Violência sexual contra a criança e o adolescente no marco da precarização das relações de trabalho

AutorGuilherme Guimarães Feliciano
Páginas72-107

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1. Introdução Violência e relações de trabalho

Já tive ocasião de explorar o tema da violência nas relações de trabalho em obra própria, com ênfase no escopo de sistematização e compreensão dinâmico-panorâmica do problema1. Neste artigo, circunscrevo-me à questão da exploração sexual da pessoa em formação (modalidade de exploração compreendida entre as piores formas de trabalho infantil, segundo o art. 3º, b, da Convenção n. 182 da OIT). Nada obstante, sendo por si evidentes a gravidade e a virulência da exploração sexual infanto-juvenil — violência malsã perpetrada contra as atuais e as futuras gerações (logo, de caráter intergeracional), calhará bem recordar alguns elementos que esclarecem a etiologia da violência. Faço-o agora, à guisa de introdução.

Alhures, definimos violência como toda fortoda forma de sujeição antijurídica que ma de prepredispõe a vítima ao sofrimento físico, psíquico ou moral. E pontuamos, com Hannah Arendt2, que vários “mitos” sobre a violência soçobraram no limiar do século XXI. Pensava-se que a violência era biologicamente inerente ao ser humano; que o sentido de violência era a causa(= sujeito eficiente) de mazelas sociais como o armamentismo, a criminalidade, o belicismo e a exploração do homem pelo homem; e que a violência era necessariamente um comportamento irracional, impensado e despregado de fins, a exemplo da ira. Estaria mais próxima das feras do que dos homens.

Mirando o mais notório e desconsertante palco de violências do século XX — o Holocausto judeu —, Arendt desmistificou tais crenças, convencendo que, ao revés, a violência não é natural ou biológica (e contrapondo, aqui, nomes como Nietzche e Bergson, que baseavam a tese da “naturalidade” da violência na necessidade interna de crescer);

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antes, é um aspecto cultural das sociedades (e, para o tipo de violência que hoje se descortina nas cidades e nos campos, um aspecto muito particular da sociedade pós-industrial). A isso se denominou a desnaturalização da violência, no sentido de que o comportamento violento não pode alçar foros de “normalidade” social, tornando-se objeto de contemplação impassível numa espécie de “amortecimento coletivo” que empalidece as reações sociais contrárias e fortalece a dominação violenta. Ainda para Arendt, a violência não seria sujeito ou fim de qualquer coisa; seria, sempre, instrumento para se alcançar determinados fins. A violência dramatiza queixas, mas não produz causas — e a isso se chamou a “despersonalização da violência”. A violência não seria, enfim, irracional ou bestial: possuiria, ao revés, uma racionalidade própria, que ora repousa em fatores econômicos (quando, e. g., a violência se revela como instrumento de mobilidade social em sociedades que padecem de desigualdades sociorregionais e de má distribuição da renda, ou ainda como instrumento de otimização da acumulação capitalista3), ora em fatores culturais (quando a violência é percebida como fator de afirmação social, sem qualquer vinculação com bens da vida — como, por exemplo, na violência das torcidas uniformizadas, das gangues juvenis ou na própria submissão sexual da mulher). Nesse sentido, a racionalidade da violência está na sua eficácia para a consecução dos fins a que se destina4.

Já no marco das relações de trabalho, a violência assume uma fisionomia mais ou menos característica, com três elementos estatísticos que, reunidos, permitem particularizá-la em relação às formas de violência perpetradas nas demais esferas de sociabilidade humana. Vejamos.

[1] A violência no trabalho baseia-se em relações de poder que frequentemente envolvem e polarizam integrados e marginalizados (outrora ditos, no jargão marxista, “proletários”5). Isso explica por que os mais elevados índices de trabalho infanto-

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-juvenil proibido se concentram nas regiões socioeconômicas de maior carestia ou desigualdade6. E diga-se, bem a propósito, que essas mesmas microrrelações de poder também oportunizam, em larga medida, uma outra forma de violência contra a criança, a pedofilia7.

