Serviço Religioso ou Servidão Religiosa? Novas Reflexões à Luz do Princípio da Isonomia e da Dignidade

AutorCyntia Santos Ruiz Braga
Páginas168-183
168
Guilherme Guimarães Feliciano; olívia de Quintana FiGueiredo PasQualeto (orGanizadores)
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Introdução
A dignidade da pessoa humana conforme o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de
1988 é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e nalidade da ordem econômica.
Trata-se de um princípio fundamental que estrutura todo o ordenamento jurídico brasileiro. Nos
dizeres do professor Guilherme Guimarães Feliciano, é “
(2013).
Na mesma toada, Mauricio Delgado (2010, p. 39) assevera que:
A Constituição democrática de 1988 alçou o princípio da dignidade da pessoa humana, na
qualidade de princípio próprio, ao núcleo do sistema constitucional do país e ao núcleo
de seu sistema jurídico, político e social. Passa a dignidade a ser princípio fundamental
de todo o sistema jurídico.
Essa dignidade pode ser exigida do Estado nas condutas das instituições religiosas com seus
? Eis o ponto nevrálgico da discussão nacional e internacional.
Como sabemos, a não interferência do Estado na Igreja e vice-versa é esculpida no art. 5º, inciso
VI, da Constituição Federal – que arma o caráter laico do Estado Constitucional contemporâneo
– o qual, aliado ao princípio da neutralidade, confere à instituição religiosa tamanha autonomia
gerencial que se tem permitido a marginalidade de trabalhadores, ou “prossionais da fé”, quanto
ao alcance da dignidade da pessoa humana, retirando proteções mínimas e jusfundamentais, seja
na esfera da discussão jurisprudencial, seja na doutrinária.
Por meio da observação da postura de igrejas neopentecostais e históricas, assim como, da
jurisprudência estadunidense e brasileira, verica-se que a isonomia, um dos fundamentos da
dignidade, propulsiona uma nova reexão e conduta para a ampliação da proteção a este traba-
lhador autônomo(2) sem que se ofenda a liberdade religiosa, dentro de um princípio de cooperação
com o Estado laico.
(1)  Advogada. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão “Trabalho Além do Trabalho” pela Universidade
de São Paulo – USP. Pós-Graduada em “Direito Empresarial do Trabalho” pela FGV e em “Contratos” pelo Centro de
Extensão Universitária. Graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
(2)  Cf. art. 9º, inciso V, letra “c” do Decreto n. 3.048/99 e Lei n. 6.696/79.
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A origem da palavra serviço, no latim, é , enquanto que a palavra
servidão, no latim, é servitus, famulatus(3). Em nosso vernáculo, enquanto a palavra serviço com-
preende ato ou efeito de servir, obséquio, favor, a palavra servidão indica sujeição, dependência,
serventia e até escravidão. De antemão, faz-se importante analisar historicamente se as instituições
religiosas já passaram por situações nas quais, por meio da devoção ou da escravidão, se permitiu
um status de servidão religiosa.
Na época medieval, conforme o historiador Jacques Heers, a Igreja foi a maior proprietária
de terras no feudalismo, era “senhor” de milhares de servos e deles se utilizava, principalmente
nas cidades mediterrâneas no m do século XII e início do século XIII, além de ser comum nos
mosteiros o uso de trabalho escravo, como se transcreve:
Os escravos pagãos, muçulmanos, heréticos ou cismáticos parecem ser todos tratados da
mesma maneira, pelos eclesiásticos como pelos seus outros senhores. Na verdade, esta
atitude das gentes da Igreja pode surpreender e chocar. De facto, inserem-se perfeitamen-
te no seu meio social e seguem exatamente os usos dele. Todos os religiosos possuem,
nos lugares em que a servidão faz parte dos costumes, escravos. (HEERS, 1983, p. 79)
Atualmente, em algumas igrejas neopentecostais, verica-se que muitos prossionais da fé
não são o resultado de um processo de amadurecimento ou vocação de uma losoa religiosa e
muito menos tem como pré-requisito o frequentar de uma faculdade teológica. Enquadram-se
como parte de um novo processo de “recrutamento” e seleção, e posteriormente se adaptam a
uma gestão institucional religiosa muito semelhante à de uma empresa, a saber:
O recrutamento e treinamento dos líderes religiosos, sacerdotes, pastores ou profetas é
um dos temas mais desaantes na análise sociológica das organizações religiosas e sobre
ele trabalhamos em 1987, quando analisamos o clero de uma denominação pertencente
ao protestantismo histórico. (CAMPOS, 1999, p. 355)
A forma de recrutamento e a sua explicação derivada do conceito de vocação permitem a visua-
lização das maneiras pelas quais os determinismos sociais se tornam “escolhas” pessoais. No
discurso religioso, de um modo geral, prevalecem as palavras “vocação” e “chamado divino”
para designar a “conversão” à carreira. Mas, de onde saem os pastores iurdianos e, em que
sentido, tais origens sociais determinam a forma de comportamento e a visão de mundo
desses agentes?
Na IURD os pastores, quase na totalidade, são homens recrutados do corpo de obreiros.
Alguns deles vêm de uma experiência religiosa anterior de envolvimento com o kardecismo
ou cultos afro-brasileiros. Um grande número diz ter sido católico nominal e poucos passaram
pelo exercício do pastorado em outras denominações religiosas. É comum armarem que se
converteram em um determinado dia, iniciando-se assim, durante essa experiência matricial, uma
atração irresistível para um trabalho religioso mais ativo na Igreja: “ganhar almas para Cristo”.
A observação da postura corporal, linguagem, nível de raciocínio e aspirações expressas pelos
pastores, indicam procederem das camadas mais pobres da sociedade, espaço onde se localiza
o celeiro das vocações pastorais dessa Igreja, como também pudemos encontrar entre pastores
das denominações protestantes tradicionais, conforme nossa pesquisa na metade dos anos 80
(3)  Latim/Português Português/Latim. Porto: Porto, 2012.
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