Sigilo fiscal e a sua transferência ao ministério público: abordagem da jurisprudência dominante no STF e no STJ

AutorOswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho
CargoProfessor de Direito Tributário do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília
Páginas158-187

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1. Introdução

O objetivo deste artigo é contrastar, com a hodierna jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a interpretação, que vem ganhando corpo, no âmbito de alguns órgãos do Ministério Público e da Administração pública, no sentido de que, nos termos do art. 198, § P, inc. II, e § 2o, do Código Tributário Nacional, com a redação dada pela Lei Complementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001, e do art. 8o, inc. VIII, e § 2o, da Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 2003, não haveria que se opor reserva de sigilo fiscal ao Ministério Público, reconhecendo-se a constitucionalidade do acesso direto dos órgãos do Parquet a dados fiscais dos contribuintes, amparados pelo sigilo fiscal.

Sempre guiado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores pátrios, pretende-mos analisar as seguintes questões: pode o Ministério Público Federal ter acesso, direto, sem a prévia intervenção do Poder Judiciário, ao sigilo fiscal? Essa faculdade alcança, também, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Eleitoral, em suma, os outros ramos do Ministério Público da União? E, mais, abrange inclusive, o Ministério Público junto aos Tribunais de Contas e o Ministério Público dos Estados?

2. Impossibilidade de, em regra, o Ministério Público da União, do Distrito Federal e Território ter acesso ao sigilo fiscal, sem prévia intermediação do Poder Judiciário

Em alguns pareceres e notas técnicas, que me deparei, cheguei a observar a valorização, e com razão, da presunção de constitucionalidade das leis, e a concepção

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de que o entendimento do STF que afasta a possibilidade de o Ministério Público requisitar diretamente dados bancários protegidos pelo sigilo, não se aplicaria ao sigilo fiscal, isto com a fundamentação de que os sigilos bancário e fiscal são institutos diferentes. Assim, não teria sido afastada a possibilidade de requisição de dados fiscais, conquanto o decidido no MS 21.729-DF cingiu-se a análise, pelo Pretório Excelso, de requisições de dados bancários.

Pois bem, a Constituição Federal, de 1988, estipula, no seu art. 5o, incs. X e XII, como direitos fundamentais, a inviolabilidade da intimidade, vida privada e, não de dados informatizados em si, mas da comunicação restringida de dados (liberdade de negação da comunicação).1

A respeito da interpretação do inc. X, do art. 5o, da Constituição brasileira, e a diferenciação de intimidade e vida privada, já escrevi:

"Direito à intimidade é o direito de estar sozinho. Intimidade é aquilo que não se compartilha com ninguém, são os pensamentos mais íntimos e secretos, os sentimentos, desejos e as tendências, às vezes, inconfessáveis.

"Direito à vida privada é o direito que tem a pessoa de só compartilhar algo a um grupo restrito de pessoas mais íntimas, cônjuge, familiares, alguns poucos amigos ou profissionais da inteira confiança do indivíduo que faz a discrição (sacerdotes, psicólogos, advogados)."2

Outrossim, transcreva-se o que já dissertei sobre a exegese do inc. XII, do art. 5o, da Constituição da República, ou seja, sobre a inviolabilidade da comunicação de dados:

"No mesmo diapasão, leciona Tércio Sampaio Ferraz Júnior, no artigo 'Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites á função fiscalizadora do Estado', publicado em Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas (São Paulo, n. 1, pp. 145-146, 1992):

"'O sigilo, no inc. XII do art. 5o, está referido à comunicação, no interesse da defesa da privacidade. Isto é feito, no texto, em dois blocos: a Constituição fala em sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas. Note-se, para a caracterização dos blocos, que a conjunção e une correspondência com telegrafia, segue-se uma vírgula e depois, a conjunção de dados com comunicações telefônicas. Há uma simetria nos dois blocos. Obviamente o que se regula é comunicação por correspondência e telegrafia, comunicação de dados e telefônica. O que fere a liberdade de omitir pensamento é, pois, entrar na comunicação alheia, fazendo com que o que devia ficar entre sujeitos que se comunicam privadamente passe ilegitimamente ao domínio de um terceiro. Se alguém elabora para si um cadastro sobre certas pessoas, com informações marcadas por avaliações negativas, e o torna público, poderá estar cometendo difamação, mas não quebra sigilo de dados. Se estes dados, armazenados eletronicamente, são transmitidos, privadamente, a um parceiro, em relações mercadológicas, para defesa do mercado, também não estará havendo quebra de sigilo. Mas se alguém entra nesta transmissão, como um terceiro que nada tem a ver com a relação comunicativa, ou por ato próprio ou porque uma das partes lhe cede o acesso indevidamente, estará violado o sigilo de dados.'

