Seriam os direitos dos transgêneros direitos inumanos?

AutorKendall Thomas
CargoProfessor da Faculdade de Direito da Columbia University. Diretor do Centro de Estudos do Direito e da Cultura
Páginas4-23
Rev. direitos fundam. democ., v. 22, n. 1, p. 4-23, jan./abr. 2017.
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
SERIAM OS DIREITOS DOS TRANSGÊNEROS DIREITOS INUMANOS?
1
Kendall Thomas
Professor da Faculdade de Direito da Columbia University.
Diretor do Centro de Estudos do Direito e da Cultura.
Nós devemos (il faut) mais do que nunca ficar do lado dos direitos humanos. Nós precisamos (il faut) de
direitos humanos. Nós necessitamos deles e eles estão em necessidade, pois há sempre uma falta, um
déficit, uma escassez, uma insuficiência; direitos humanos nunca são suficientes. (Jacques Derrida)
E se aquilo que é “próprio” da humanidade fosse habitado pelo inumano? (Jean François Lyotard)
Resumo
O artigo propõe a discussão a respeito de como o movimento dos
transgêneros pode questionar a ideia de “humanidade” presente no
conceito de direitos humanos, a partir do tratamento desumano
conferido aos componentes do grupo social. Com base na zona de
indistinção entre o humano e o inumano, o texto apresenta o problema
da transfobia e como a violação das regras presente no contrato social
de gênero pode ser considerada premissa para a negação da
humanidade de tais indivíduos. Procura, assim, avançar as reflexões
sobre a liberdade de concepções normativas de gênero e promover a
democratização contínua das relações de gênero.
Palavras-chave: Transgêneros; Humanidade; Direitos Humanos;
inumano
Abstract
The article proposes the discussion about how the transgender
movement can question the idea of “humanity” present in the concept of
human rights, from the inhumane treatment conferred to the
components of this social group. Based on the area of indisctinction
between man and inhuman, the text present the problem of transphobia
and how the violation of rules present in the social contract of gender
can be considered as a premise for a denial of humanity of such
individuals. It seeks, therefore, to advance the reflections on the
freedom of normative conceptions of gender and promote a continuous
democratization of gender relations.
Key-words: Transgender; Humanity; Human Rights; Inhumane
1 Tradução do inglês pelo Prof. Dr. Bruno Meneses Lorenzetto.
KENDALL THOMAS
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Rev. direitos fundam. democ., v. 22, n. 1, p. 4-23, jan./abr. 2017.
O presente artigo, inspirado pelas ricas perspectivas históricas, políticas,
jurídicas e econômicas que a questão do direito dos direitos transgêneros apresenta,
propõe-se a tratar em específico de uma delas: se e como o movimento de direitos dos
transgêneros representa uma demanda para aprofundar e ampliar a cultura daquilo
que ficou conhecido como os “direitos humanos”.
2 Shannon Minter fornece um útil
ponto de entrada no argumento dos direitos humanos para os direitos dos
transgêneros. Minter promove a tese envolvente de que os transgêneros deveriam
demandar não “direitos dos transgêneros” mas “apenas direitos humanos”. A alegação
é de que (adaptando o famoso pôster da campanha da Anistia Internacional) “os
direitos dos transgêneros são direitos humanos”. O poder desta formulação está
precisamente na simplicidade atrativa de sua lógica, e na intuição moral e política que
está subentendida nela: os transgêneros são seres humanos que, como tais, merecem
as proteções que todos os seres humanos têm direito em qualquer sociedade que
tenha se comprometido em reconhecer e respeitar o regime moderno dos direitos
humanos.
Por sua simplicidade, contudo, a identificação dos direitos dos transgêneros com
os direitos humanos esbarra imediatamente em duas dificuldades. Primeiro, é óbvio,
uma vez dito, que vivemos em um momento histórico em que ambos os conceitos do
“humano” e dos “direitos” se tornaram o objeto “dos questionamentos mais radicais
possíveis” (BORRADORI, 2003, p.133). O regime de direitos humanos globais “hard” e
“soft” (dentro e através dos Estados) nunca foi mais abrangente e complexo. Por sua
complexidade, contudo, um claro consenso sobre a interpretação e aplicação das
normas de direitos humanos contemporâneos continua a nos iludir. De fato, até mesmo
as noções tidas como certas que nos foram legadas pela tradição humanista liberal a
de um ser humano racional, soberano, uma condição humana compartilhada, uma
humanidade comum, ou a existência de direitos humanos inatos e inalienáveis estão
sendo desafiadas e criticadas nos campos práticos e teóricos.3 As já enfraquecidas
fundações da ideia de direitos humanos clássicos têm sido colocadas sob tensão pelas
contradições de políticas de poderes globais e pelo cinismo transparente que envolve
tais discursos como as sobre o genocídio e sobre intervenções militares “humanitárias”.
2 A última década tem produzido uma literatura fértil explorando o valor da análise dos direitos humanos e da
advocacia em defesa dos direitos dos transgêneros, lésbicas, g ays e bissexuais. Veja, por exemplo: HENIZE,
1995; ROSENBOOM, 1996; WINTEMUTE, 1997; ADAM, DRUYVENDAH, KRONWEL, 1999; ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA, 1995; DONAHUE, 2000.
3 Obviamente, eu não tento sugerir que o “humanismo” (mesmo no Ocidente) é uma tradição monolítica. A casa do
humanismo contém muitas moradas. Para a discussão dos d iversos tipos e usos do conceito veja: HALLIWELL,
MOUSLEY, 2003.

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