Tráfico de seres humanos, migração, contrabando de migrantes, turismo sexual e prostituição algumas diferenciações

AutorLília Maia de Morais Sales; Emanuela Cardoso Onofre de Alencar
Páginas29-41

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1 Introdução

O tráfico de seres humanos está na agenda de discussões internacionais contemporânea de governos, ONG's e pesquisadores. Nesse debate, o problema do tráfico perpassa temas que a Page 30 ele se ligam, como, por exemplo, os fluxos migratórios atuais, que são abordados sob diferentes perspectivas, como a necessidade de proteção das fronteiras, o enrijecimento da legislação migratória e o combate à imigração ilegal, a proteção das pessoas traficadas e a efetivação dos direitos humanos.1 2

Nesse embate de idéias e interesses políticos, percebe-se que muitas vezes ocorrem confusões, propositadas ou não, no entendimento do tráfico com diversos fenômenos que a ele se ligam, mas são diversos. Desta feita, são recorrentes, por exemplo, relatos informando que governos tratam pessoas traficadas como imigrantes ilegais, deportando-as simplesmente aos seus Estados de origem, sem dispensar o tratamento adequado a pessoas que sofreram exploração, bem como casos de trabalhadores sexuais que migram voluntariamente para outros Estados para exercerem suas atividades e, estando em situação de ilegalidade, são capturados e apresentados como tendo sido vítimas de tráfico de pessoas (CHAPKIS, 2003; KAPUR, 2005). Ademais disso, por ser considerado como tendo ligação com o crime organizado, nacional ou transnacional3, o tráfico é visto apenas como questão de segurança e não, também, como grave violação de direitos humanos.

Assim, tendo em vista a necessidade de conhecer essa problemática e de realizar sua diferenciação de outros fenômenos que com ele se confundem para possibilitar sua melhor compreensão, o presente trabalho se propõe, inicialmente, a apresentar as principais características do tráfico de pessoas, de acordo com o conceito apresentado pelo último documento das Nações Unidas a tratar desse tema. Em seguida, busca diferenciá-lo do movimento migratório per si, do contrabando de migrantes, da prostituição e do turismo sexual, cuja confusão prejudica o desenvolvimento de políticas adequadas para prevenir e combater o tráfico.

2 Que tráfico é esse?

Durante muito tempo não foi tarefa fácil conceituar tráfico de seres humanos, eis que não havia um consenso internacional sobre o que seria essa atividade, e muito se discutiu na tentativa de apresentar a definição mais adequada. Embora várias organizações governamentais e não governamentais tentassem apresentar seu conceito de tráfico (ANDERSON; O'CONNELL DAVIDSON, 2004, p.16), fazia-se - e ainda se faz - muita confusão entre esse fenômeno e outros que a ele podem estar ligados.

Como observa Kapur (2005, p.115), o tráfico de seres humanos está relacionado, no discurso contemporâneo, à migração, especialmente à ilegal, e ao contrabando de migrantes. Paralelamente, existe ainda o tráfico de mulheres e de crianças que está associado à sua venda e ao envio forçado a bordéis como trabalhadores sexuais. Para a autora, esta associação do tráfico com várias formas de migração e mobilidade, de um lado, e com a prostituição e o trabalho sexual, de outro lado, está no centro do discurso atual sobre o tráfico global de pessoas.

Essa problemática é reforçada por Chapkis (2006, p. 926), ao dispor que as definições de tráfico são tão instáveis quanto o número de suas vítimas. Segundo ela, em alguns relatórios, todos os imigrantes não documentados que são detidos nas fronteiras são contados como se estivessem sendo traficados. Outros documentos se referem ao tráfico envolvendo exclusivamente vítimas da exploração sexual. Desta feita, em alguns exemplos, todos os imigrantes trabalhadores sexuais são definidos como vítimas de tráfico sem levar em consideração o seu consentimento e suas condições de trabalho; e em outros casos, são enfatizadas as condições abusivas de trabalho ou o recrutamento enganoso para a indústria do sexo.