"Em verdade, o Excelso Supremo Tribunal Federal tem afirmado, em várias

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ocasiões, que a inviolabilidade referida do inc. XII do art. 5o da Carta Magna refere-se à intromissão ou interceptação da comunicação de dados e não ao registro de dados.

"Assim, no inc. XII do art. 5° da Lei Fundamental, o que se protege é a comunicação de dados, é a interceptação indevida da comunicação de dados, por quem não tem justo motivo de ter acesso aos mesmos, não os dados em si mesmos, o que tornaria impossível qualquer investigação administrativa, fosse qual fosse, e a própria declaração dos contribuintes para fins do imposto de renda.

"Nesse diapasão, merece destaque o magistério do Ministro Nelson Jobim, em voto proferido no julgamento do RE n. 219.780-PE:

“‘Passa-se, aqui, que o inc. XII não está tornando inviolável o dado da correspondência, da comunicação, do telegrama. Ele está proibindo a interceptação da comunicação dos dados, não dos resultados. Essa é a razão pela qual a única interceptação que se permite é a telefônica, pois é a única a não deixar vestígios, ao passo que nas comunicações por correspondência telegráfica e de dados é proibida a interceptação porque os dados remanescem; eles não são rigorosamente sigilosos, dependem da interpretação infraconstitucional para poderem ser abertos. O que é vedado de forma absoluta é a interceptação da comunicação da correspondência, do telegrama. Por que a Constituição permitiu a interceptação da Comunicação telefônica? Para manter os dados, já que é a única em que, esgotando-se a comunicação, desaparecem os dados. Nas demais, não se permite porque os dados remanescem, ficam no computador, nas correspondências etc.’ (RE n. 219.780-PE, Rel. Ministro Carlos Velloso, DJ 10.9.1999, p. 23).

"Destarte, a inviolabilidade é a intromissão no momento da comunicação de dados informáticos, e não os dados em si mesmos, pois, em caso contrário, o contribuinte, com base na interpretação equivo-cada do inc. XII, do art. 5°, da Constituição da República, poderia até deixar de cumprir a obrigação de entregar a sua declaração para fins do imposto de renda, alegando que a mesma se encontra em formato eletrônico, e, por isso, ele estaria protegido pelo sigilo de dado, pelo direito à privacidade!"3

Assim, os institutos do sigilo bancário e do sigilo fiscal, embora não tenham sido expressamente nomeados, pela Constituição, como direitos e garantias individuais, são tidos, pela jurisprudência pátria, como amparados, por igual forma, pelas mesmas razões, pela Constituição brasileira, como corolário da inviolabilidade vida privada e da comunicação de dados.

De modo que só se pode entender que os sigilos bancário e fiscal são espécies do gênero right ofprivacy - direito à privacidade.

Por outro lado, além da norma do inc. XXXIII, do art. 5o, da Constituição brasileira,4 os sigilos bancário e fiscal tem relação com o preceito do § 1o, do art. 145, da mesma Carta Política, que, dispõe que, especialmente, ou seja, esta palavra que pode significar especificamente (não exclusivamente), ou principalmente, para conferir efetividade aos objetivos da pes-soalidade de alguns impostos, da igualdade no tratamento tributário e da capacidade contributiva, faculta à Administração tributária, identificar, respeitados os direitos individuais, isto é conservando a privacidade e o sigilo dos dados recebidos, e nos termos da lei razoável, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

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No Mandado de Segurança n. 21.729-4-DF (DJ 19.10.2001), impetrado pelo Banco do Brasil S/A em face do Procura-dor-Geral da República, por ter o referido órgão do Parquet solicitado diretamente àquele banco, sem a intermediação do Poder Judiciário, informações sobre concessão de empréstimos, subsidiados pelo Tesouro Nacional, com base em plano de governo, a empresas do setor sucroalcooleiro, julgamento ocorrido em 5 de outubro de 1995, decidiu a nossa Corte Constitucional, em sessão plenária, tendo em vista o art. 129, incs. VI e VIII, da Constituição Federal,5 o art. 38 da Lei n. 4.595/1964, e o art. 8o, da Lei Complementar n. 75/1993,6 que não cabia ao Banco do Brasil negar, ao Ministério Público, informações sobre nomes de subsidiados pelo erário federal, sob invocação do sigilo bancário, em se tratando de requisição de informações e documentos para instruir procedimento administrativo instaurado em defesa do patrimônio público, prevalecendo, na espécie, o princípio constitucional do art. 37, caput, da publicidade da Administração pública, em confronto com a proclamada reserva de jurisdição em relação à relativização dos direitos previstos nos incs. X e XII, do art. 5o, da Carta Política.

No referido julgamento, o Supremo Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, e por...

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