[2] A violência no trabalho pressupõe amiúde um modo de apropriação do trabalho alheio estribado pelo desvalor subjetivo da ação juridicamente esperada (i. e., da ação de atitude jurídica)8. Isso significa dizer que, nos contextos de violência laboral, oprimir e abusar são atitudes razoáveis aos olhos do opressor, notadamente quando se processam sob a égide de acordos ou convenções leoninas e utilitaristas, que conduzem à reificação (= “tornar coisa”) do ser humano trabalhador. Tenha-se em conta, à guisa de ilustração, os inúmeros casos de escravidão contemporânea que se descobrem todo ano no Brasil, nas zonas rurais e nos grandes centros: ali, não há exatamente trabalho forçado (ut art. 2º da Convenção n. 29 da OIT), porque os trabalhadores geralmente aceitam — e, mais que isso, desejam — trabalhar sob condições degradantes ou análogas à de escravo9. Na percepção subjetiva desses trabalhadores, a ação de atitude jurídica — que implica a formalização do contrato de trabalho, o registro em CTPS, os recolhimentos previdenciários, a quitação dos direitos trabalhistas, etc. (ao contrário dos arts. 149, 203, 297, § 4º e 337-A, III, do Código Penal, entre outros) — é desvaliosa, porque traduz desemprego e repulsa à mão de

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obra barata (a se observar a legislação, o empresário preferirá sempre contratar brasileiros). Evidentemente, esse modo de ver o mundo facilita a exploração e a violência laboral, já que a própria vítima é esquiva à ação do Estado. Por vezes, o desvalor subjetivo da ação de atitude jurídica está impregnado no próprio substrato cultural de certos grupos sociais; é o que se dá, no caso do trabalho infantil, com os curumins e o convencimento das tribos de que as atividades laboriosas (pesca, caça, lavoura) são essenciais para torná-lo um adulto pleno em suas potencialidades10.

[3] A violência no trabalho campeia mais vigorosamente nas áreas de ausência do Estado (e essa talvez seja, das três características, a mais comum, vez que geralmente encontradiça nas outras formas de violência11). No mundo do trabalho, porém, a ausência do Estado aprofunda a segunda característica (desvalor subjetivo da ação de atitude jurídica), combinando indulgência, leniência e conivência com a mais recorrente força-motriz da criminalidade: a impunidade. Aqui, volverei às lições de Hannah Arendt para assertar que a violência, como modo “institucionalizado” de domínio social (a exemplo do que se passa, na cidade do Rio de Janeiro, com as ações de traficantes e de milícias), contrapõe-se sociologicamente aos mecanismos públicos de poder. Onde a violência domina absolutamente, o poder (público) está ausente.

Compreendida, assim, a etiologia da violência (e, particularmente, da violência nas relações de trabalho), resta sinalizar soluções, num primeiro esboço de ideias.

Dentro de uma perspectiva de ordem, o equacionamento do problema passa pela restauração e pela ampliação da eficácia das leis do Estado (mais do que pela inflação legislativa, de feitio burocrático e simbólico, que merece sempre censura12), prevenindo e coibindo severamente os atos de violência. A sanção jurídica consumada (civil stricto sensu, administrativa ou penal), mais que a sua cominação in abstracto, comunica ao agressor e à sociedade que os valores éticos sob a guarida da norma jurídica (= ação de atitude jurídica) seguem vigentes. Sinaliza, pois, a garantia de vigência real dos valores de ação de atitude jurídica. Em Direito Penal, essa concepção foi denominada teoria da prevenção geral

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positiva fundamentadora (H. Welzel e G. Jakobs13). A prevenção da violência pressupõe, portanto, uma resposta institucional austera, imperativa e certa. Eis o primeiro e judicioso passo.

Como, porém, mais precisamente, a violência afeta a criança e o adolescente nas relações de trabalho? E sob quais contextos se convola em violência sexual?

2. Trabalho infanto-juvenil: violência, exploração e abuso sexual

Iniciemos pela tessitura normativa de iure constituto que hoje rege a matéria.

Pela lei brasileira em vigor (Lei n. 8.069/90Estatuto da Criança e do Adolescente), são crianças as pessoas com até doze anos incompletos, enquanto adolescentes são as pessoas que têm entre doze e dezoito anos incompletos (art. 2º). Tais definições coadunam- -se com aquela estampada no art. 402, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho, pela qual “considera-se menor para os efeitos desta Consolidação o trabalhador de quatorze até dezoito anos” (redação da Lei n. 10.097/00) — a não ser, é claro, pelo uso da expressão menor, há muitos anos abolida propositalmente da legislação tuitiva, por remeter ao arcaísmo do paradigma do “menor infrator” que inspirou o Código de Menores (Lei n. 6.697/79) e os textos legislativos anteriores.

O art. 7º, XXXIII, da Constituição Federal proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos. Proíbe, ademais, qualquer trabalho a pessoas menores de dezesseis anos, exceto nas hipóteses de aprendizagem, praticada com finalidade eminentemente educativa (educação profissional), e somente a partir de catorze anos. Logo, a criança não pode trabalhar, sob quaisquer circunstâncias (sequer como aprendiz). A aprendizagem é regida, na CLT, entre os arts. 424 a 433.

O art. 227, caput, da CRFB, por sua vez, dispõe que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização (e não ao “trabalho” em si mesmo, o que perfaz a distinção essencial entre os contratos de aprendizagem e os

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