A Sentença Criminal e seus Efeitos na Jurisdição Trabalhista Coletiva

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas257-275

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1. Introdução

Uma das dimensões mais importantes na tutela dos direitos metaindividuais é o combate aos ilícitos penais que os violem, mesmo porque tais lesões, por atingirem um universo expressivo de bens e pessoas, clamam por pronta e eficaz reprimenda. Conquanto a tendência na contemporaneidade seja a descriminalização das condutas e o predomínio de sanções de natureza patrimonial, é patente que em hipóteses de ferimento aos direitos coletivos resulta imprescindível que se prestigie a tutela penal e que esta seja devidamente instrumentalizada

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como relevante mecanismo de repressão a tais comportamentos.

Tanto isso é verdadeiro que a própria Lei dos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98) chegou a estipular a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, o que significou uma mudança paradigmática nos rumos traçados pela dogmática penal.

Alguns diplomas normativos igualmente tipificam condutas violadoras dos interesses coletivos lato sensu, a exemplo das disposições constantes nos arts. 63 a 75 do CDC; das disposições da Lei n. 8.137/90, que tipificam delitos contra a ordem econômica; da Lei de Licitações (Lei n. 8.666/93), dentre outros.

Por tais motivos, defendemos que a sentença penal condenatória ostenta, em vários casos, na jurisdição trabalhista metaindividual, os atributos da sentença condenatória genérica prevista no art. 95 do CDC, razão pela qual é de indiscutível relevância o estudo dos seus efeitos, dada a similitude existente entre ambas.

Ademais, existe expressa previsão legal em tal sentido no CDC:

Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada:

(...)

§ 3º Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.

§ 4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória.

Nessa orientação, os ensinamentos de Ada Pellegrini Grinover:

Na verdade, o que o Código faz, no dispositivo ora em exame, é aplicar aos interesses difusos e coletivos o critério adotado pelo art. 63 do CPP, quanto aos efeitos civis da sentença penal condenatória, ampliando o conceito de ofendido pelo crime e adequando-o às infrações penais que ofendem a coletividade.1 (Grifos no original).

Ou seja, o sistema da jurisdição coletiva admite expressamente o transporte in utilibus da coisa julgada que se formar na esfera criminal para beneficiar todos aqueles que sofreram prejuízos em razão de eventuais condutas delituosas.

Diante de tal particularidade, nos crimes que vitimem um universo de trabalhadores é possível se divisar em diversas situações a agressão a direitos individuais homogêneos, de maneira que se houver condenação definitiva de empregador pela prática de tais ilícitos, esta sentença equivale à condenação genérica pre-vista no art. 95 do CDC; isto porque a decisão criminal, ao fixar a autoria e a materialidade delitivas, impõe o dever de reparar os danos perpetrados, conforme art. 91, I, do CP e art. 63 do CPP.

Nestes casos, à luz da aplicação conjunta do art. 129, III, da CF/1988; do art. 1º, IV, da LACP; do art. 935 do CC; dos art. 95 e 103, § 4º do CDC; e das disposições pertinentes da Lei Orgânica do Ministério Público da União, além de outras normas legais insculpidas no CP e no CPP, resulta perfeitamente concebível uma actio civilis ex delicto coletiva2, aforada em sede de jurisdição trabalhista metaindividual, a ser veiculada por conduto de ação civil pública, consoante aplicação do art. 83 do CDC c/c art. 3º da LACP.

Ora, da mesma forma que ocorre na jurisdição trabalhista coletiva, quando um magistrado prolata sentença condenatória nos termos do art. 95 do CDC, condenando genericamente o empregador a reparar os danos causados por sua conduta, o juiz criminal, nos delitos que atingem um universo de trabalhadores, ao prolatar sentença condenatória, também torna certa

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a obrigação genérica de indenizar os danos, o que reclama, igualmente, liquidação e execução do quantum reparatório.

Não seria uma clássica ação civil ex delicto3, uma vez que não se limita a postular a reparação dos danos. Mais que isso, englobará pedidos de tutela de obrigação de fazer e não fazer, característicos das demandas coletivas.

