A servidão nossa de cada dia

AutorRômulo de Andrade Moreira
CargoProcurador de justiça do MPBA
Páginas7-8
TRIBUNA LIVRE
TRIBUNA LIVRE
1110 REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 659 I AGO/SET 2019 REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 659 I AGO/SET 2019
dam um advogado que renega
toda a sua carreira anterior
para servir aos poderosos”6.
Algum dos indicados “esque-
ciam-se do que haviam escrito,
do que haviam ensinado a seus
alunos, do que haviam pratica-
do na magistratura, no Minis-
tério Público, na advocacia, no
Serviço Público e mesmo na
vida partidária e política”.
Confesso que entendo
como uma felicidade que estes
esquecimentos transforma-
ram estes juristas em juízes.
Exemplifica entre os es-
quecidos os nomes de Ayres
Brio, Cármen Lúcia e Joa-
quim Barbosa7.
Dirceu com tais críticas
revela um desconhecimento
horripilante das funções e
do comportamento de ma-
gistrados dignos deste nome:
integrantes da mais alta corte
não podem se disponibilizar a
prestar serviços como grati-
dão a seus nomeantes.
A independência é a grande
garantia da imparcialidade do
juiz, que não pode estar vincu-
lado a partidos políticos.
A metralhadora giratória
de Dirceu não pode ser levada
a sério, pois seus alvos estão
sendo injustiçados vingativa-
mente por estarem cumprindo
seus deveres constitucionais.
A infelicidade atual de
Dirceu é parte da fatura de
seus próprios atos, pois ele é
o punidor de si mesmo, como
diziam os gregos: heaautonti-
morumenos.
Atingiu ele os píncaros da
glória política e despencou ra-
pidamente para o ostracismo
e o isolamento.
Foi abandonado por seus
próprios companheiros, al-
guns da sofrida e insensata
“luta armada” que não levou a
nada, e deu sobrevida tempo-
ral ao governo de então (“erra-
mos, e grosseiramente”).
“Muitos atribuem a radica-
lização da ditadura ao surgi-
mento das organizações arma-
das”, como ele mesmo insinua8.
A frustração é absoluta
para Dirceu e os seus, princi-
palmente após os resultados
das últimas eleições presi-
denciais.
A desmoralização de seus
julgadores não o inocenta de
seus atos.
Uma autocrítica talvez ate-
nuasse as suas ações pregres-
sas.
Para juízes é melhor se-
rem criticados por ele do que
comprometedoramente elo-
giados.n
Antenor Demeterco Júnior é advoga-
do. Consultor Jurídico do setor con-
tencioso estratégico. Cursou Adminis-
tração Pública e Municipal em Madri.
NOTAS
1. JOSÉ, Dirceu.
Zé Dirceu
– Memórias. São
Paulo: Geração Editorial, 2018, v. 1.
2. Ibidem, p. 16.
3. Ibidem, p. 451.
4. Ibidem.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem, p. 450.
8. Ibidem, p. 53.
Rômulo de Andrade MoreiraPROCURADOR DE JUSTIÇA DO MPBA
A SERVIDÃO NOSSA DE CADA DIA
Étienne de La Boétie foi
um humanista e filóso-
fo francês do século 16
que viveu apenas trinta
e dois anos, entre 1530 e 1563.
Era amigo de Montaigne, a
quem coube divulgar, post
mortem, a sua obra, especial-
mente um opúsculo que La
Boétie deu o nome de “Sobre
a Servidão Voluntária”, pu-
blicado dezoito anos após a
sua morte, e que está contido
originariamente no capítulo
 do livro  dos Ensaios,
de Montaigne.
