Os empresários do setor aéreo e os contratos de arrendamento de aeronaves na lei de recuperação de empresas e falência (Lei 11.101/2005, art. 199)

AutorMarcelo Vieira Von Adamek
Páginas187-203

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1. Introdução

O presente estudo tem por objetivo analisar os principais impactos da Lei de Recuperação de Empresas e Falência/LRF, aLei 11.101, de 9.2.2005, sobre as empresas exploradoras de serviços aéreos e de infra-estrutura aeronáutica e sobre os contratos de arrendamento (locação, arrendamento mercantil e qualquer outra forma de arrendamento) de aeronaves e suas partes. O que se pretende - através da análise dos processos concursais e paraconcursais aos quais se submetem os empresários do setor aéreo (item 2) e do estudo do regime jurídico dos contratos de arrendamento de aeronaves (item 3) - é, em suma, verificar se, realmente, o legislador avançou considera-velmente na regulamentação da crise das empresas aéreas, dando-lhes condições mais justas e factíveis de reerguimento, ou, ao contrário, se persiste em nosso Direito a visão curta e restritiva introduzida pelo De-creto-lei 669, de 3.7.1969, e repetida no Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565, de 19.12.1986).

2. A crise econômica dos empresários exploradores de serviços aéreos e de infra-estrutura aérea

O mercado aéreo nacional, ninguém duvida, apresenta excepcional potencial de crescimento, seja no segmento de transporte de passageiros como no de transporte de cargas. Na prática, porém, o crescimento efetivo sempre fica longe das margens potenciais, notadamente porque se trata de setor da atividade econômica fortemente influenciado por elementos vários, tais como política tarifária, carga tributária, encargos trabalhistas, investimentos públicos, preço do combustível, variação cambial, apreensão gerada no consumidor por conta de ataques terroristas e conflitos armados etc. - para, aqui, ficar com apenas

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alguns exemplos. Bem por isso, não só em nosso País, mas também em Países de economia exuberante, as crises têm apanhado fortemente as empresas aéreas. Entre nós são conhecidos os casos da Panair, Cruzeiro, Transbrasil, VASP e VARIG. Mundialmente, é possível citar as crises da Continental, American Airlines, Aerolineas Argentinas, TAP e Swissair, dentre tantas outras empresas, algumas das quais conseguiram superar suas dificuldades, e outras tantas sucumbiram ou foram adquiridas por concorrentes.

Conquanto o setor aéreo brasileiro possa estar mais vulnerável ao impacto de alguns dos fatores citados, suas crises, assim, não são exclusividade nacional, mas uma constante mundial.1 Contudo, o que realmente singulariza o Brasil nesta área é o modo de se lidar com o problema, isto é, são os instrumentos de que dispõem os empresários para superar suas dificuldades operacionais e financeiras. É que, num ambiente econômico de parcos investimentos públicos e de altas taxas de juros, as alternativas de refinanciamento estatal ou bancário nem sempre são factíveis ou suficientes. Teoricamente, portanto, restaria ainda a via dos processos concursais, mas também neste ponto o panorama nacional é algo desolador, pois até o advento da atu-al lei concursal brasileira prevaleceu uma concepção legislativa refratária às soluções concursais, não obstante seu largo emprego em vários outros Países. O que se pretende analisar, doravante, é se essa visão, que no passado predominou, continua a prevalecer, ou não, em nosso sistema jurídico.

Nesta linha, procurar-se-á, doravante, fornecer um panorama atual dos vários processos concursais e paraconcursais aos quais estão sujeitos os empresários atuan-tes no setor aéreo, colocando em destaque o regime pretérito e aquele inaugurado com o advento da Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei 11.101, de 9.2. 2005), sempre destacando as principais controvérsias presentes na interpretação da atual lei.

2. 1 Processos de recuperação de empresas (e concordata)

Sob a esquálida justificativa de que "a concordata, sendo um favor legal, que se dá à empresa estritamente comercial para continuar o seu negócio, não é de molde a ser admitida para a empresa de transporte aéreo, quando se tem em vista, acima do interesse comercial da empresa, a regularidade e segurança do vôo", o Decreto-lei 669, de 3.7.1969, pela primeira vez em nosso sistema jurídico excluiu do benefício da concordata as empresas exploradoras de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica.2 Depois

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dele, a mesma orientação foi repetida no Código Brasileiro de Aeronáutica/CBA, a Lei 7.565, de 19.12.1986, que, em seu art. 187, dispunha: "Art. 187. Não podem impetrar concordata as empresas aéreas que, por seus atos constitutivos, tenham por ob-jeto a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica".34