Em face dessa indefinição, que dificultava a identificação do tráfico, sua repressão e punição, e tendo em vista que nenhum dos documentos internacionais anteriormente elaborados que tratavam do tráfico de mulheres4 apresentou uma definição dessa atividade, tornou-se imprescindível a elaboração de um conceito de tráfico de pessoas que pudesse orientar as ações das organizações governamentais e não governamentais que atuam nessa área.

Desta feita, em dezembro de 2000, foi aberta para ratificação, na cidade de Palermo, Itália, a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional, objetivando prevenir e combater delitos transnacionais cometidos por grupos organizados, e adicional a esta, dois protocolos, um versando sobre tráfico de seres humanos e outro sobre contrabando de imigrantes. Page 31

3 O conceito de tráfico de seres humanos

O Protocolo das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças, é o atual documento da Organização das Nações Unidas a tratar do tráfico de seres humanos. Em comparação aos documentos internacionais anteriores que abordaram esse tema5, o Protocolo de Palermo, como também é conhecido, destaca-se por apresentar a primeira definição desse delito.

Segundo o Protocolo de Palermo, em seu artigo 3:

  1. A expressão 'tráfico de pessoas' significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.

  2. O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea

  3. do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a);

  4. O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados 'tráfico de pessoas' mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo;

  5. O termo 'criança' significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.

A definição apresentada pelo Protocolo de Palermo trouxe importantes avanços. Inicialmente, é importante destacar que o documento faz referência ao tráfico de pessoas, e não mais apenas de mulheres6, como se observa nos anteriores. Essa mudança demonstra a idéia que se tem de que tanto homens como mulheres podem ser traficados.

Ademais, o tráfico está definido como um processo que ocorre com várias etapas distintas, conforme se depreende da leitura do artigo 3, a). Esse processo inclui o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoa, utilizando-se de qualquer dos meios coercitivos descritos, que podem ocorrer de diversas formas, envolvendo várias pessoas em suas diferentes etapas, tendo como finalidade a exploração.

Na definição do Protocolo, o tráfico de seres humanos ocorre com a finalidade da exploração de alguém em diversos setores do mercado de trabalho. Essa exploração se refere às condições de trabalho às quais as pessoas são submetidas e como se desenvolve a relação trabalhista, muitas vezes se submetendo o trabalhador a horas extenuantes de atividade, desenvolvida de modo forçado, em condições inadequadas, restringindo sua liberdade de locomoção, recebendo baixo ou nenhum pagamento e sem a observância da legislação trabalhista.

A existência de demanda por pessoas traficadas para desenvolverem determinadas atividades, bem como a existência de pessoas que se arriscam a aceitar propostas de trabalho em outras localidades, muitas vezes com poucas informações a seu respeito, tem uma ligação próxima.

Como destacado por Anderson e O'Connell Davidson (2004, p.7), questões sobre suprimento e demanda não podem ser analiticamente separadas, e ambas são caracterizadas, ou até determinadas, por um conjunto complexo e interligado de fatores políticos, sociais e institucionais. Os serviços de pessoas traficadas são invariavelmente explorados/consumidos em setores onde o Estado concede pouca ou nenhuma proteção a trabalhadores imigrantes desqualificados e/ou outras categorias de pessoas exploradas (como esposas, au pairs, crianças adotadas, pedintes); e onde trabalhadores ou outros grupos explorados têm pouca ou nenhuma oportunidade de se organizarem coletivamente para se protegerem de abuso e exploração. Estes setores não existem simplesmente, mas são criados através de uma combinação de ação e inação de parte de atores estatais e outros grupos de interesses.

As autoras salientam que quase não existe demanda por pessoas traficadas para serem exploradas em setores em que os trabalhadores estão organizados, os contratos são bem estabelecidos Page 32 e as rotinas de trabalho são monitoradas. Segundo elas (2004, p.8), a demanda pelo trabalho de pessoas traficadas é freqüentemente encontrada em contexto que é socialmente imaginado por não envolver relações de trabalho. Por exemplo, o serviço doméstico não é completamente entendido como "trabalho"...

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