O sentido da reforma trabalhista de 2017 em comparação com a matriz constitucional de 1988

AutorMauricio Godinho Delgado/Gabriela Neves Delgado
Ocupação do AutorMinistro do TST e Professor Titular do UDF/Advogada e Professora Associada de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UnB
Páginas39-57

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I - Introdução

O presente capítulo analisa a lógica basilar da reforma trabalhista implementada no Brasil por intermédio da Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017.

A partir das reflexões dispostas no capítulo precedente, que estudou a matriz estrutural da Constituição da República de 1988, este texto traça as características principais das mudanças promovidas pela Lei n. 13.467 na Consolidação das Leis do Trabalho e demais diplomas normativos correlatos.

Em suas reflexões, este capítulo busca indicar os pontos centrais da reforma trabalhista de 2017, realizando a sua comparação com a matriz constitucional de 1988.

Nessa medida, em um primeiro momento, apresenta uma síntese das mudanças relacionadas ao campo do Direito Individual do Trabalho.

Em um segundo momento, apresenta a síntese das modificações legislativas vinculadas ao campo do Direito Coletivo do Trabalho.

Ademais, em um terceiro momento, analisa a síntese das alterações normativas envolventes ao Direito Processual do Trabalho.

Após essa três sínteses dispostas - sempre correlacionadas à matriz constitucional da República Federativa do Brasil -, este texto se completa com a análise dos pontos normativos da Lei n. 13.467/2017 que regulam aspectos que anteriormente não eram normatizados pela legislação federal do trabalho, ao menos de maneira explícita.

Também nessa última análise, o presente capítulo busca correlacionar as regras legais inovadoras da Lei n. 13.467/2017 com a estrutura e lógica conceituais da Constituição de 1988.

II - O sentido da reforma trabalhista brasileira de 2017: síntese

A reforma trabalhista implementada no Brasil por meio da Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, desponta por seu direcionamento claro em busca do

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retorno ao antigo papel do Direito na História como instrumento de exclusão, segregação e sedimentação da desigualdade entre as pessoas humanas e grupos sociais.

Profundamente dissociada das ideias matrizes da Constituição de 1988, como a concepção de Estado Democrático de Direito, a principiologia humanística e social constitucional, o conceito constitucional de direitos fundamentais da pessoa humana no campo justrabalhista e da compreensão constitucional do Direito como instrumento de civilização, a Lei n. 13.467/2017 tenta instituir múltiplos mecanismos em direção gravemente contrária e regressiva.

Como síntese da marca anticivilizatória do novo diploma jurídico, serão apontados, nos três subitens abaixo, apenas para ilustração, alguns dos mais importantes aspectos brandidos pela Lei da Reforma Trabalhista - todos, lamentavelmente, na direção regressiva, excludente, desigual e segregacionista.

Registre-se que o conjunto de regras integrantes da Lei da Reforma Trabalhista será, artigo por artigo, estudado na Terceira Parte deste livro dual, denominada “Comentários à Lei n. 13.467/2017 em Conformidade com os Campos Jurídicos Envolvidos”. Essa referida terceira e última parte desta obra é composta de três capítulos, de números V, VI e VII.

Para facilitar a compreensão da presente síntese explicitada neste Capítulo II do livro dual, o conteúdo jurídico da nova lei trabalhista será dividido em três blocos: regras de Direito Individual do Trabalho, regras de Direito Coletivo do Trabalho e regras de Direito Processual do Trabalho.

1. Síntese relativa ao campo do direito individual do trabalho

O Direito Individual do Trabalho regula a seara das relações bilaterais e multilaterais do mundo empregatício, fixando regras imperativas para o contrato de trabalho. Por meio dessas regras imperativas, que estabelecem um conteúdo mínimo normativo para o contrato de trabalho, a ordem jurídica busca estipular um patamar civilizatório mínimo (Mauricio Godinho DELGADO) para as pessoas humanas que vivem do trabalho, em especial o largo universo daqueles que se inserem na economia e na sociedade por intermédio da relação de emprego.

Mediante suas regras imperativas, o Direito do Trabalho busca demo-cratizar a mais importante relação de poder existente no âmbito da dinâmica econômica, instituindo certo parâmetro de igualdade jurídica material nessa relação profundamente assimétrica. Atenua o poder empregatício e eleva as condições de vida e trabalho da pessoa humana trabalhadora no âmbito de sua relação de emprego.

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Com isso, o Direito do Trabalho também realiza um importante papel de política pública de distribuição de renda no mundo da economia e da sociedade capitalistas, diminuindo, em alguma medida, as tendências concentradoras de renda e de poder que são características do capitalismo.