O afastamento destes empresários (comerciantes, pelo regime então vigente) do benefício da concordata era criticável e, sem dúvida, contestável.5 Criticável porque, ao mesmo tempo em que taxativamente lhes recusou o benefício da concordata, o legislador não concedeu um instrumento alternativo e eficaz de socorro para suas respectivas crises econômico-financeiras. Contestável era, ainda, essa diretriz restritiva na medida em que a sujeição das empresas aéreas ao regime geral concursal em vários outros Países não se revelou perniciosa à regularidade ou mesmo à segurança dos serviços, notadamente porque, bem

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vista a questão, o receio e o risco de que as manutenções das aeronaves não estejam sendo realizadas adequadamente existem pelo só estado de crise da empresa, independentemente da submissão do empresário a regime concursal, ordinário ou não. Inclusive, sob tal ótica, talvez tivesse sido preferível e, de certo, teria sido mais muito honesto permitir que todos ficassem sabendo do estado de crise de determinada companhia aérea (e pudessem, assim, exigir das autoridades o fiel cumprimento de suas atribuições) que escamotear a realidade e sujeitar os consumidores incautos aos perigos e percalços da utilização dos serviços de companhias aéreas insolventes.

Presentemente, porém, com o advento da Lei de Recuperação de Empresas e Falência/LRF - Lei 11.101, de 9.2.2005 -, o quadro legal alterou-se de maneira significativa. Realmente, pela letra do art. 199, caput, da LRF, os empresários exploradores de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica passam a ter o direito de pleitear recuperação, judicial ou extrajudicial. Desfrutam dos bônus e ficam sujeitos aos ônus comuns aos empresários em geral, sem exceções. Trata-se de sensível opção de política legislativa que traz, como lógica contrapartida, a assunção de responsabilidades pelos órgãos governamentais, aos quais caberá o poder-dever de fiscalizar, de perto e com redobrada cautela, os aludidos empresários em regime concursal, sem descurar de seus deveres e sem ignorar os riscos próprios da atividade de navegação aérea. Resta saber como o usuário irá reagir à sujeição de empresa aérea a procedimento concursal, especificamente se ainda assim continuará a utilizar seus serviços com a mesma intensidade, ou se o receio de que a manutenção não esteja sendo feita a contento irá levá-lo a se valer dos serviços de concorrente.

Como quer que seja, ao menos do ponto de vista teórico, a atual lei concursal brasileira assegura àqueles empresários que se dediquem à exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica a faculdade de requerer recuperação judicial ou extrajudicial. Em termos práticos, porém, as modificações não foram tão expressivas, pois, como adiante se verá, ao mesmo tempo em que concedeu aos empresários do setor aéreo a possibilidade de se valerem dos processos de recuperação de empresas, o legislador pátrio criou na LRF regras especiais que excepcionam os contratos de arrendamento mercantil e locação de aeronaves e suas partes dos efeitos do concurso, com o quê eliminou ou restringiu consideravelmente a eficácia desses processos.

2. 2 Falência

No regime anterior à Lei 11.101/2005 era assaz controvertida a questão de saber se os empresários exploradores de serviços aéreos, sujeitos a intervenção e liquidação extrajudicial nos termos da legislação especial, poderiam ter sua falência requerida diretamente por credor6 nas situações previstas na antiga Lei de Falências (Decreto-lei 7.661/1945), ou, pelo contrário, se a quebra apenas poderia vir a ser decretada a pedido do interventor ou do Poder Público na hipótese prevista no art. 188, § 2°, II, do CBA.7 Os defensores da legitimação ativa

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exclusiva do liquidante ou do interventor (e que, portanto, negavam a possibilidade de ser apresentado pedido de quebra amparado nas regras do Decreto-lei 7.661/1945) e sustentavam, em síntese, que: (i) em que pese ao emprego do verbo "poder" nas verba legis do art. 188 do CBA, o legislador, aí, não teria instituído qualquer faculdade, mas, sim, e de conformidade com os princípios regentes da atividade administrativa, teria previsto efetivo poder-dever, a impor ao Poder Público a obrigação de intervir nas empresas aéreas, desde que presentes os pressupostos legais legitimadores da medida; não haveria discricionariedade administrativa, mas poder-dever vinculado;8 (ii) a submissão das concessionárias e autoriza-tárias de serviços públicos de navegação aérea a procedimentos de...

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