Os Serviços de Interesse Geral no Quadro Jurídico-político da União Europeia

AutorJorge Pegado Liz
CargoConselheiro do CESE, Comité Económico e Social Europeu
Páginas71-110

Ver nota 1

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Excertos

"Os serviços de interesse geral de caráter não económico, não eram regidos por regras comunitárias específicas, nem estavam sujeitos às regras relativas ao mercado interno, à concorrência e aos auxílios estatais"

"A instituição de serviços de interesse económico geral só se justifica se ela permitir a satisfação das missões de interesse geral ao serviço dos principais beneficiários desses serviços"

"É legítimo esperar e exigir da Comissão que uma ou várias iniciativas legislativas venham trazer a clareza e as garantias necessárias, tendo sempre em conta a natureza e as especificidades dos diferentes tipos de serviços de interesse económico geral (serviços sociais, medidas de inserção no emprego, apoio a pessoas desfavorecidas ou com deficiência, habitação social etc.)"

"Como exemplos de serviços de interesse económico geral, o tribunal identificou a televisão, as telecomunicações telefónicas fixas, as carreiras aéreas não viáveis, os serviços de correio, o tratamento do lixo, os serviços de transporte de doentes, o fornecimento de remédios essenciais"

"A atribuição de vantagens concorrenciais em atividades rentáveis, para compensar as perdas que a empresa sofre em atividades não rentáveis, mas de interesse geral, era compatível com o tratado"

"Parecer destacou da obrigação de zelar pelo funcionamento correto dos serviços de interesse geral, sujeitando-os a normas transparentes de avaliação, de regulação e de responsabilização"

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Citizens need to know that Europe is not a simple free market. Citizens want and deserve a commitment to public service, enshrined clearly in Europe’s Constitution. MEP Mrs. Tongue (PSE), Sessão do PE de 04/09/1996

1. Introdução Serviço público, serviço universal e serviço de interesse geral

A noção de serviço público como a conhecemos e ainda praticamos entre nós, embora já muito adulterada, tem origem francesa2e é perfeitamente datada em dois momentos históricos:

  1. nos começos do século XX, com o reforço dos poderes do Estado e o aparecimento das ideias de "solidariedade" ou de "interdependência" de Duguit e Hauriou;

  2. nos finais da segunda grande guerra com a constituição dos monopólios públicos nacionais como meio de contribuir para o relançamento da economia e a redução das desigualdades sociais.

    O seu âmbito incluía desde a educação, a saúde, a proteção e segurança sociais, até aos transportes públicos, aos correios, ao telefone, à eletricidade, à água, sem distinção entre serviços públicos "comerciais" e "não comerciais".

    O seu regime era regulado pelo direito administrativo e quando não era o próprio Estado ou organismos públicos a prestá-los diretamente, a forma mais comum da sua gestão era a concessão a entidades em que o Estado participava maioritariamente, sempre com caráter monopolista.

    A sua gestão era orientada segundo os princípios da boa qualidade, da continuidade, da igualdade e da coesão social, sem qualquer participação dos utentes e sob controle direto dos governos.

    Serviço público era igual a serviços públicos e estes iguais a organismos públicos, iguais a funcionários públicos, funcionários do Estado, no limite de empresas com a totalidade ou a maioria de capital público.

    Nas décadas de 1970/80 este conceito, peça essencial do chamado "modelo social europeu"3, começa a ser posto em causa pelas transformações sociais económicas e tecnológicas ocorridas. E também pelas ideologias que passaram a imperar, com o advento das correntes neoliberais e a sua renovada crença no mercado como regulador, com a sua fé cega na concorrência e a sua aposta na privatização a qualquer custo do setor público.