Pois bem. A relação entre a jurisdição penal e a jurisdição extrapenal é tema ainda pouco abordado na doutrina laboral, apesar da relevância prática que dele se pode extrair.

Inegável que a jurisdição é una e as compartimentalizações existentes pretendem usufruir tão somente dos benefícios da divisão de trabalho. Una e indivisível, a jurisdição expressa a soberania estatal. Deveras é comum um mesmo fato acarretar uma pluralidade de consequências jurídicas, como no exemplo de motorista de ônibus que, dirigindo imprudentemente, atropela e mata criança que trafegava na via pública, acidente no qual também ficam gravemente feridos alguns passageiros e o cobrador. Os pais da vítima acionam a empresa na busca da reparação civil e ao mesmo tempo o Ministério Público estadual denuncia o condutor por homicídio culposo. A empresa responderá civilmente nos termos do art. 932 do Código Civil (responsabilidade por fato de terceiro). O mesmo evento ensejará o pagamento do seguro DPVAT em favor dos pais do menor. Igualmente, o cobrador poderá entrar em gozo do auxílio-doença acidentário, e os passageiros haverão de ser indenizados nos termos do CDC e do Código Civil, já que celebraram contrato de transporte regido por normas consumeristas.

Essas e outras repercussões são originárias de um mesmo evento, de maneira que é funda-mental indagar-se quais os efeitos da decisão criminal na órbita trabalhista, em especial em relação aos delitos que agridem uma coletivi-dade de trabalhadores.

O art. 935 do CC/2002 tem preceito que baliza esta consequência: “Art. 935. A responsa- bilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.

Constata-se, portanto, que as jurisdições cíveis e criminais intercomunicam-se. A segunda reverbera de modo absoluto na primeira, quando reconhece a existência do fato ou sua autoria.

Deve-se afirmar que a dissociação entre jurisdição civil e penal há de ser compreendida em sentido lato: jurisdição civil é a não penal, ou seja, a cível, trabalhista, administrativa, etc. Esta a exata compreensão do referido dispositivo, pois é manifesto que a decisão penal espraia seus efeitos em todas as províncias do direito, nas hipóteses de enfrentamento de matérias comuns. O assunto é complexo e exige análise da legislação vigente em suas múltiplas dimensões, embora resumidamente.

Ao tratar dos efeitos genéricos e específicos da condenação criminal, o Código Penal expressamente dispõe: “Art. 91. São efeitos da condenação: I — tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; [...]”.

De modo assemelhado, o Código de Processo Penal ao disciplinar a actio civilis ex delicto estabeleceu igualmente esta simbiose entre as instâncias penal e cível:

Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Art. 64. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.

Parágrafo único. Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela.

A Lei n. 9.099/05, por sua vez, praticamente unificou-as, ao dispor: “Art. 74. A composição

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dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente”.

E, finalmente, o CPC considerou a sentença penal condenatória um título executivo judicial: “Art. 475-N. São títulos executivos judiciais: [...] II — a sentença penal condenatória transitada em julgado; [...]”.

Com olhos na legislação vigente, é possível oferecer a presente síntese: a sentença condenatória penal faz coisa julgada no juízo trabalhista, na medida em que, para promover a condenação, o magistrado deve reconhecer a existência do crime e sua autoria, tornando certa a obrigação de indenizar, nos termos do art. 91, I do CP c/c art. 935 do CC/2002. Quando se tratar de sentença absolutória, ela poderá ou não fazer coisa julgada na jurisdição laboral. Fará coisa julgada se reconhecer categoricamente a inexistência do fato ou autoria (art. 66 do CCP c/c art. 935 do CC/2002) ou nos casos de acolhimento de excludentes de antijuridicidade, a exemplo da legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito, nos termos do art. 65 do CPP, à exceção do estado de necessidade, por conta de disposições expressas contidas nos arts. 188 e 930 do CC/2002.

Por outro lado, consoante os arts. 66, 67 e 386 do CPP, a sentença absolutória criminal não fará...

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