominados de microssistemas jurídicos, com princípios próprios, destinados ao regramento multidisciplinar de segmentos específicos do

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Direito3. Por sua especificidade, as normas (princípios e regras) neles previstas afastam a incidência das normas gerais estabelecidas em códigos e consolidações normativas4.

É nesse mesmo contexto que deve ser examinada a matéria portuária, cuja disciplina se extrai, em especial, do exame conjunto da Convenção n. 137 da OIT5, da Lei de Modernização dos Portos (Lei n. 8.630/93) e da Lei n. 9.719/986.

Do exame desse complexo normativo, despontam algumas ideias-chave e diretrizes (digamos assim, para evitar a expressão “princípios”), como as da negociação coletiva, da proteção ao trabalhador portuário e do propósito modernizador.

A negociação coletiva é referida em uma série de dispositivos, sendo que grande parte dos marcos fundamentais da relação capital-trabalho se encontra na dependência dela. Daí decorre a importância de sindicatos fortes, não pulverizados e efetivamente representativos dos atores sociais.

Por seu turno, a proteção ao trabalhador portuário encontra sua fórmula-síntese no art. 2º da Convenção n. 137 da OIT, segundo o qual “1. Incumbe à política nacional estimular todos os setores interessados para que assegurem aos portuários, na medida do possível, um emprego permanente ou regular. 2. Em todo caso, um mínimo de períodos de emprego ou um mínimo de renda deve ser assegurado aos portuários, sendo que sua extensão e natureza dependerão da situação econômica e social do país ou do porto de que se tratar”, ganhando relevo, ainda, na “reserva de mercado” conferida ao

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trabalhador portuário, na medida em que é vedada a utilização de mão-de-obra de fora do sistema.

Finalmente, o caráter modernizador, expressão a ser entendida no contexto neoliberal em que foi editada a Lei n. 8.630/93, decorre da extinção do monopólio estatal, consubstanciado na abertura da operação portuária à iniciativa privada, assim como da busca de competitividade no cenário internacional. Esse propósito, porém, é condicionado pelo princípio protetivo antes referido, valendo lembrar que vivemos num Estado Social de Direito, no qual é assegurada “proteção em face da automação, na forma da lei” (CRFB, art. 7º, inc.
XXVII)7.

2. Modificações introduzidas pela lei de modernização dos portos

Como nossa investigação é focada na organização sindical, o presente tópico será direcionado às implicações trazidas pela Lei n.
8.630/93 nos segmentos econômico e profissional que atuam nos portos.

Antes da edição do referido diploma legal, havia uma dicotomia nas atividades portuárias. O trabalho de movimentação de mercadorias em terra (atividade de capatazia) era monopólio estatal. O serviço era realizado pela administração do porto (companhias docas). Por seu turno, a movimentação de cargas a bordo das embarcações era feita pelas denominadas entidades estivadoras, empresas privadas que atuavam no porto8.

A Lei n. 8.630/93 acabou com essa separação, unificando todas as atividades de movimentação de mercadorias (e “de passageiros”) — quer a bordo ou em terra — no conceito de operação portuária9,

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cuja execução foi atribuída integralmente às empresas denominadas operadoras portuárias.

Houve, portanto, com o fim do monopólio estatal da movimentação de cargas à beira do cais, a privatização integral das operações portuárias, que passaram a ser exploradas por empresas pré-qualificadas junto à administração do porto organizado, denominadas operadores portuários10. A entidade estatal responsável pela administração portuária também é pré-qualificada como operadora11, podendo exercer operações portuárias, caso seja essa a opção política governamental (e não apenas a de administrar o porto).

Em síntese, atualmente, temos uma única categoria patronal, constituída pelos operadores portuários, matéria que será enfrentada com maior detalhamento logo a seguir.

Por outro lado, a referida dicotomia histórica também se refletia no trabalho realizado no porto. A atividade de capatazia era executada, em regra, pelos servidores públicos vinculados à administração do porto. Quando a demanda não era integralmente atendida por estes, o trabalho era realizado por trabalhadores avulsos associados aos sindicatos dos trabalhadores no comércio armazenador, denominados “arrumadores”12.

Se para a atividade de capatazia os avulsos eram uma força supletiva, para as demais, ao contrário, o trabalho avulso era a regra, sendo sua gestão realizada pelos respectivos sindicatos13.

Depois da Lei de Modernização dos Portos, o sindicato não tem mais permissão para participar da gestão de mão-de-obra avulsa, que passou a ser atribuída ao OGMO14, incumbindo-lhe apenas a

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defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas (art. 8º, inc. III, da CRFB).

De outra parte, o trabalho no porto organizado só pode ser desempenhado (com exclusividade) por duas modalidades de trabalhadores: o avulso e o contratado com vínculo de emprego15.

Os trabalhadores portuários avulsos (TPAs) inscritos no sistema dividem-se em registrados e cadastrados. Os primeiros concorrem, na forma de rodízio, à escalação para as oportunidades de trabalho portuário (“fainas”) com prioridade, enquanto os últimos constituem uma força supletiva e somente concorrem (também na forma de rodízio) às vagas disponíveis em caso de insuficiência de registrados.

Os trabalhadores contratados com vínculo de emprego, por seu turno, devem ser recrutados entre os avulsos inscritos no OGMO (registrados e cadastrados)16.

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Feito esse panorama das relações de trabalho no sistema portuário brasileiro, podemos passar ao exame da organização sindical.

3. Organização sindical dos operadores portuários

O Brasil não adota o modelo de liberdade sindical previsto na Convenção n. 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nosso sistema, nos termos do art. 8º, II, da Constituição de 1988, é organizado por categorias e limitado pela imposição de unicidade, não sendo permitida a existência de mais de uma entidade sindical

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representativa na mesma base territorial, que não pode ser inferior a um município.

Os critérios para o enquadramento sindical por categoria estão estabelecidos nos arts. 511, 570 e 571 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)17, os quais foram, conforme decidido pelo STF em diversas oportunidades, recepcionados pela Constituição18.

Segundo Gustavo Filipe Barbosa Garcia, o “sistema de categorias é uma evidente forma de restringir a liberdade sindical, com origem no regime corporativista, impossibilitando que os interessados se reúnam em formas distintas, em outros grupos, com alcance diver-so, como os sindicatos por profissões, ou mesmo os sindicatos dos empregados de certas empresas”19.

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De qualquer sorte, o exame dos citados dispositivos celetistas revela que os sindicatos tanto podem ser formados por uma categoria (vínculo social básico de solidariedade) definida pelo exercício de uma...

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