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    Com isto não são só os conceitos se alteram. Antes deles são as próprias exigências dos consumidores - a quem se começa a dar cada vez mais voz - que ameaçam revelar-se incomportáveis para os Estados, a braços com uma primeira crise económica profunda. Depois a globalização da economia e a abertura dos mercados internacionais com a necessidade de aí competir contra economias emergentes e onde direitos sociais e mesmo direitos humanos são praticamente desconhecidos e não representam custos. Também a crescente celeridade dos negócios que se revela incompatível com espartilhos administrativos e burocráticos da máquina pesada do funcionalismo público. Ainda a constatação, por vezes exageradamente empolada, de uma "má gestão" crónica do Estado. Também a necessidade de recorrer à alienação de património público em setores economicamente rentáveis para fazer face a déficits persistentes das contas públicas e a exigências cada vez maiores de caráter social, agravadas pela inversão demográfica da pirâmide etária. Finalmente os "ventos da história", a onipresente "pressão mediática" que se substitui à opinião pública e os fenômenos da "moda" intelectual dos bem pensantes.

    Sucessivamente são vários os setores públicos que vão tombando na voragem das privatizações: o transporte aéreo, as telecomunicações, os transportes ferroviários e marítimos, a eletricidade, o gás, a educação, a água, os correios, a saúde, a própria Justiça.

    Ao contrário, o conceito de "interesse geral" tem origem germânica e é simultaneamente mais amplo e menos preciso que a noção de "serviço público". Desde logo porque se não acha ligado a uma especial função do Estado, mas antes à comunidade dos interessados. Depois porque não é tributário do "modelo social europeu". Ainda porque se afirma "neutro" quanto à natureza da propriedade e à forma de gestão e organização. Também porque é perfeitamente compatível com as tendências da desregulamentação, da privatização e da regulação independente. Finalmente porque nada tem a ver com as noções de administração pública central nem está submetido ao direito administrativo mas antes ao direito dos contratos.

    Identicamente no Reino Unido a noção mesmo de serviço público, tal como concebida em França e adotada na maioria dos países de idêntica tradição, é desconhecida.

    A passagem da concentração dos poderes do Rei para uma administração civil reduzida mas autónoma, eficaz e responsável perante o público (o "fonctionaire public" é aqui um "civil servant"), faz-se em paralelo com a privatização crescente dos serviços essenciais e com uma tripla vertente de controle numa administração transparente (exatamente o contrário do secretismo da "arcana práxis" francesa):

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  3. as autoridades independentes de regulação, com poderes efetivos e acatamento generalizado;

  4. o "empowerment" dos cidadãos-consumidores com respeito pelas suas opções ou escolhas, num mercado livre e competitivo, mas fortemente regulado;

  5. uma alargada "informação pública" (liberdade de imprensa). Daqui resulta que:

  6. o serviço de interesse geral não é um serviço do público em geral mas antes um serviço para um coletivo de utentes/consumidores individuais de serviços específicos (individualização versus caráter geral);

  7. os prestadores dos serviços não são considerados como funcionários do Estado mas como servidores civis contratados e remunerados para prestarem serviços de interesse geral a pedido de cidadãos/consumidores (contratualização versus funcionalização);

  8. é irrelevante a natureza jurídica da organização que presta os serviços porque em qualquer caso é regida pelo direito privado, embora sujeita a forte regulação pública.

    Finalmente, o conceito de "serviço universal" ganha foros de cidade no âmbito do direito comunitário como um conjunto de exigências de interesse geral a que devem submeter-se determinadas atividades na Comunidade. As obrigações daí decorrentes visam assegurar o acesso de todos a determinadas prestações essenciais, de qualidade e a preços acessíveis4.

2. Do Tratado de Roma ao Tratado de Lisboa

Embora com uma terminologia relativamente imprecisa, fruto dos momentos históricos da sua redação, é este conceito de interesse geral, mais do que o de serviço público, que passa para o Tratado de Roma e as suas sucessivas alterações e para os principais textos das instituições comunitárias.

a) No Tratado de Roma

No originário Tratado de Roma não existe qualquer referência aos serviços de interesse geral.

No primitivo artigo 77º (hoje art. 93º TFUE) aparecia uma referência à compatibilidade de certos auxílios aos transportes na medida em que correspondessem a "obrigações inerentes ao conceito de serviço público".

Já no artigo 90º-2 (hoje art. 106-2 TFUE) se referiam antes às "empresas encarregadas de serviços de interesse económico geral", submetendo-as às regras da

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concorrência, mas ressalvando "os limites em que a aplicação destas...

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