A Lei n. 13.467/2017 busca romper com essa lógica civilizatória, demo-crática e inclusiva do Direito do Trabalho, por meio da desregulamentação ou fiexibilização de suas regras imperativas incidentes sobre o contrato trabalhista. Essa é a marca e o sentido rigorosamente dominantes desse diploma legal no campo laborativo do Direito. 21

Nesse contexto, indica-se, a seguir, a síntese dos aspectos mais dramáticos implementados pela nova lei no campo do Direito Individual do Trabalho. Registre-se, porém, que se trata de mera síntese; desse modo, deve o leitor se socorrer do conteúdo do Capítulo V deste livro dual, intitulado “Os Preceitos da Lei n. 13.467/2017 no Campo do Direito Individual do Trabalho”, caso pretenda ter uma visão completa dos dispositivos do novo diploma legal na área jusindividual trabalhista.

Eis a síntese indicada:

  1. Um manifesto desprezo à noção de centralidade da pessoa humana na ordem jurídica e na vida social.

    Na verdade, os princípios constitucionais da centralidade da pessoa humana na vida real e no Direito, da dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho e do emprego, do bem-estar individual e social, da igualdade em sentido material e da subordinação da propriedade privada à sua função socioambiental são repetidamente negligenciados ou diretamente afrontados por diversas regras jurídicas expostas na nova lei.22

    Ao invés de respeitar o patamar jurídico fixado na Constituição da República, a Lei n. 13.467/2017 simplesmente faz emergir parâmetro jurídico sepultado há décadas no campo do Direito, isto é, a desmedida prevalência do poder econômico na principal relação de poder existente no âmbito da economia e da sociedade, a relação de emprego.

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    b) Um esvaziamento extremado do princípio constitucional da igualdade em sentido material no contexto das relações empregatícias.

    Os campos sociais do Direito se tornaram, na Democracia, o segmento privilegiado de afirmação da nova concepção constitucional do princípio da igualdade em sentido material. Este princípio, conforme se sabe, propõe o tratamento jurídico diferenciado aos indivíduos na medida de sua desigual-dade, como fórmula civilizatória voltada a propiciar maior igualdade entre eles. Em todos os segmentos do Direito Social, o Direito do Trabalho constitui aquele que mais fortemente se construiu e se desenvolveu a partir do princípio da igualdade em sentido material.

    A nova lei, entretanto, simplesmente desconsidera o princípio constitucional da igualdade em sentido material.

    O esvaziamento extremado desse princípio se dá quer pela desregulamentação do Direito do Trabalho que a nova lei intenta, quer pela flexibilização das normas imperativas desse campo jurídico, quer pela acentuação do poder unilateral do empregador nessa relação socioeconômica e jurídica, quer pelas severas restrições que implementa ao acesso à justiça à pessoa humana do trabalhador.

  2. Uma estratégia de desconstrução direta e/ou indireta do arcabouço normativo constitucional e infraconstitucional de proteção à saúde e segurança do trabalhador no âmbito das relações trabalhistas.

    A Constituição Federal, como se conhece, afirma inequivocamente o princípio da inviolabilidade do direito à vida (caput do art. 5º da CF), corolário lógico do princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1º da CF) e da centralidade dessa pessoa na ordem jurídica e na vida socioeconômica (art. 1º, II, III e IV; art. 3º, I, III e IV; art. 5º, caput, III e XXIII; art. 7º, XXII; art. 170, caput, III, VII e VIII; art. 193; art. 196; art. 200, caput e VIII, todos da CF).

    A estratégia da nova lei no sentido de buscar desconstruir direta e/ou indiretamente o arcabouço normativo constitucional e infraconstitucional de proteção à saúde e segurança do trabalhador no âmbito das relações trabalhista se realiza por meio de regras explícitas nessa direção, que diminuem a incidência das normas redutoras dos riscos inerentes à saúde e segurança no trabalho, tal como a regra, por exemplo, que tenta desconectar a duração do trabalho do campo da saúde laborativa (parágrafo único do art. 611-B, conforme redação imposta pela Lei n. 13.467/2017).

    Essa estratégia de desconstrução se concretiza também por intermédio de regras que pulverizam o ambiente relacional dos vínculos empregatícios e trabalhistas no campo socioeconômico, induzindo a que tais vínculos se realizem por intermédio de múltiplas empresas supostamente desconexas,

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    de maneira a tornar ineficazes os instrumentos jurídicos clássicos de controle dos aspectos relacionados à saúde e segurança da pessoa humana trabalha-dora no mercado de trabalho.

  3. Uma evidente tentativa, por parte da nova lei, de driblar as normas jurídicas de inclusão de pessoas humanas vulneráveis no mercado de trabalho, tais como trabalhadores aprendizes, pessoas com deficiência e trabalhadores em reabilitação previdenciária.

    De maneira geral, o sistema inclusivo arquitetado pela Constituição de 1988 e explicitado por diplomas infraconstitucionais toma como parâmetro...

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