Ele escreveu este peque-
no e valioso discurso muito
jovem (possivelmente entre
os dezesseis e dezoito anos),
quando a Europa, e a França
mais especialmente, carecia
de liberdade política e religio-
sa. Sobre este fato, Montaigne
O certo é que
o modo em que
vivemos hoje
mostra-nos novos
tipos de servidão
e de tiranos
conta em Ensaios:
Se, na idade mais madura em
que o conheci, tivesse empreen-
dido um projeto como o meu, de
colocar no papel suas divagações,
veríamos muitas coisas preciosas
e que nos aproximariam da glória
da antiguidade, pois particular-
mente neste âmbito tinha um dom
natural, e desconheço quem lhe
seja comparável. Mas nada restou
dele senão esse discurso – e por
efeito do acaso, pois creio que nun-
ca o reviu depois que lhe escapou
– e algumas memórias sobre esse
édito de janeiro, célebre por nossas
guerras civis, que ainda hão de en-
contrar alhures seu lugar. Escute-
mos um pouco sobre esse rapaz de
dezesseis anos. (Grifei, posto muito
significativo hoje).
A obra é, sobretudo, uma
ode à liberdade e um alerta
contra a servidão humana e
a tirania do poder. Nada obs-
tante ter sido escrito quando
o foi, há lições neste discurso
que servem muito bem para
os dias de hoje. Esta pequena
obra foi escrita, como afir-
mou Paul Bonnefon – editor
francês do final do século 19,
especializado em Montaigne,
Rosseau e La Boétie – por um
jovem, entusiasmado e con-
victo “defensor da liberdade e
da igualdade religiosa, impul-
sionado por sua natureza co-
rajosa, levado por seu coração
fervoroso e flexível” (Introdu-
ção à obra de Étienne de La
Boétie).
Se não há tiranos como os
havia quando La Boétie es-
creveu este ensaio – há quase
meio milênio! –, tampouco a
servidão de que ele falava, o
certo é que a nossa contem-
poraneidade, e o modo em
que vivemos hoje mostra-
-nos novos tipos de servidão
e de tiranos. O que dizer, por
exemplo, da servidão ao con-
sumismo, ao dinheiro, ao
mercado, ao poder, aos car-
gos públicos, à carreira; o que
dizer também da servidão à
competitividade entre nós, ao
amor ao supérfluo e ao líqui-
do (Bauman)?
Ademais, a noção que o li-
vro dá sobre a liberdade hu-
mana, e a sua dimensão para a
existência, é de uma atualida-
de impressionante. Seríamos
ainda hoje mesmo livres? E,
se não, por que alguém seria
capaz de recusar gozar deste
valor tão especial para a exis-
tência humana, submetendo-
-se voluntariamente, ainda
que sabendo ser “a servio
amarga e a liberdade doce”?
Étienne – um “huma-
nista passional e gene-
roso”, como escre-
veu Montaigne
– nos induz a re-
fletir, a partir dos
dias atuais, qual
a razão que leva
alguém a se sub-
meter a outrem,
a abrir mão de
sua liberdade,
este “bem tão
importante e desejável que,
uma vez perdido, acarreta to-
dos os males de uma só vez, e
os bens que sobrevivem a ela
perdem inteiramente seu gos-
to e sabor, corrompidos pela
servidão”.
Leva-nos a pensar se, efeti-
vamente, a servidão é mesmo
uma imposição ou se, ao con-
trário, submetemo-nos a ela
voluntariamente, em razão de
certo conformismo com a sub-
missão, algo que chega mesmo
a ser desejado (ou escolhido
voluntariamente) por quem
se submete. Eis um enigma,
pois “a natureza do homem é
ser livre e desejar sê-lo”.
E, se assim o é, podemos
então nos livrar da servidão
se tentarmos, não sendo “pre-
ciso nem mesmo agir, basta
querer fazê-lo”: “sede resolu-
tos em não servir mais, e esta-
rei livres”.
Como é possível, escreveu
ele,
que tantos homens, tantos bur-
gos, tantas cidades, tantas nações
tolerem, por vezes, um tirano so-
zinho, cujo único poder é aquele
que lhe conferem. Coisa espanto-

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